domingo, 18 de dezembro de 2011

NATAL CHINÊS

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A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a, casualmente, a contemplar, embevecida, o presépio do convento.
Encontrava-a por fim à mesa.
A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.
Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes) , se tornar nessa altura notável.
Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.
Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreitavam, curiosas.
Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.
Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.
O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.
Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.
O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», bebia dois cálices.
Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha generosamente.
Quando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.
A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.
... E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.
Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta.
Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.
Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?
Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.
Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria. 

Maria Ondina Braga, A China Fica ao Lado,
Lisboa, Panorama, 1968

Maria Ondina Braga


MARIA ONDINA BRAGA

Maria Ondina Braga nasceu em 1932, em Braga. Deixou esta cidade nos anos 50. Em Paris, cursou a Alliance Française e em Londres a Royal Society of Arts. Viajou, aprendeu e ensinou. Foi professora do ensino secundário em Luanda, Goa e Macau, desenvolvendo também actividade no domínio da tradução. De todas estas viagens resultaram páginas de escrita onde se combinam memória, conto, novela, romance e crónica, sem nunca esquecer as raízes minhotas.
É autora de vários contos, novelas e romances.



BOAS FESTAS,  FELIZ NATAL

domingo, 27 de novembro de 2011

NÃO SE TRATA DE UM «ADEUS»

"AMIGOS NÃO SE DESPEDEM, MARCAM UM NOVO ENCONTRO"

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No domingo passado informei que aquele meu post seria o penúltimo desta temporada. Na sequência disso direi que esta é a última postagem, por agora.
Há um ano atrás - com a convicção de que, neste momento, a promessa estaria cumprida – prometi que escreveria o meu segundo livro. Não gosto nada de faltar a promessas, mas desta vez faltei mesmo!
Vou, portanto, tentar dar a volta, e dedicar-me à sua feitura. Trata-se, como algumas pessoas sabem, das minhas memórias de África. Ficam, desde já, todos convidados para o lançamento :) que espero ocorra no ano de 2012.
A minha «CASA» vai ficar entreaberta… para receber quem quiser visitar-me. Prometo que retribuirei todas as visitas recebidas. Além disso, quando me sobrar um tempinho, visitarei os blogs amigos e… publicarei um ou outro post, só para não me esquecer de como se faz… :)
**********
A toda(o)s que, gentilmente, me desejaram melhoras, dedico estes versos, com uma recomendação:
- Mesmo quando estiver doente procure ser bem disposto – ajuda a afastar a doença.

MALDITA VIROSE

Um espirro, outro espirro
E um ataque de tosse.
Será gripe? Nada disso!
Trata-se de uma virose.

Ai, eu! Estava tão bem quando isto me deu!

Os vírus, como se sabe
São bichinhos odiosos
Põem-nos pingo no nariz
E os olhos lacrimosos.

Ai, eu! Estava tão bem quando isto me deu!

Curta é a sua vida
Mas vivem intensamente
Renovam-se em menos de um “ai”
E chateiam solenemente.

Ai, eu! Estava tão bem quando isto me deu!

Mas isto é que é um inferno!
A culpa é do Inverno.
Primavera! Vem depressa!

Para despedida, pondo os olhos no passado com projecção para o futuro… deixo-vos dois vídeos do lançamento do meu livro «LUZ AO ENTARDECER». O original tem cerca de 60 minutos, o que o torna impublicável… “Cortei” o máximo possível, mas mesmo assim tive que o dividir em duas partes.
Se não tiverem paciência para ver tudo… vão saltando… de nenúfar em nenúfar :)

LANÇAMENTO DO LIVRO LUZ AO ENTARDECER






"AMIGOS NÃO SE DESPEDEM, MARCAM UM NOVO ENCONTRO"

domingo, 20 de novembro de 2011

REENCONTRO

Como não tenho passado muito bem de saúde, e ainda não me encontro completamente bem, não tive disposição para compor um post e publicá-lo hoje.
Mas como não quero faltar com a que poderá ser a penúltima postagem (desta temporada), resolvi fazer a reposição de um poema que escrevi há dois ou três anos, e publiquei no meu blog «Olhai os Lírios do Macuá»
´Maispa Luz’ é o pseudónimo que uso para os versos que (sem quaisquer pretensões) escrevo de vez em quando.
Conto com a vossa compreensão.

REENCONTRO

(FOTO MINHA)

REENCONTRO

De repente surgiu o desejo,
de fazer-te um poema.
Dizer-te, por palavras,
Neste nosso reencontro,
O que um simples olhar
Não teria força para expressar.

Quisera, haver em mim, beleza
Para te dar.
Mas a imagem, pelo espelho reflectida,
Mostra que o tempo passou
E não parou.
E como passou!

Para este nosso reencontro
Insinuaste um sinal,
Temendo estragos que o tempo possa ter feito.
“Talvez de flor ao peito”…
Gracejaste, recordando tempos idos,
em que fingíamos ser desconhecidos.

Havia ironia na tua voz,
Brincavas.

Ironia maior a do destino:
Nas marcas deixadas pelo tempo,
Não sobrou espaço para o esquecimento.

Maispa
Luz




domingo, 13 de novembro de 2011

BALADA DAS MÃOS


Ligue o som e acompanhe Moacyr Franco neste belo poema de sua autoria

BALADA DAS MÃOS


Se os teus olhos faltarem um instante da vida
Se o coração vacilar, retardando a batida,
Se o teu corpo cansado, curvasse vencido
Na estrada comprida,
Na batalha perdida.
Tuas mãos,
Só, tuas mãos,
Gêmeas no riso e na dor,
Manterão, sempre acesa a luz,
Votiva do amor.
Mãos que se juntam na prece,
Num momento supremo,
Quando no altar duas vidas se juntam também,
Mãos que abençoam o filho
Que parte talvez, para sempre,
E depois vão tecer um casaco de lã,
Para o neto que vem,

Mãos que dão lenitivo,
Aos que foram vencidos na vida,
Mãos que nunca recusam,
Num gesto o perdão.
Mãos que arrancam das cordas,
De um violino nervoso e agitado,
A música divina
Que torna todos os homens irmãos.
Mãos que após o silêncio que cai
Sobre a vida que cai
Juntam o silêncio àquelas que um dia também foram mãos.
Também foram mãos.
Também foram mãos.

