(No meu jardim)
FALAR PORTUGUÊS - Nós é que os ensinámos
Uns dias melhor, outros pior, o tempo vai-se passando, nesta cidade que poderia ser o paraíso.
Há até um simpático impala que diversas vezes vem visitar o meu jardim. Caminha calmamente. Através da janela aberta olha para dentro da sala. Em seguida examina o jardim. Terminada a inspecção retira-se tão tranquilamente como chegou.
Contudo, temos sempre presente o que se passa lá para o norte, na chamada «zona de intervenção».
Mas, entre um e outro sobressalto, a vida continua, e todos temos deveres a cumprir.
Lá mais para o sul há empregadas domésticas, mulheres que vão trabalhar às casas dos “brancos”
Aqui, não. São homens que fazem esses serviços. A troco de um salário estabelecido e comida, às vezes também dormida, executam as tarefas domésticas que normalmente são atribuídas às mulheres: cozinham, lavam e engomam a roupa, limpam a casa.
São homens adultos, muitas vezes casados, ou jovens que rondam os vinte anos.
Há casos em que se tem um adulto para cozinhar e tratar das roupas, e um mais jovem para limpar a casa.
Há ainda uns garotos, (normalmente rapazes, embora por vezes apareçam meninas), que muitas vezes nos batem à porta perguntando:
Senhora precisa miúdo?
São meninos pobres que não têm o que comer em suas casas, e bem cedo começam a lutar pela subsistência.
Dá-se-lhes comida, dormida e roupas (geralmente só têm a que trazem no corpo, e em muito mau estado), e, em troca, eles brincam com as nossas crianças, vigiando para que nada de mal lhes aconteça. São crianças sombras de crianças. Só se vão deitar depois que os meninos vão para a cama, o que, aqui, acontece bastante cedo.
Todos falam português. Os “miúdos”, por vezes não sabem muito, mas é o bastante para se fazerem entender. E como a linguagem das crianças é universal, conseguem estabelecer longas conversas com as nossas crianças, nas suas brincadeiras.
Na minha casa, para além do miúdo, há um cozinheiro e um rapaz, o Albino, que trata da limpeza da casa.
Não sei bem a idade de um e de outro. Não é nada fácil calcular. (Tratando-se de pessoas bem avançadas na idade, já de carapinha branca, torna-se ainda mais difícil. E se perguntamos a uma dessas pessoas quantos anos tem, a resposta é sempre:
Não sei, senhora. Tenho muitos!)
O Albino aparenta dezoito a vinte anos. É um rapaz já com prática de trabalho, que me foi recomendado por uma amiga.
Cumpridor dos seus deveres, pouco falador, vai desempenhando bem as suas funções.
Embora fale o indispensável de português para se fazer entender, por vezes não compreende muito bem o que se lhe diz.
Há dias estávamos a almoçar e eu pedi-lhe que fosse buscar água ao frigorífico, pois tinha-se esquecido de a pôr mesa. Dirigiu-se à cozinha, ouvi-o abrir a porta do frigorífico, mas não aparecia com a água. Depois de esperar uns minutos, chamei-o. Apresentou-se sem nada nas mãos. Perguntei-lhe:
Então???
Respondeu-me: não encontro, senhora.
Não encontras o quê???
Não sabe, senhora…
Calculo que fosse bastante difícil encontrar uma coisa que ele próprio não sabia o que era !...
Cenas como esta acontecem de vez em quando. Nós ensinámos-lhes a nossa língua, mas não todas as palavras, com certeza. No entanto há certos vocábulos que toda a gente aprende muito facilmente.
Todos os dias, a meio da manhã, o Albino me pede para ir tratar das suas necessidades fisiológicas.
Senhora, pode ir no mato?
Podes sim, vai lá no mato.
E ele vai. E volta.
Um dia o Albino “foi no mato” mas, contra o costume, demorou-se muito tempo. Eu já pensava: encontrou algum conhecido e ficou à conversa. Quando finalmente apareceu, achei que deveria fazer-lhe um reparo:
Meu Deus, Albino, demoraste tanto tempo para ir no mato!
