SEGREDOS –
CAPÍTULO XV
“…Como se fosse preciso… Linda e elegante como a
Nanda é, não precisa desses sonos… e qualquer trapinho lhe fica bem.
- Concordo com a Amélia – acrescentou Carla.
- Vocês são muito simpáticas, agradeço muito, mas
prefiro tomar as minhas providências. Vamos, Tejo!
Nanda abriu a porta da sua casa e despediu-se com um
“até amanhã” …
SEGREDOS –
CAPÍTULO XV
Depois de Nanda
se retirar Carla e Amélia ainda ficaram uns momentos a conversar até que
acabaram por se despedir.
Amélia, ao
subir as escadas para sua casa, ia pensando:
“Ainda bem que
a Nanda puxou a conversa da dança no varão. Afinal, a Carla acolheu a ideia
muito melhor do que eu poderia imaginar; e eu sinto um alívio enorme em não ter
de manter este segredo que tanto me incomoda. Não é que me pese a consciência,
pois nunca fiz nada menos digno naquele bar. Mas não gosto de segredos; sempre
me orientei pela ideia de que a vida deve ser como um livro aberto, sem nada a
esconder”.
Quando chegou
ao patamar pareceu-lhe ver uma sombra a tentar esconder-se. Sorriu, pois quase tinha
a certeza de que, mais uma vez, o vizinho de cima, António, estava à sua espreita.
Relembrando a
conversa de Nanda, com um sorriso no rosto entrou em casa e foi tratar do seu
jantar.
Até que a ideia
da amiga não lhe desagradava de todo. Bem vistas as coisas… porque não? O
António, embora não fosse nenhum jovem, não era ainda um velho.
- Terá mais uns
oito ou dez anos do que eu - murmurou para si mesma.
É viúvo e tem,
ao que consta, uma boa situação financeira. Foi sargento no tempo da Guerra
Colonial, e por lá andou. Tanto quanto se sabe foi um herói, o que lhe valeu algumas
medalhas que tem num expositor – diz quem já foi a sua casa.
Frequenta uma
universidade sénior, porque é de opinião que “o saber não ocupa lugar”; ao
mesmo tempo isto permite-lhe preencher as longas horas em que nada tem para
fazer. Em casa entretém-se a ouvir música, a ler, e a tratar das sardinheiras
que tem na varanda e que, ao regar, propositadamente faz extravasar a água dos
vasos, que cai na varanda da vizinha de baixo, Amélia, só para a arreliar.
Gosta de cantar
e tem uma bela voz de barítono. Coloca na aparelhagem os discos de áreas de
ópera que ele acompanha, enchendo o prédio de música e encantando os vizinhos,
excepto Amélia, que se farta de refilar, mas que, no fundo gosta de o ouvir
Tem dois gatos –
os quais preenchem parte do seu tempo - que gostam muito de se lhe sentar no
colo. De dia não se dá por eles, mas de noite divertem-se em grandes correrias,
o que é motivo para Amélia se queixar do barulho que não a deixa descansar.
No fundo, todas
as suas reclamações são apenas pretextos para chamar a atenção de António. A
verdade é que, não o confessando nem sequer o querendo reconhecer, sente uma
forte atracção por ele.
Ruminando estes
pensamentos jantou, vestiu o pijama, e murmurou para si mesma: “Já que hoje não
tenho alunas vou mas é deitar-me, que amanhã, com a ida aos Bombeiros, tenho um
dia cheio de trabalho”.
Nanda entrou no seu
apartamento e depois de comer uma refeição ligeira, preparou as roupas para o
dia seguinte, e pôs-se à vontade para se deitar. Mas, com a excitação que lhe
causava a ideia do encontro do dia seguinte com o Araújo, o sono tinha
desaparecido. Apesar da hora adiantada, foi para a sala.
Ligou a música em tom baixo,
e abriu a porta do bar, do lado direito do aparador. Olhou, procurando a bebida
que iria beber. Não lhe apetecia muito um licor – àquela hora não queria uma
bebida doce. Optou por Whisky. Serviu-se, foi à cozinha buscar gelo, e, à média
luz, recostou-se no sofá.
De olhos fechados
deliciava-se ouvindo a música suave, tomando um gole de whisky, vagarosamente.
Sem opor resistência, como num sonho, deixava-se embalar por aquela quietude.