Moacyr Franco



Moacyr de Oliveira Franco (Ituiutaba, 5 de outubro de 1936) é um actor, cantor, compositor e humorista brasileiro.
Começou sua carreira nos anos 60. Sofreu um sério acidente automobilístico na década de 70, o que lhe prejudicou a carreira. Depois do sucesso que vivera na primeira metade da década de 70, nunca recuperou a imensa popularidade que tinha.

Desde então lançou vários discos, além de trabalhar nas principais emissoras do país apresentando, produzindo, escrevendo e actuando em diversos programas. Continua a seguir paralelamente a carreira de cantor, apresentando-se por todo o Brasil.


domingo, 6 de novembro de 2011

LENDA DO OÁSIS DE HUACACHINA



Há, no Peru, um local chamado oásis de Huacachina.
Trata-se de uma região formada por dunas de areia branca, tendo ao centro um belo lago verde, cercado de árvores.
Como em muitos outros sítios naquele país, existe um certo misticismo a respeito deste local.
São muitas as lendas a ele  associadas.
Dentre várias escolhi uma história de amor muito antiga, passada em tempos pré-hispânicos, que conta a vida de uma donzela que, com suas lágrimas, terá formado o lago do oásis.

A Lenda do Amor Perdido
Vivia em Cacaraca, centro indígena de alguma importância, uma donzela de olhos verdes, cabelos negros como azeviche, curvas sensuais como as vasilhas do Templo do Sol de Corikancha (Cuzco - um dos recantos mais sagrados para os incas).
Próximo, em Pariña Chica, vivia Ajall Kriña, jovem de olhar duro e forte, em combate, parecendo o bastão que se ergue na mão do guerreiro ou polida flexa em arco estendido; mas de olhar doce quando em paz, na sua terra, com um riso que fazia lembrar nota de música antiga, lançada por fatigado guerreiro, que regressa após prolongada ausência.
Ajall Kriña enamorou-se perdidamente pela jovem princesa do “pueblo”, de formas arredondadas de virgem.
Um dia, quando a jovem levava na ilharga o cântaro da água pura, a sua alma, apagada e muda até então, abriu a jaula e deixou cantar o seu coração, como uma cotovia:

Mi corazón en tu pecho cómo permitieras;
aunque penda de un abismo,muy hondo,
muy hondo o estrecho
de modo que tú me quieras
como tu corazón mismo.

A princesa Huacachina, a das lágrimas eternas, assim chamada porque desde que os seus olhos se abriram para a vida não fizeram senão chorar, não tardou em corresponder ao carinho profundo, fervoroso e intenso do feliz varão dos olhos mutantes -  de dureza ou doçura, de aço ou de mel.
Todas as manhãs e todas as tardes, nos cálidos ocasos ou nas rosadas auroras, Huacachina, cujas lágrimas parecia haverem secado para sempre, entregava a Ajall Kriña os carinhos do seu coração, as joias da sua ternura, o calor da sual alma pura e simples.
Mas a felicidade, que sempre julgamos eterna, voou como Zéfiro fugitivo que se some por entre as folhas das árvores.
Ordens de Cuzco dispunham que todos os jovens se apresentassem para sair imediatamente a combater a sublevação de um longíncuo “pueblo” beligerante.
Ajall Kriña, com a alma dilacerada, despediu-se da sua jovem feiticeira.
Ela jurou-lhe amor, carinho e fidelidade. Ele, feliz por sentir que ela não o trairia, e não entregaria o seu coração a nenhum outro, marchou com os outros do seu “pueblo” a caminho do “pueblo” revoltoso, a fim de debelar a rebelião e sufocar o movimento sacrílego contra o ‘Deus-Inca’.
Ajall Kriña, com terríveis feridas abertas, cicatrizes no corpo todo, morre em combate, depois de ter lutado como um leão.
Logo a má notícia chegou a Huacachina.
A bela princesa dos olhos feiticeiros, como louca, desesperada, a coberto das sombras da noite que se aproximava, sem que seus pais se apercebessem, caminhou pelos montes até cair prostrada, abatida, suada.
O pranto que jorrava do manancial inesgotável de seus olhos caía nas areias co

mo panos  de cambraia, e estendiam-se para além da Huega.
As lágrimas rolavam e continuaram rolando muitos minutos, dias, meses… dos seus olhos injectados pela dor.
Quando a fome, a dor, a tristeza e a desventura romperam o frágil ctistal da sua alma e a vida passou veloz, essas abundantes lágrimas, absorvidas pelas areias escaldantes, surgiram à flor da terra, depois de terem saturado as entranhas da terra, que as devolveu por não poder suportar o contágio da imensa dor.
De dia as verdes águas evaporam-se, em pequenas quantidades e sobem até ao céu, como se fossem chamadas pelos deuses para aprender sobre a dor; de noite, quando as sombras e o silêncio empurram a luz e o ruido, a princesa sai, coberta com o manto da sua cabeleira que ondula sobre o seu corpo.
Com esse manto negro, muito negro, mas menos escuro que a sua alma, continua chorando o seu pranto de ausência e tristeza.
Algumas gotas  descobrem-se de manhã, logo ao amanhecer, sobre os raros juncos que às vezes brotam; vêem-se sobre as inúmeras folhas rugosas e notam-se em cada um dos dentes das folhas penteadas da velha alfarrobeira, que estende os seus ramos levantando-se sobre a cama de areia, para pedir aos ceus piedade e consolo destinados à princesa da triste sina, do sonho desfeito, do paraíso perdido