Resposta pronta:
Senhora, não pode ir ca**r aqui no pé de casa !
Engoli em seco, e dei a conversa por terminada.
Quando o Albino veio para minha casa eu não sabia praticamente nada a seu respeito, a não ser que era de confiança. E tanto me bastava. Cerca de um mês depois de estar ao meu serviço, um dia resolvi meter conversa com ele, e perguntei-lhe:
Albino, tu és casado?
Não, senhora, ainda sou menino.
E porque não te casas?
Porque as mulheres da cidade são todas p****.
Também desta vez engoli em seco, e encerrei o assunto.
E jurei a mim mesma não voltar a fazer perguntas indiscretas!
Eles apenas repetem as palavras que lhes ensinámos.
Este é mais um dos apontamentos que temos vindo e continuaremos a apresentar, subordinados ao mesmo tema – África
Não seguem qualquer ordem cronológica. Não estarão situados no tempo nem no espaço.
O tempo é relativo. E as memórias afluem sem hora marcada.
Há até um simpático impala que diversas vezes vem visitar o meu jardim. Caminha calmamente. Através da janela aberta olha para dentro da sala. Em seguida examina o jardim. Terminada a inspecção retira-se tão tranquilamente como chegou.
Contudo, temos sempre presente o que se passa lá para o norte, na chamada «zona de intervenção».
Mas, entre um e outro sobressalto, a vida continua, e todos temos deveres a cumprir.
Lá mais para o sul há empregadas domésticas, mulheres que vão trabalhar às casas dos “brancos”
Aqui, não. São homens que fazem esses serviços. A troco de um salário estabelecido e comida, às vezes também dormida, executam as tarefas domésticas que normalmente são atribuídas às mulheres: cozinham, lavam e engomam a roupa, limpam a casa.
São homens adultos, muitas vezes casados, ou jovens que rondam os vinte anos.
Há casos em que se tem um adulto para cozinhar e tratar das roupas, e um mais jovem para limpar a casa.
Há ainda uns garotos, (normalmente rapazes, embora por vezes apareçam meninas), que muitas vezes nos batem à porta perguntando:
Senhora precisa miúdo?
São meninos pobres que não têm o que comer em suas casas, e bem cedo começam a lutar pela subsistência.
Dá-se-lhes comida, dormida e roupas (geralmente só têm a que trazem no corpo, e em muito mau estado), e, em troca, eles brincam com as nossas crianças, vigiando para que nada de mal lhes aconteça. São crianças sombras de crianças. Só se vão deitar depois que os meninos vão para a cama, o que, aqui, acontece bastante cedo.
Todos falam português. Os “miúdos”, por vezes não sabem muito, mas é o bastante para se fazerem entender. E como a linguagem das crianças é universal, conseguem estabelecer longas conversas com as nossas crianças, nas suas brincadeiras.
Na minha casa, para além do miúdo, há um cozinheiro e um rapaz, o Albino, que trata da limpeza da casa.
Não sei bem a idade de um e de outro. Não é nada fácil calcular. (Tratando-se de pessoas bem avançadas na idade, já de carapinha branca, torna-se ainda mais difícil. E se perguntamos a uma dessas pessoas quantos anos tem, a resposta é sempre:
Não sei, senhora. Tenho muitos!)
O Albino aparenta dezoito a vinte anos. É um rapaz já com prática de trabalho, que me foi recomendado por uma amiga.
Cumpridor dos seus deveres, pouco falador, vai desempenhando bem as suas funções.
Embora fale o indispensável de português para se fazer entender, por vezes não compreende muito bem o que se lhe diz.
Há dias estávamos a almoçar e eu pedi-lhe que fosse buscar água ao frigorífico, pois tinha-se esquecido de a pôr mesa. Dirigiu-se à cozinha, ouvi-o abrir a porta do frigorífico, mas não aparecia com a água. Depois de esperar uns minutos, chamei-o. Apresentou-se sem nada nas mãos. Perguntei-lhe:
Então???