Lentamente, como que a
levitar, encaminhou-se para a janela e olhou lá para fora. Na semi-claridade do
amanhecer avistou, na praia, um vulto que lhe pareceu familiar.
Mas… Não! Não podia ser
verdade! Aquela figura que caminhava na areia, a princípio apenas difusa, à
medida que se aproximava… sim, não havia dúvidas! Era o Luís. Mas porque
andaria ele na praia, àquela hora matinal?
Na longínqua linha do
horizonte vislumbravam-se já os primeiros rubores da alvorada, anunciando mais
um dia de sol e calor.
Na praia, Luís, descalço na
areia fria, um ar desalentado, ombros descaídos, no rosto bronzeado as fundas
olheiras denunciavam uma longa noite de insónia.
Com visível esforço ia
caminhando lentamente quando, inesperadamente, avistou o seu irmão Miguel.
Este, alegremente,
aproximou-se em passo rápido para saudar o irmão; mas imobilizou-se ao atentar
bem no aspecto de Luís. Com ar de espanto, exclamou:
- Eh! Pá,
estás cá com uma cara que mete medo ao susto!
- Não me
digas nada, pá. Nem imaginas o que me aconteceu.
- Não, não
posso imaginar o que te pôs nesse estado! Viste algum fantasma?
- Bem pior
do que isso… mas antes diz-me: o que fazes tu aqui na praia a estas horas, com
esse ar tão feliz? Ainda mal nasceu o dia…
- Eu conto,
sim, mas depois. Primeiro quero saber de ti.
Nanda abria a boca de
espanto. Como era possível? O seu filho Miguel vivia na Bélgica, com a Farida:
o Luís ainda ontem estava no Alentejo, acabara de ser pai… A que propósito
estavam os dois ali na praia, conversando como se se tivessem visto na véspera?
Resolveu continuar a prestar
atenção à conversa dos dois irmãos.
- Tudo bem,
então eu falo primeiro – respondeu Luís.
Ontem, para
festejar o nascimento do meu filho (a mãe contou-te… penso eu) fui com uns
amigos beber umas granjolas. A certa altura o Xico (lembras-te dele…) propôs
que passássemos para bebidas mais fortes. A ocasião até justificava… e todos
concordaram.
Já
estávamos bem bebidos quando entra no bar um grupo de mulheres, todas em grande
risota. Depois de ligeira hesitação, cochicharam e dirigiram-se para a nossa
mesa. Imagina quem fazia parte do grupo… A Bela!
- O quê? A
Bela, amiga da mãe?
- Claro!
Conheces mais alguma Bela?
- Não. Mas
continua!
Neste ponto Nanda sentiu-se
desfalecer. Bela, a sua melhor amiga, num bar “daqueles”? Não podia ser. O seu
filho Luís devia estar completamente bêbado e tinha-a confundido com uma
galdéria qualquer!...
Com esta ideia recuperou a
calma e continuou ouvindo a conversa. Luís dizia:
-
Sentaram-se ao pé de nós e pediram bebidas iguais às nossas. Não sei quanto
tempo depois disseram que se iam embora, e ali mesmo se formaram casais… A mim
calhou-me a Bela.
- O quê?
Estás a brincar!...
- Antes
estivesse… Mas não estou, aconteceu mesmo. Fui com a Bela para casa dela.
Levou-me para o quarto e… enfim, podes imaginar o que se seguiu. Tu
conheces a Bela…
- Conheço,
conheço…
- Sabes que
ela consegue ser espantosa! Mete-te no coração e tu nem te atreves a reagir…
- Lá isso é
verdade…
-Pois
então! Quando dei com aqueles olhos líquidos, que prometiam delírios, a
fixarem-me intensamente, quando me senti docemente envolvido nos seus braços, a
Bela desprendeu-se, foi até à porta do quarto, abriu-a, e, em altos brados,
exclamou:
- SURPRESA!
Foi mesmo
uma surpresa, uma enorme surpresa!
Afastando-se
para o lado apresentou-me uma mulher horrenda!
Não era
ainda velha, mas feia como a noite dos trovões! Um olho abaixo e outro acima,
mirando cada um para seu lado, a boca torta, desdentada, ostentando um sorriso
alvar. Só lhe faltavam os pêlos no nariz para ser uma autêntica bruxa, saída de
um conto de Andersen.
- E qual
foi a tua reacção?