As lágrimas desta mulher, de olhos verdes e cabelo muito negro, foram formando pouco a pouco a lagoa. Diz-se que nas noites de lua nova ainda se podem escutar seus lamentos.


domingo, 30 de outubro de 2011

A DANÇA DAS BRUXAS

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Quando eu era estudante no colégio, interna, ansiava pelas férias para ir para casa dos meus pais. O período mais desejado era o das férias grandes, três longos meses em que não pensava em livros nem cadernos, e o tempo voava entre brincadeiras, passeios de bicicleta, encontros com as amigas de infância…
Nesta altura eu andava pelos onze, doze anos, mas, ainda adorava ouvir contar histórias.
Lá em casa havia uma criada que sabia muitas histórias, que contava com grandes pormenores, e faziam as minhas delícias.
À noite, depois de jantar, quando apanhava os meus pais distraídos a ouvir rádio (naquele tempo ainda não havia televisão…), esgueirava-me para a cozinha onde a criada, a Conceição, se encontrava lavando e arrumando a loiça.
Quando ela me via sorria – já sabia ao que eu ia, e tinha um prazer especial em me contar aquelas histórias rocambolescas, que eu ouvia de olhos arregalados, e às vezes me faziam ter pesadelos, como aquela…

Era uma vez uma bruxa que se casou com um sapateiro que vivia noutra terra. Ele não sabia que ela era bruxa, nem mesmo as suas vizinhas o sabiam.
Alguns dias depois de casados, numa sexta feira de lua cheia, foram deitar-se, como de costume, e pouco depois o homem adormeceu. Sem saber porquê, pouco tempo depois de ter adormecido acordou, com uma sensação estranha. Estendeu o braço e verificou que o lugar ao seu lado estava vazio.
Intrigado e até certo ponto preocupado, receando que a sua mulher estivesse passando mal, levantou-se e foi procurá-la. Mas não a encontrou em nenhum canto da casa. E pensou:
- Onde é que aquela mulher foi a uma hora destas?
Sem encontrar resposta, meteu-se na cama mas manteve-se acordado. Nem conseguia dormir a pensar onde é que sua mulher podia ter ido. A certa altura saiu da cama e sentou-se no escuro, para a surpreender quando ela chegasse.
Pela madrugada ouviu um ligeiro ruído na cozinha, e, assombrado, viu a sua mulher desmontar da vassoura e colocá-la no seu lugar. Meteu-se precipitadamente na cama.
A mulher veio pé ante pé, e, fazendo os gestos mínimos para não o acordar, deitou-se. O marido, que fingia dormir, manteve-se quieto até à hora de se levantar.
No dia seguinte esperou que a mulher lhe explicasse o que andara a fazer; mas ela manteve silêncio em relação à noite anterior. E ele não fez perguntas. Mas passou a estar atento todas as noites.
Na noite de lua cheia seguinte, depois de se deitarem, rapidamente o marido fingiu dormir. Com todas as cautelas a mulher levantou-se, no que foi de imediato seguida pelo marido, no maior silêncio, e às escuras. Só na cozinha a mulher acendeu uma pequena lamparina.
Escondido, o homem viu a mulher pegar numa vassoura, montá-la, e dizer:
- Por cima da folha vai! – e logo de seguida subir pela chaminé e desaparecer dos seus olhos.
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Sem pensar duas vezes o homem agarrou noutra vassoura, pôs-se em cima dela, e pronunciou, com convicção:
- Por cima da folha vai – e imediatamente foi arrebatado pelos ares.
Sobrevoou árvores e arbustos até que acabou por “aterrar” numa clareira dum denso pinhal. Escondendo-se atrás dum pinheiro, ficou boquiaberto com a cena que se desenrolava ante os seus olhos:
Numa cadeira semelhante a um trono encontrava-se o diabo, com uns pequenos “cornichos”, e um manto vermelho sobre um fato de malha preto. À sua volta pequenos diabinhos tocavam uma música infernal, e em frente, na clareira, cerca de vinte ou trinta bruxas dançavam com um entusiasmo diabólico.
A certa altura o diabo levantou-se do seu trono e colocou-se no centro da roda de dança. Baixando as calças e inclinando-se para a frente, pôs o rabo à mostra.
As bruxas, uma a uma, sem perderem o ritmo da dança, iam passando junto ao diabo e, inclinando-se, davam-lhe um beijo no rabo.
O homem, por ser sapateiro, andava sempre com uma sovela no bolso. Ao ver aquele espectáculo ficou indignado, e resolveu vingar-se.
Introduziu-se na roda de dança e, quando chegou a sua vez, retirou a sovela do bolso e espetou-a no rabo do diabo. Este deu um salto, e gritou:
- Arre, que esta tem as barbas rijas!"
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Esta era uma das muitas histórias, sempre de bruxas, que a Conceição me contava.

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay




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domingo, 23 de outubro de 2011

PRAZERES DA VIDA CAMPESTRE

PRAZERES DA VIDA CAMPESTRE II


Com o decorrer dos dias viemos a verificar que as cabras Lulu e Lulubela afinal eram ovelhas. O fornecedor a quem as compráramos havia-se enganado, e trocara o nosso pedido com o de outros “supostos agricultores”, que, tal como nós, só passado algum tempo verificaram que as ovelhas que haviam comprado afinal eram cabras!
Apesar de serem muito loucas as ovelhas Lulu e Lulubela eram de raça pura – Damara – uma raça que não cria lã e por isso não precisa ser tosquiada. Para nós isto representava um grande benefício, já que não possuíamos os apetrechos necessários nem estávamos interessados em toda essa trabalheira da tosquia. Se o tentássemos seria, com certeza, mais uma experiência fracassada. Fora, aliás, essa a razão por que havíamos encomendado cabras e não ovelhas.
O tempo passava e Lulu e Lulubela não davam mostras de ganhar juízo – as suas “cabriolices” eram cada vez mais atrevidas. Cheguei mesmo a pensar se não seriam o resultado de algum cruzamento de cabra com bode ou ovelha com carneiro.
Até que, a certa altura, comecei a notar que Lulubela, a mais louca das duas, não acompanhava a irmã nos seus saltos e correrias, preferindo refastelar-se à sombra das árvores. Deitada de lado apenas esticava o pescoço para comer alguma erva que se encontrava ao seu alcance. E comecei a notar também que ela estava a ficar muito gorda.
- Não admira, passa os dias deitada à sombra… Andará ela doente?
Depressa descobri que a doença de Lulubela afinal era gravidez, confirmada pelo veterinário. Fora o resultado das suas visitas conjugais ao bode Bucky, que, apesar de muito poucas, deram os seus frutos – ou viriam a dar, dentro do tempo regulamentar.