Respondeu-me: não encontro, senhora.
Não encontras o quê???
Não sabe, senhora…
Calculo que fosse bastante difícil encontrar uma coisa que ele próprio não sabia o que era !...
Cenas como esta acontecem de vez em quando. Nós ensinámos-lhes a nossa língua, mas não todas as palavras, com certeza. No entanto há certos vocábulos que toda a gente aprende muito facilmente.
Todos os dias, a meio da manhã, o Albino me pede para ir tratar das suas necessidades fisiológicas.
Senhora, pode ir no mato?
Podes sim, vai lá no mato.
E ele vai. E volta.
Um dia o Albino “foi no mato” mas, contra o costume, demorou-se muito tempo. Eu já pensava: encontrou algum conhecido e ficou à conversa. Quando finalmente apareceu, achei que deveria fazer-lhe um reparo:
Meu Deus, Albino, demoraste tanto tempo para ir no mato!
Resposta pronta:
Senhora, não pode ir ca**r aqui no pé de casa !
Engoli em seco, e dei a conversa por terminada.
Quando o Albino veio para minha casa eu não sabia praticamente nada a seu respeito, a não ser que era de confiança. E tanto me bastava. Cerca de um mês depois de estar ao meu serviço, um dia resolvi meter conversa com ele, e perguntei-lhe:
Albino, tu és casado?
Não, senhora, ainda sou menino.
E porque não te casas?
Porque as mulheres da cidade são todas p****.
Também desta vez engoli em seco, e encerrei o assunto.
E jurei a mim mesma não voltar a fazer perguntas indiscretas!
Eles apenas repetem as palavras que lhes ensinámos.
Este é mais um dos apontamentos que temos vindo e continuaremos a apresentar, subordinados ao mesmo tema – África
Não seguem qualquer ordem cronológica. Não estarão situados no tempo nem no espaço.
O tempo é relativo. E as memórias afluem sem hora marcada.
Sabe Mariazita, com a sua escrita, é muito fácil deixarmo-nos levar até ao seu quintal em Àfrica, ao convivio dos meninos africanos com as suas crianças, às suas conversas com o Albino.
ResponderEliminarÉ fácil deixarmo-nos levar para esse tempo, em que apesar do drama da Guerra o mundo era algo de mais compreensível e o género humano, de todas as raças, era sinónimo de algo seguro e confiável...
Parabéns pelo seu texto espantoso. E se me permite, fico à espera de mais!
Bjs.
Com Senso
ResponderEliminarÉ sempre um prazer receber a sua visita. (Não sei se me estou a repetir...mas é a verdade.)
África continua entranhada em mim, e penso que em toda a gente que por lá passou. É viciante!
Apesar de todas as atribulações, houve momentos muito felizes, que continuam na memória.
Tenho mais alguns "apontamentos" na forja, mas ainda precisam ser modelados. A seu tempo aparecerão em cena -:)
Muito obrigada
Beijos
Mariazita
Mariazita
ResponderEliminarObrigado pela sua visita ao "Ferroada" e pelas referências.
Gostei da estória do impala e do Albino, África seduz, apaixona e deixa muitas saudades...
Os seus apontamentos fascinam pela qualidade da escrita...
Voltarei
Obrigado e beijos
Carlos Rebola
A história do Albino ... não encontras o quê?
ResponderEliminar- Não sabe.
Era verdade, a verdade mais que pura.
Estive em "trabalhos forçados", mas gostaria um dia, não pode ser muito distante de visitar os locais antigos ...
A vida de Angola era um bocado diferente.
Nas lides domésticas, que saiba, eram só jovens ou mulheres ...
Mas para a lavagem das roupas, que aparecia eram homens, suponho que só para recolher a roupa e vir entregá-la, porque quem trabalhava eram as mulheres.