- A
princípio fiquei sem acção. Mas quando vi o riso de escárnio e gozo na cara da
Bela… atirei-me – literalmente – pela janela, meti-me no carro, e vim para
aqui. Sabes como o mar é para mim um calmante…
- Razão
tens tu para estar com esse aspecto horrível…
- Digo-te,
foi a pior experiência da minha vida. Mas diz-me tu agora: com esse ar tão
feliz…onde passaste a noite?
- Eu? Eu…
passei a noite com a Bela.
O estrondo de um copo a
estilhaçar-se no chão fez estremecer e acordar Nanda, sentada no sofá. O Tejo, deitado
a seus pés, deu um salto, olhando a dona, espantado.
Nanda, estremunhada, pensou:
“Mas que sonho tão disparatado! Terá algum significado? Sonhar com os meus
filhos… é natural. Ainda para mais com a vinda do Luís, amanhã, e a promessa do
Miguel de vir de férias brevemente… Mas tudo o resto é tão sem nexo! E a que
propósito aparece a Bela no meio de toda esta confusão? Oxalá não seja
prenúncio de alguma coisa má…
E como fui
adormecer aqui no sofá? “
Aquela sensação estranha não
a deixava ter sossego. Não conseguia perceber o motivo… mas sentia-se
incomodada. Era como se “algo” quisesse avisá-la de algum perigo que a
espreitava.
Num impulso pegou no telemóvel
e, esquecendo a hora tardia, ligou para Bela.
Esta ficou admiradíssima ao
ouvir a voz da amiga.
- Então,
querida, que se passa? – perguntou num tom de voz bastante
apreensivo.
- Nada de
especial, apenas… apeteceu-me falar contigo. Não sei porquê adormeci no sofá e,
vê lá tu que sonhei contigo! – disse dum modo que pretendia
parecer despreocupado.
- É sempre
um prazer falar contigo, tu sabes, mas a estas horas já não esperava fazê-lo.
Embora hoje não me tenhas ligado – acrescentou com mágoa na voz.
-
Desculpa-me, querida, mas foi um dia bastante exaustivo. Já te contei que o
Luís vem amanhã para cima?
- Sim,
contaste, e que é o Tó Zé que vai buscá-los. Imagino a tua ansiedade para
conheceres o teu netinho…
- É verdade
que estou muito ansiosa. Mas as coisas acontecem todas ao mesmo tempo. Amanhã
também é o dia em que vou falar com o engenheiro Araújo.
- Ah, pois –
respondeu Bela em tom de desagrado.
Se, por um lado estava muito
feliz porque a sua amiga tinha, finalmente, conseguido arranjar trabalho, por
outro lado custava-lhe conformar-se que ela não quisesse ir trabalhar para a
empresa do seu pai.
Nanda, ainda com aquela
sensação estranha, perguntou:
- E o teu
dia como foi? Fizeste alguma coisa de especial?
- Não, nada
de especial, a mesma rotina de sempre.
- Nem
sequer saíste à noite para tomar um café?
- Não.
Talvez por ter sido um dia sensaborão – e sem sequer me telefonares – não me
apeteceu sair. Sentei-me na sala, pus música baixo, liguei a televisão sem som…
e pronto, assim passei a noite. Agora estava para me ir deitar quando ouvi o
telemóvel e vi que eras tu, senão nem sequer teria atendido. –
respondeu Bela.
Despediram-se com os
beijinhos habituais. Nanda sentiu-se mais descansada depois de falar com a sua
melhor amiga. Não sabia explicar porquê mas o facto de Bela lhe ter dito que
não saíra de casa à noite deu-lhe um certo conforto.
A noite não foi muito
reparadora. Dormiu sonos curtos e inquietos.
*
A
temperatura baixara bastante durante a noite.
Nanda
sentiu um arrepio ao sair de casa para ir ao encontro de Araújo.
“Este
arrepio será um mau presságio? “- pensou
Felizmente
vestira uma blusa de mangas compridas por debaixo do elegante tailleur de meia
estação.
O
Verão estava a chegar ao fim, por isso não era de estranhar que as manhãs
fossem frescas – pensava ela enquanto caminhava, tentando afastar aquela má
impressão que lhe causara o arrepio à saída de casa.
“Será
que alguma coisa vai acontecer neste encontro”?
Maria Caiano Azevedo