Numa noite particularmente fria o meu marido levantou a gola de raposa da samarra, e resmungou:
- Porque será que estes animais escolhem sempre o tempo mais frio para terem as crias?
Era meia noite, estávamos deitados, quando ouvimos os gemidos aflitivos da Lulubela. Pensamos que tinha, finalmente, chegado a hora.
A gravidez da Lulubela tinha decorrido sem problemas. Contudo, já havia ultrapassado em um mês o tempo de gestação, o que nos trazia preocupados.
Ao contrário dos outros animais que davam à luz em campo aberto, Lulubela estava a ser tratada com todos os cuidados, tendo-lhe nós arranjado um canto no estábulo, com palha fofa, para ela estar instalada confortavelmente.
Ao fim de três horas de trabalho de parto, em que Lulubela se debateu com todas as suas forças, apareceu a cabeça, seguida do resto do corpo, dum lindo cordeirinho cor de champanhe.
Com Lulubela extenuada mas feliz, lambendo a sua cria, fomos novamente para a cama, para aproveitar as poucas horas que restavam até ao alvorecer.
Logo que apareceram os primeiros raios de sol saltei da cama e dirigi-me ao estábulo, para ver Lulubela e o seu bebé.
Na semi-obscuridade que ainda reinava no estábulo ouvi o som do cordeirinho a mamar, o que me deu a certeza de que tudo estava bem. Aproximei-me cautelosamente para não o assustar.
Foi então que o meu pé pisou qualquer coisa que se escondia debaixo da palha. Um berro penetrante rasgou a escuridão.
Automaticamente recuei e corri a acender a luz.
Foi então que o vi. Um ser hediondo, um cordeiro negro, gémeo do primeiro, mas grotescamente deformado, que se agitava no solo, mal se aguentando nas pernas magras e tortas.
Pelo seu tamanho calculei que pesaria cerca de 5 quilos, quando o peso normal num cordeiro recém-nascido ronda os 4 quilos.
Vencendo o horror inicial invadiu-me uma grande piedade por aquele ser disforme. Baixando-me peguei-lhe ao colo e aconcheguei-o. Reparei então que o pequeno animal tinha apenas um olho, encimado por um pequeno cornicho, mesmo no meio da testa. Como a Natureza fora cruel ao permitir que fosse gerado um ser assim!
Ainda hoje me admiro de como não o abatemos à nascença, mas ainda bem que o não fizemos.
Os primeiros dias foram bastante difíceis. O gémeo cor de champanhe assustava-se sempre que o negro tentava aproximar-se. Lulubela rejeitava-o, não o deixando mamar. Se ele insistia dava-lhe cabeçadas e atirava-o ao chão.
Mas, mesmo a sangrar, o pequeno ser levantava-se e insistia. Era um vencedor nato! Até que, apanhando a mãe a dormitar, aproximava-se e começava a mamar. E assim conseguiu vencer a resistência de Lulubela.
Ao princípio os nossos filhos não gostavam do animal. Mas quando o viram lutar para se manter vivo, começaram a admirá-lo.
Um dia a nossa filha veio a correr da escola, e quase sem fôlego, contou que na aula tinham lido uma história de um gigante que tinha só um olho e se chamava Ciclope.
- É um nome muito bonito para o cordeirinho preto. Podemos chamar-lhe assim, mamã?
Claro que concordei, e Ciclope passou a ser tratado como um animal de estimação. Andava sempre atrás das crianças; parecia até que os desafiava para jogar às escondidas.
Os miúdos tapavam-lhe o olho com um pano e escondiam-se. Ciclope procurava-os, tropeçando e desequilibrando-se, mas não desistia até os encontrar. Quando isso acontecia era abraçado carinhosamente e recompensado com um torrão de açúcar, que ele agradecia lambendo a mão ou a face rosada de quem o premiava.
- Olha, mamã, o Ciclope gosta tanto de mim!
Depois de ter nascido com um peso muito superior ao normal, era agora um animal grande, bastante maior do que o gémeo.
Com o passar do tempo reparamos que ele se tornara favorito de alguns animais. No inverno o gato encostava-se a ele, todo enroscado, recebendo o calor do seu corpo; no verão as galinhas e os cães abrigavam-se à sua sombra. Mas o seu preferido era um pintainho que tínhamos criado na incubadora. Quando Ciclope se deitava, o pintainho saltava-lhe para cima da cabeça, e começava a debicá-lo para o catar; em seguida aninhava-se junto ao cornicho. Bastantes meses depois, o pintainho já transformado num belo galo, ainda mantinha este hábito. Foram amigos até ao fim.
Chegou o Natal e os pequenos andavam entusiasmados a preparar a árvore de Natal. Quando chegou a altura de colocar as luzinhas, a menina lembrou-se:
- Vamos por luzinhas na cabeça do Ciclope.
E saíram com um conjunto de lâmpadas. Uns minutos depois ouvi grandes risadas, e espreitei pela janela. Tinham prendido uma bateria e os fios ao cornicho de Ciclope, espalhando as luzinhas pelas costas do animal.
Lulubela e o gémeo que sempre o rejeitaram, aproximaram-se, provavelmente atraídos pelas luzinhas, e começaram a cheirá-lo. Ciclope parecia sorrir. Notando-o, os pequenos exclamaram:
- Agora já tem amigos, e está a sorrir porque sabe que gostam dele.
Quando Ciclope atingiu os três anos era um animal bastante grande, mas, ao contrário de todos os outros, não tinha qualquer utilidade para a quinta – era apenas um animal de estimação. Mas, devido ao seu tamanho anormal, a sua alimentação ficava bastante cara, pois só as ervas que comia aqui e ali não eram suficientes; tínhamos que lhe dar feno que comprávamos e era caro. Tratava-se, portanto, de um animal bastante dispendioso.
Esforçamo-nos por não pensar na despesa que ele representava, pois seríamos incapazes de o abater.
Um dia em que ele andava a brincar com as crianças, correndo atrás delas, notei que parava de vez em quando, respirando com dificuldade. Chamei o veterinário para o examinar, que declarou:
- O Ciclope tem um coração muito grande, demasiado grande para o espaço onde se encontra. Por isso é natural ele cansar-se. Mas não há nada que possamos fazer. É congénito, terá que viver assim.

