sexta-feira, 1 de julho de 2022

TEXTO DRAMÁTICO


AS MÃOS DO AMOR

No meio do palco um homem aparentando 70 anos, levemente curvado, olha para as mãos que tremem muito ligeiramente.

SALVADOR – Como estão diferentes as minhas mãos!

(Olhando para o público) – Estão a ver estas mãos? Nem sempre foram assim. Não, não adianta quererem ser simpáticos; alguns de vós conhecem-me bem, e gostam de me agradar. Porém… eu sei que elas tremem um pouco. Mas já foram muito firmes.

Todas as vezes que seguravam um bisturi não podiam ter maior firmeza! Eram fortes, estas mãos…

Com toda a precisão cortavam apenas o essencial, procurando causar o menor dano. Sim, que as cicatrizes que resultavam das cirurgias que eu fazia pareciam um fiozinho de teia de aranha.

As senhoras ficavam todas felizes quando viam o resultado do meu trabalho. Aquelas carnes bonitas, depois de passarem pelas minhas mãos, pareciam mais encantadoras.

(Dá uma risadinha, e continua) – Algumas até ficavam com mais graça; aqueles risquinhos, muito fininhos, davam-lhes um certo charme. Que algumas, coitaditas, bem precisavam … (Sorri, com ar matreiro)

– Quando iam para a praia com os seus lindos biquínis, muitas vezes ouviam piropos… E como elas gostavam de ouvir:  “Olha, ali vai mais uma barriguinha do doutor SALVADOR! “

(Levanta a cabeça, mostra um ar orgulhoso) Sim, que as barrigas do doutor SALVADOR não eram de se deitar fora… eram perfeitas! Acreditem! Algumas das minhas clientes até mandavam tatuar uma borboleta, ou uma rosa, ou o que lhes apetecesse… bem junto da cicatriz, para chamar a atenção.

(Olha para as mãos) – Posso dizer com orgulho que estas mãos espalharam muito Amor ao longo dos meus longos anos…

(Põe um ar meio tristonho) – Alguma dor, também… Quando o parto era mal sucedido e mais um anjinho ia para o céu… Não foram muitos, por Deus! Podem contar-se pelos dedos de uma destas mãos (levanta uma mão, abrindo os dedos). Mas foram os suficientes para me fazer sofrer muito…

Ainda me lembro (olha de frente para o público com ar interrogativo) e como poderia esquecer? Quando tive nas mãos aquele corpinho inocente, o pequeno coração a vacilar… sem saber se havia de continuar a bater ou dar-se por vencido… Também o meu corpo cansado teve vontade de curvar-se, abatido, perante uma batalha que me parecia perdida… Mas aquele pequenino coração mostrou-me que não se podem baixar os braços, é preciso lutar para viver… E começou a bater forte. Parecia querer dizer-me: Tenho uma estrada comprida para percorrer, e neste momento preciso da tua ajuda. E, com a força do Amor, juntos vencemos! (Num aparte, em tom orgulhoso) – Hoje está um homem! Forte! Com um coração de ferro!

(Suspira profundamente e volta  ao tom normal) – Não nos deixemos abater pela tristeza! A verdade é que a vida me proporcionou momentos muito felizes… e concedeu-me o dom de, com estas mãos (baixa os olhos para as mãos) poder fazer muita gente feliz. (Olha directamente para o público, estendendo as mãos) – Já repararam que são gémeas? Gémeas verdadeiras, monozigóticas. Desenvolveram-se a partir de duas metades da mesma pessoa, que sou eu, e formaram-se a esquerda e a direita. Por isso são do mesmo sexo, são iguais (junta as palmas das mãos) Vêem? São mesmo iguais. (Separa as mãos) - Quando uma sofre… a outra chora; quando uma ri… a outra bate palmas de contente. Mas… no momento em que se erguem em acção de graças por tantas bênçãos que recebi (junta as mãos) … aí encostam-se, bem juntinhas, com as pontas dos dedos voltados para o alto.

(Com um sorriso sonhador, mantém a posição das mãos) – Lembro-me quando a minha filha se casou… No altar, quando aquelas duas vidas se uniram, também as minhas mãos fizeram o mesmo, orando para que o Amor os acompanhasse ao longo da vida… e se mantivesse sempre acesa a sua luz.

(Estende as mãos em frente, as palmas voltadas para cima, e com um ar meio triste, continua) – E quando o meu filho partiu à procura de vida melhor … foi com estas mãos que o abençoei e, com Amor e lágrimas, lhe desejei breve regresso.

(Faz uma breve pausa. Volta as palmas das mãos para baixo e, olhando-as, continua)

Hoje as minhas mãos tremem um pouco, sim. Tremem porque esta manhã receberam uma notícia triste. Abriram uma carta onde estava escrito: Vimos por este meio comunicar que, a partir desta data, os seus serviços nesta clínica estão dispensados.

Dispensados! Ouviram bem? (repete a palavra, soletrando pausadamente) DIS PEN SA DOS!

Como quem deita fora um trapo velho sem qualquer utilidade, dizem que já não precisam de mim!

Mas estão muito enganados, porque, ainda que o SALVADOR estivesse vendado, estas mãos saberiam (soletra a palavra) PER FEI TA MEN TE como trazer um bebé ao mundo. Não foi em vão que o fizeram anos a fio…

(Descai os ombros, em sinal de desalento e tristeza) – Vivemos numa sociedade muito injusta. E estas mãos que tinham ainda tanto Amor para dar…

(Remata com ar conformado)

Quando um dia eu tiver de fazer a Grande Viagem… alguém irá colocar estas minhas mãos, amorosamente, sobre o meu peito (coloca as mãos uma sobre a outra, na horizontal, junto ao peito) e eu partirei feliz porque, com Amor, fiz muita gente feliz.

E termina:

Sinto-me realizado porque toda a minha vida espalhei(Faz uma pausa, mete a mão ao bolso e retira um papel que desdobra, esticando-o com as mãos. Nele está escrito em letras grandes a palavra “Amor”, que mostra ao público)

SALVADOR (num grito) - AMOR!

 CAI O PANO

Maria Caiano Azevedo

Para quem, eventualmente não saiba. TEXTO DRAMÁTICO  é, em Escrita Criativa, o nome que se dá a um texto destinado a ser representado. Há quem opte por chamar-lhe Texto Teatral, embora haja características diferentes entre ambos.

Como, por motivos particulares, vou ter de fazer uma pausa indeterminada (dois, três , quatro meses…) decidi partilhar convosco este “TEXTO DRAMÁTICO” que recebeu  o 1º prémio num concurso a que concorri.

Durante o tempo que vou estar ausente, desejo a todos, amigas e amigos, tudo de bom.

Um abraço, já com saudades…

Aproveito a oportunidade para informar que já foi publicado o meu último livro, “SEGREDOS”.

Se alguém estiver interessado em adquiri-lo pode pedir-mo directamente por email; ainda tenho alguns exemplares disponíveis.

Obrigada.