A carne de impala era muito saborosa. Muito mais que a de pacaça ou burro do mato.
Era a lei do mais forte e a maioria gostava de carne, que o peixe dos rios, eram só espinhas ...
Uma boa semana.
Só estive em África uma vez, em Moçambique no ano 2000. A partir daí comecei a entender o sentimento dos que lá viveram e foram obrigados a voltar. Hoje se me pedissem para voltar a África, não hesitaria um minuto! Por alguma razão lhe chamam "Terra Mãe".
ResponderEliminarUm abraço.
Carlos
ResponderEliminarMuito obrigada pela visita e pelas suas amáveis palavras.
África é (foi) TAMBÉM o que aqui descrevo. E é dessa África que sinto saudades.
Voltarei a visitar a sua casa em breve.
Entretanto, obrigada e
Beijos
Mariazita
Caro Xistosa
ResponderEliminarComo dizia há dias o meu amigo João Soares, num comentáriio sobre os festejos da Ascensão nos Açores - cada terra com seu uso...
O amigo não esteve, com certeza, na mesma terra onde vivi 3 anos.
Aliás, se ler o meu texto com atenção, vê que eu refiro que, lá mais para o sul, são as mulheres que fazem os trabalhos que, no local em que se passam as cenas que descrevo, são executados por homens.
Em todo o tempo que lá estive nunca vi uma mulher fazê-los. Elas trabalhavam na machamba e vendiam os produtos no mercado.
A carne de caça é boa, desde que bem temperada para lhe tirar o adocicado. A minha preferida era a de javali, de que ainda hoje gosto. Há restaurantes que servem, e é muito boa (para meu gosto -:))
Uma boa semana também para si.
Um abraço
Mariazita
Sifrónio
ResponderEliminarEntendo que não se importasse de voltar a Moçambique. Eu também gostaria de lá voltar, e não só a Moçambique, mas a outras terras africans onde estive...
É certo que agora está tudo muito diferente, mas quem lá esteve "noutros tempos" sente bastantes saudades.
Para muitos é o apelo da "Terra Mãe".
Obrigada por ter vindo.
Brevemente retribuirei a visita.
Um abraço
Mariazita
Querida Amiga Mariazita,
ResponderEliminarÉ um prazer visitar este blog. Em pouco mais de quatro meses adquiriu uma posição de destaque na blogosfera, graças à qualidade dos posts e ao bom contacto que estabeleceu com os outros blogs. Agradeço as dicas que me deu e voltarei a pedir mais ajudas. O seu saber, sendo útil a quem sabe menos, não deve ficar fechado e é isso que gosta de fazer. Muito obrigado
Beijos
João
Meu querido João
ResponderEliminarMuito obrigada pelas suas palavras, sempre gentis.
Não tem nada que me agradecer. Não faço nada que o João não tenha já feito.
Para equilibrar a balança na matéria de ajuda...ainda tenho muito que pedalar!
Trocar conhecimentos e experiências é bom, e benéfico para todos.
Estamos aí!
Beijinhos
Mariazita
PS - O seu "perfil" ficou lindo!
Delicioso!!!
ResponderEliminarEm Moçambique, pelo menos na zona em que eu vivia, a esses meninos que brincavam com as crianças brancas, chamava-se Macaiaia.
O criado que limpava a casa e servia à mesa era o Moleque, o que lavava a roupa era o Mainato, o que tratava do quintal era o Guarda e o que tratava da Machamba, claro que era o Machambeiro!
Beijinhos
Querida Mariazita
ResponderEliminarTem razão: «o tempo é relativo!».
E agora mais do que nunca! Mas não foi essa a sua intenção quando escreveu a frase, há 12 anos atrás.
Que interessante, o que nos conta de África! Como sempre, li avidamente o que escreveu.
Neste momento estou mais para leituras do que para escrita. Mudou tudo e custa-me aceitar esta nova forma de viver.
Obrigada por partilhar connosco estas suas vivências.
Um beijinho
Beatriz