O Ciclope tinha 4 anos e meio quando morreu. Descobrimo-lo debaixo da sua árvore preferida. Parecia dormir, mas o coração deixara de bater. Baixei-me para o acariciar e senti um nó na garganta. Olhando para cima vi os miúdos com os olhos rasos de lágrimas.
Apercebi-me então de como Ciclope fora importante nas nossas vidas: com a sua constante necessidade de carinho ensinara-nos a amar os menos afortunados, os “diferentes”, os enjeitados…
Ele amava-nos e nós retribuíamos-lhe.

domingo, 16 de outubro de 2011

PASSEIO NO ALGARVE

Nos poucos momentos livres que tenho estou organizando os meus álbuns fotográficos.
Olhando para as fotos veio-me de repente à ideia um comentário da minha querida amiga Carla Ceres, aquando da publicação do meu passeio a Itália:

Carla Ceres disse...
Que lindo, Mariazita! Adorei. Por favor, faça uma apresentação com seus passeios em Portugal também. Minha mãe já esteve aí e diz que é maravilhoso. Beijos!
4 de Julho de 2011 17:32

A minha resposta foi “que sim”, que oportunamente o faria.
Eis a primeira. Comecei pela província mais ao sul de Portugal. Outras se seguirão, “oportunamente” …

**********

Como tem acontecido de há uns tempos para cá, há dois ou três anos fomos, com familiares, passar as duas primeiras semanas de Junho ao Algarve.

Com algumas das várias fotos feitas criei um PPS que vou partilhar convosco. Espero que gostem do passeio.

Se quiser ver em «tela cheia», depois de iniciar clic no quadradinho à direita de "Menu", no canto inferior, à direita. LIGUE O SOM.

domingo, 9 de outubro de 2011

ORAÇÃO DO COMPUTADOR




ORAÇÃO DO COMPUTADOR

Deus, abençoe a humanidade e proteja sempre meus
amigos(as), que tanta alegria me trazem...

Deus! caso não se oponha, peço para abençoar também
o meu computador...

Sei que não é normal abençoar engenhocas de aço,


mas eu lhe explico o motivo do pedido:

Sabe, essa caixinha não encerra apenas uma

barafunda de dados...

Dentro de cada um desses componentes diminutos

está um(a)amigo(a) que aprecio muito.



É verdade que alguns eu nunca vi...Nunca nos
olhamos
ou um abraço demos, mas enfim...


Eu sei do carinho deles(as) por 
mim e o meu por eles(as),
pelo afeto que trocamos e é por esta maquininha de 
metal que eu chego até onde eles estão...


Portanto, Deus, estando OK com o Senhor,
reserva um minutinho a mais para abençoar esta 
torrezinha de lata, cujo recheio é puro amor.

Deus! Abençoa o meu computador, e, especialmente
as pessoas queridas que encontro através dele!
Amém!


(autoria desconhecida)...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

PRESENTE DA MINHA QUERIDA AMIGA SÃOZITA


 Querida Mariazita, aqui deixo este selinho, como lembrança da passagem de mais um aniversário. Que este seja mais um de muitos dias felizes, junto de todos que te amam.
Mil beijinhos com muito carinho, desta tua filhota do coração.
Sãozita

DA MINHA QUERIDA AMIGA FERNANDA - NA CASA DO RAU


domingo, 25 de setembro de 2011

A COR DA LÁGRIMA

(Alguém disse: “A lágrima é o sumo de um coração espremido”.)


A COR DA LÁGRIMA


Por que a lágrima não tem cor?
Enquanto chorava, me pus a pensar.
Se fosse vermelha como sangue,
as minhas vestes poderiam manchar.

Se a lágrima fosse amarela,
a cor da alegria,
expressar tristeza
jamais poderia.

Se fosse azul,
a cor da serenidade,
eu não choraria jamais.
Seria só tranqüilidade.

Se fosse branca
como pétalas de rosas,
não seriam lágrimas...
Mas pérolas preciosas

Ainda mais uma vez
fiquei me questionando...
Por que a lágrima não tem cor?
Se ela fosse preta,
só expressaria o horror?
Por que será que a lágrima não tem cor?

A lágrima não tem cor...
Porque nem sempre exprime dor.
E se ela fosse roxa, como poderia
expressar a alegria?

As lágrimas não têm cor
porque são expressões da alma.
Quando o espírito está chorando,
o coração diz: tenha calma!

Se a lágrima tivesse cor
deveria ter a cor do amor.
Ou mesmo a cor da paixão,
que as vezes invade o coração.

Ou talvez a cor da tristeza
que abala a alma e tira a calma,
mas faz em meu ser uma limpeza.

A lágrima não tem cor,
porque ela nos aproxima do nosso Criador.
Se a lágrima tivesse cor,
eu só iria chorar de alegria.

Mas, e a lágrima da saudade?
De que cor ela seria?
E a lágrima da decepção,
de que cor seria então?

Se a lágrima tivesse cor
deveria ter a cor de um brilhante.
Como a lágrima é preciosa,
Deus deu-lhe a cor do diamante.

Wayne W. Dyer



Dr. Wayne W. Dyer nasceu a 10 de Maio de 1940, em Detroit, Michigan, USA, é professor e escritor.
Autor de livros de auto ajuda, passou grande parte da sua adolescência num orfanato de Detroit.
Psicoterapeuta, Wayne tem um doutorado em aconselhamento educacional da Wayne State University e foi professor associado da Universidade St. John, em Nova York.
De renome internacional e palestrante na área de auto-desenvolvimento, é autor de 30 livros, criou inúmeros programas de áudio e vídeos, e já apareceu em milhares de programas de televisão e rádio.

domingo, 18 de setembro de 2011

O TEMPO E O RELÓGIO

Desde tempos imemoriais que o Homem tenta aprisionar o tempo, seja em relógios, seja em ampulhetas ou quaisquer outros engenhos. Contudo, o tempo sempre lhe escapa, e continua, impávido e sereno, o seu destino.
Imagine um encontro entre o Tempo e o Relógio…

Vera Regina Marçallo Gaetani descreve-o assim:

Certa vez o tempo e o relógio se encontraram (embora estejam todo o tempo juntos)
O tempo, revoltado há muito tempo, disse ao relógio tudo aquilo que, há tempos, vinha guardando.
Que ele, tempo, tinha saudades daqueles tempos em que não existiam relógios e todo o mundo tinha tempo.
Mas quando o homem, ingrato, fabricou o relógio que começou a marcar tempo, ninguém mais conseguiu ter tempo.
O homem ficou reduzido a horas, minutos e segundos.


- Antes, naqueles tempos – disse o tempo – todo o homem tinha tempo de curtir a Natureza. Vivia com o sol de dia, dormia com a lua à noite.
Quando a lua, caprichosa, não queria aparecer, era m bando de estrelas que piscavam, brincalhonas, dando tempo para o sol nascer.
Mas agora, nestes tempos, ninguém mais tem tempo de ver se a lua vem sorrindo para a direita ou para a esquerda, se está de cara cheia ou de mau humor, sem querer aparecer.
O tempo prosseguiu, com um sorriso de tristeza:
-Antigamente – que tempos! – os homens nasciam no tempo certo em que tinham que nascer. Não havia incubadora para os fora de tempo, nem cesariana para os que passavam do tempo.
A Natureza sabia, em tempo, quando era tempo.
Hoje, o homem já obedece a você, mesmo antes de nascer.
Os médicos estão apressados e sem tempo para perder.
O relógio só ouvia e, apressado, prosseguia no sei tic-tac, sem tempo de retrucar, com medo de se atrasar.
- Noutros tempos – disse o tempo – o homem crescia sem pressa, com tempo de amadurecer. Comia sem ter horário, dormia quando tinha sono.
Fazia amor ao relento, como flores que se beijam, como aves que se aninham.
Envelhecia aos pouquinhos, como um calmo entardecer. Depois, dormia o sono profundo e, no outro despertar, abraçava-me com carinho, no infinito, no infinito…
O tempo enxugou uma lágrima, talvez de orvalho. A voz, que estava embargada, tomou uma conotação de revolta:
- Hoje, vai logo para a escola, e traz para casa um horário. Quando aprende a ler as horas recebe do pai um relógio, e, assim, ensinam-lhe, bem cedo, a maneira mais correcta de nunca ter tempo na vida.
O tempo não se preocupava mais com o tic-tac do relógio que não retrucava para não se atrasar. Continuou a sofismar com voz mais branda:
- Come apressado, sem tempo. Dorme ainda sem sono, pois, de manhã bem cedinho, você começa a gritar, arrancando-o da cama, quando ainda queria dormir.
Amor? Nem sei se ainda faz… há gente que nem tem tempo. Quando faz é no zás-trás.
Quando vê já envelheceu, sem ver o tempo passar.
Na hora do sono profundo, enterram-no apressados, para a vida continuar. E, no outro despertar, chega tão apatetado que não consegue me achar.
Ao relógio, sem nunca poder parar, só restava se calar.
Além do sentimento de culpa, que passou a carregar, a partir desse tempo, quando bate as doze badaladas no silencia da meia noite, o canto é tão melancólico que até parece chorar.


Vera Regina Marçallo Gaetani nasceu em Curitiba, Paraná.
Em 1956 casou-se e foi morar em Ribeirão Preto, São Paulo, onde reside até hoje.
É membro da ALARP – Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto, e pertence à Academia Ribeirãopretana de Letras, Casa do Poeta e Escritor de Ribeirão Preto e à Academia Feminina de Letras do Paraná e é membro do Centro Paranaense Feminino de Cultura, sendo ainda Conselheira da Sociedade Lítero Musical de Ribeirão Preto, e responsável pela Orquestra Sinfónica de Ribeirão Preto.
Em 1996 participou, pela primeira vez, de um concurso literário nacional, promovido pela Revista Brasília, do Grupo Brasília de Comunicações, obtendo dois prémios: um em conto e outro em poesia. Em 1997 conquistou seu terceiro prêmio, na modalidade "conto", no mesmo certame literário.
Tem diversas obras publicadas.

“Tudo o que fiz, em minha vida, foi por idealismo. Continuarei realizando meus trabalhos, despretensiosamente".
Vera Regina

domingo, 11 de setembro de 2011

REGRESSO DE FÉRIAS / CHAMAMENTO



Regressei, trazendo na boca um gostinho de “quero mais”…

Durante este período de férias encontrei-me com uma grande amiga, que já não via há um certo tempo. Falamos frequentemente por telefone, mas os encontros pessoais são cada vez mais escassos. A correria da vida moderna a isso nos conduz.
Este encontro trouxe à minha ideia um outro, ocorrido há bastante anos…

Quando a minha amiga Joana me falou no assunto rondava já os quarenta anos; não podia, por isso, adiar demasiado uma tomada de decisão.
Enquanto almoçamos juntas, fala, como que por acaso, na ideia que ela e o marido têm de «formar uma família».
No fundo, o que acontece é que o seu relógio biológico começou a contagem decrescente, e ela encara, pela primeira vez com seriedade, a perspectiva de ser mãe.
- O que é que tu achas? Eu e o José estamos a estudar a situação, mas gostava de ouvir a tua opinião. Achas que eu devia ter um bebé?
Com todo o cuidado, sem querer denunciar as minhas dúvidas, respondo-lhe:
- Bem… isso vai alterar completamente a tua vida…
- Sim, eu sei. Aquelas saborosas manhãs de sábado e domingo na cama, os fins de semana fora sempre que nos apetece… tudo isso se acaba.
Mas não é bem nisso que estou a pensar. Gostaria de lhe dizer que as feridas físicas da gravidez passam, mas o acto de ser mãe deixa uma marca emocional tão grande, tão viva, que ela ficará totalmente vulnerável.
Olho para as suas unhas bem tratadas e o fato elegante, e penso que, na qualidade de sua melhor amiga, tenho o dever de a alertar para certos factos. E penso:
- Não há elegância que resista a teres que mudar uma fralda. Se for apenas de chichi, até se suporta. Mas… se estiver suja? Até o estômago se revolta…
No entanto… tocar naquela pele tão suave, acariciar aquele corpinho morno e macio, beijar aqueles pequenos pés de dedinhos pequeninos…
Continuo a pensar:
- Nunca mais poderás ler uma má notícia no jornal, sem pensares: “E se fosse o meu filho?”
Todo o tipo de acidentes, incêndios, naufrágios, irão fazer o teu coração apertar-se de ansiedade e pensar: haverá algo pior do que ver um filho morrer?
Mas… e a alegria de vê-lo chegar a casa são e salvo? Nenhuma felicidade é comparável a esta.
E penso ainda:
- Sempre que houver uma nota de urgência no apelo -«Mamã!» - largarás, sem pensar um segundo, a melhor peça de cristal que tenhas entre mãos.
- A tua carreira, na qual investiste os melhores anos da tua vida, será relegada para segundo plano – a maternidade assim o exige.
Poderás até conseguir uma boa ama para o bebé, na qual confias cegamente; mas muitas serão as vezes em que terás que recorrer a toda a tua auto disciplina para não «dar um pulinho a casa» apenas para te certificares de que tudo está bem com o teu filho. E não raras vezes te questionarás se, afinal, o alto cargo que desempenhas na empresa será, «mesmo», mais importante do que o teu papel de mãe.
São estes os pensamentos que me ocorrem enquanto observo a minha amiga, tão atraente.
Devo também dizer-lhe:
- Ainda que percas o peso acumulado durante a gravidez nunca mais te sentirás a mesma.
- A tua vida, tão importante para ti neste momento, terá muito menos valor quando houver um filho.
- A relação com o teu marido também sofrerá alterações. É imprescindível que compreendas que se pode amar ainda mais um homem que está sempre pronto para mudar uma fralda, e que nunca hesita quando o filho reclama a sua atenção…
Para tudo isto e muito mais devo alertar a minha amiga. Mas… tenho também que lhe falar na alegria da mãe ao ver:
- O riso descontrolado de um bebé que toca no pêlo de um cão pela primeira vez;
- O bebé aprender a dar os primeiros passos;
- O filho aprender a jogar à bola…
Absorta nos meus pensamentos só o olhar irónico da minha amiga me faz perceber que tenho os olhos rasos de água.
- Nunca te arrependerás – digo-lhe apenas, por fim.
Depois seguro-lhe na mão e juntas erguemos uma prece por ela e por todas as mulheres que respondem ao «chamamento».

Este encontro ocorreu há muitos anos, mas recordo ainda todos os pormenores.

Agradeço, de coração, a quantos me visitaram e deixaram comentário na minha ausência. 
Bem hajam!
Visitarei TODOS tão breve quanto possível.

domingo, 7 de agosto de 2011

GUARDADO NO BAÚ

PRAZERES DA VIDA CAMPESTRE

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O meu marido e eu sempre sonháramos produzir os nossos próprios alimentos. Antes de termos comprado a quinta, imaginávamo-nos a encher travessas de legumes frescos com a modesta mensagem: “Cultivados por nós”.
Mas hoje cambaleamos os dois, carregados com sacos de 25kg de comida para 45 animais gordos, que pouco mais fazem do que viver em transe digestivo.

Como pude eu, uma citadina,

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transformar-me em empregada de mesa destas criaturas horrorosas e inúteis?
Começamos com a «nossa horta», um desastre com o qual nada aprendemos.
Após uma estação a arar, adubar, colocar cercas até ficar com as costas partidas, produzimos apenas o «tomate especial». Era um bom tomate, e foi poupado pelas toupeiras, que deixaram as suas impressões dentais em todos os outros legumes.
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A seguir vieram as cabras. Sempre havíamos gostado de leite de cabra e imaginámos que umas quantas cabeças nos forneceriam o queijo enquanto cabriolavam, como adoráveis animais de estimação.
Assim, encomendamos duas irmãs completamente loucas: a Lulu e a Lulubela.

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Embora soubesse que as cabras não davam directamente bocados de queijo branco, não sabia que esses “bichinhos” implicavam plataformas leiteiras, problemas de tetas e, o pior de tudo, ligações sexuais. As cabras só produzem leite se acasalarem, e o único bode que existia lá na terra, era o Bucky, um ser cornudo e barbudo, com um odor corporal de cortar à faca!

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Na sua primeira visita conjugal ele e as “miúdas” fizeram uma tal bagunça que causaram avultados prejuízos no celeiro, antes de comerem os peitoris das janelas.
O namoro foi cancelado.
A Lulu e a Lulubela entretêm-nos agora, de vez em quando, com travessuras no relvado da frente, batendo com as cabeças e executando alguns passos de dança que recordam ritos dionisíacos. Mas a maior parte do tempo limitam-se a mascar (geralmente com ruído) e a aliviar-se.

A seguir veio o sonho dos ovos frescos, recolhidos de manhãzinha, ainda quentes – um sonho que deu lugar à realidade de 38 galinhas irritantes. Após um vultuoso investimento em ração para galinhas, uma manhã, quando fui tirar um ovo – amarelo, sedoso e quente – a galinha quase me arrancou a mão.
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Depressa descobri que as galinhas são seres esquisitos. Até o galo nos desapontou. Esperávamos que ele nos acordasse com o seu canto orgulhoso. Mas, na Quinta Dimensão (que é o nome da nossa propriedade) o galo tem de ser abanado para acordar, ao meio dia.

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Com as galinhas vieram os gansos, que não fazem o menor sentido. Encomendámo-los num impulso, ao ver o catálogo de aves de capoeira, e ao lermos a lista de nomes: gansinhos de Toulouse.
Gansinhos! A palavra fazia-nos lembrar qualquer coisa pequenina. Mas os meus cinco bebezinhos gansos, de penugem verde amarelada, depressa se transformaram em gansos gorduchos, com 9 kg.

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Durante algum tempo agarrei-me à ilusão de que eles voariam para o Sul quando o inverno chegasse. Vira o documentário «O Voo Incrível dos Gansos da Neve» e pensei gravá-lo em vídeo para o passar aos meus gansos. Mas eles voam praticamente tanto como eu – derrapando alguns metros até à piscina de plástico dos miúdos.
Resignei-me a dirigir um balneário de gansos, mas o meu marido tinha outras ideias.
- O Natal está a chegar e os gansos estão a engordar – rosnou ele, com uma expressão diabólica à Jack Nicholson no olhar.

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Fiquei aterrada. Como podia ele pensar em assar um animal que me considerava a Mãe Gansa?
Os gansos haviam-me seguido até um lago próximo, onde os vizinhos me tinham assegurado que os podia deixar.
- Mal toquem na água, nunca mais quererão de lá sair.
Mas, quando me vim embora, eles seguiram-me em fila indiana. Voltei-me e vi-os com as cabeças cinzentas acima da erva alta, procurando seguir-me as pisadas.
Fiquei comovida. Para toda a vida. Sem penugem, com as vozes estridentes, os gansos haviam se transformado numa espécie de animais repulsivos. O único macho, Arnold, chegou mesmo a picar-me o rabo quando lhe voltei as costas. O pior é que eles estão para durar pelo menos 30 anos.

Hoje em dia compro a minha «alimentação caseira». Escolho o ganso na secção da melhor carne do mercado, e encontro ovos «acabadinhos de pôr» e «queijo natural de cabra» nas boas lojas.
Os ovos são caros, mas saem, mesmo assim, mais baratos do que os meus, que eram muito mais caros, tendo em conta coisas como os galinheiros.
Mas o melhor é poder assar um ganso, regá-lo com molho, aspirar-lhe o aroma e saber que não é o Arnold. Esse está lá fora, ocupado em relações incestuosas com as irmãs, na piscina.

ESTA É A MINHA ÚLTIMA POSTAGEM ANTES DE FÉRIAS. VOLTAREI EM MEADOS DE SETEMBRO.
ATÉ LÁ DESEJO-VOS TUDO DE BOM, E BOAS FÉRIAS A QUEM AS GOZAR NESTE MESMO PERÍODO.
BEIJINHOS PARA TODOS.

domingo, 31 de julho de 2011

LENDA DO XÁ DE SAMARKANDA



Em tempos longínquos houve, em Samarkanda, um Xá, que ficou conhecido pela sua bondade e sentido de justiça.
Um dia, resolvendo viajar, saiu da sua cidade, à data capital do Turquestão, acompanhado do seu fiel criado.

Naqueles tempos as viagens eram demoradas e cansativas, por isso o Xá resolveu fazer uma paragem.
Depois de devidamente acomodados na estalagem, disse para o seu criado:
- Vai ao mercado e traz-me fruta fresca.

O criado obedeceu prontamente.
A caminho do mercado apareceu-lhe, de súbito, a Morte, com um ar lívido, disforme, uma boca enorme.
Olhou para o criado com um enorme ar de espanto estampado no rosto.

Aterrorizado, sem fala, o criado, sem pensar em cumprir as ordens de seu amo, retrocedeu de imediato.

Ao vê-lo naquele estado, e sem a fruta, o Xá perguntou o que acontecera, ao que ele respondeu:
- Vi a morte! E ela olhava-me duma maneira assustadora.
Preciso voltar hoje mesmo para Samarkanda, encontrar a minha família. Tens que me deixar sair daqui!
O Xá deixou-o partir, mas ficou a pensar:
– Porque é que a Morte fez isto?
Como desejava mesmo a fruta, pôs de parte os seus pergaminhos, - no fundo, ele era o Xá do Turquestão – e encaminhou-se para o mercado.

Encontrando a Morte, tal como o seu criado a descrevera, perguntou-lhe:
- O que é que o meu criado te fez, ou disse, para o assustares daquela maneira, que o fez fugir sem sequer me levar a fruta?
A Morte respondeu:
- Eu não lhe disse nada! Apenas me admirei de o ver aqui, esta manhã.
É que eu tinha um encontro marcado com ele para esta noite, em Samarkanda.
É para lá que vou já de seguida.

Esta é uma lenda que, a meu ver, transmite esta mensagem:
- NINGUÉM FOGE AO SEU DESTINO


SamarKanda é uma cidade do UZBEQUISTÃO,
ex-república soviética da Ásia Central. 



No século VII Samarkanda tornou-se um ponto de escala na Rota da Seda.

Aqui se encontravam algumas das principais etapas da Rota da Seda

(Reedição da publicação no meu blog HISTÓRIAS DE  ENCANTAR)