No meio
do palco um homem aparentando 70 anos, levemente curvado, olha para as mãos que
tremem muito ligeiramente.
SALVADOR
– Como estão diferentes as minhas mãos!
(Olhando para o público) – Estão
a ver estas mãos? Nem sempre foram assim. Não, não adianta quererem ser
simpáticos; alguns de vós conhecem-me bem, e gostam de me agradar. Porém… eu
sei que elas tremem um pouco. Mas já foram muito firmes.
Todas as
vezes que seguravam um bisturi não podiam ter maior firmeza! Eram fortes, estas
mãos…
Com toda
a precisão cortavam apenas o essencial, procurando causar o menor dano. Sim,
que as cicatrizes que resultavam das cirurgias que eu fazia pareciam um
fiozinho de teia de aranha.
As
senhoras ficavam todas felizes quando viam o resultado do meu trabalho. Aquelas
carnes bonitas, depois de passarem pelas minhas mãos, pareciam mais
encantadoras.
(Dá uma risadinha, e continua)
– Algumas até ficavam com mais graça; aqueles risquinhos, muito fininhos, davam-lhes
um certo charme. Que algumas, coitaditas, bem precisavam … (Sorri, com ar
matreiro)
– Quando
iam para a praia com os seus lindos biquínis, muitas vezes ouviam piropos… E
como elas gostavam de ouvir: “Olha, ali
vai mais uma barriguinha do doutor SALVADOR! “
(Levanta a cabeça, mostra um ar orgulhoso) Sim, que as barrigas do doutor SALVADOR não eram de se
deitar fora… eram perfeitas! Acreditem! Algumas das minhas clientes até
mandavam tatuar uma borboleta, ou uma rosa, ou o que lhes apetecesse… bem junto
da cicatriz, para chamar a atenção.
(Olha para as mãos) – Posso
dizer com orgulho que estas mãos espalharam muito Amor ao longo dos meus longos
anos…
(Põe um ar meio tristonho)
– Alguma dor, também… Quando o parto era mal sucedido e mais um anjinho ia para
o céu… Não foram muitos, por Deus! Podem contar-se pelos dedos de uma destas
mãos (levanta uma mão, abrindo os dedos). Mas foram os suficientes para me fazer sofrer muito…
Ainda me
lembro (olha de frente para o público com ar
interrogativo) e como poderia
esquecer? Quando tive nas mãos aquele corpinho inocente, o pequeno coração a
vacilar… sem saber se havia de continuar a bater ou dar-se por vencido… Também
o meu corpo cansado teve vontade de curvar-se, abatido, perante uma batalha que
me parecia perdida… Mas aquele pequenino coração mostrou-me que não se podem
baixar os braços, é preciso lutar para viver… E começou a bater forte. Parecia
querer dizer-me: Tenho uma estrada comprida para percorrer, e neste momento
preciso da tua ajuda. E, com a força do Amor, juntos vencemos! (Num aparte, em tom orgulhoso) – Hoje está um homem! Forte! Com um coração de ferro!
(Suspira profundamente e volta ao tom normal)
– Não nos deixemos abater pela tristeza! A verdade é que a vida me proporcionou
momentos muito felizes… e concedeu-me o dom de, com estas mãos (baixa os olhos
para as mãos) poder fazer
muita gente feliz. (Olha directamente para o público, estendendo as mãos) – Já repararam que são gémeas? Gémeas verdadeiras,
monozigóticas. Desenvolveram-se a partir de duas metades da mesma pessoa, que
sou eu, e formaram-se a esquerda e a direita. Por isso são do mesmo sexo, são
iguais (junta as
palmas das mãos) Vêem? São mesmo
iguais. (Separa as
mãos) - Quando uma sofre… a outra chora;
quando uma ri… a outra bate palmas de contente. Mas… no momento em que se
erguem em acção de graças por tantas bênçãos que recebi (junta as
mãos)
… aí encostam-se, bem juntinhas, com as
pontas dos dedos voltados para o alto.
(Com um sorriso sonhador, mantém a posição das mãos) – Lembro-me quando a minha filha se casou… No altar, quando
aquelas duas vidas se uniram, também as minhas mãos fizeram o mesmo, orando
para que o Amor os acompanhasse ao longo da vida… e se mantivesse sempre acesa
a sua luz.
(Estende as mãos em frente, as palmas voltadas para cima, e com um ar
meio triste, continua) – E quando o
meu filho partiu à procura de vida melhor … foi com estas mãos que o abençoei
e, com Amor e lágrimas, lhe desejei breve regresso.
(Faz uma breve pausa. Volta as palmas das mãos para baixo e,
olhando-as, continua)
Hoje as
minhas mãos tremem um pouco, sim. Tremem porque esta manhã receberam uma
notícia triste. Abriram uma carta onde estava escrito: Vimos por este meio
comunicar que, a partir desta data, os seus serviços nesta clínica estão
dispensados.
Dispensados!
Ouviram bem? (repete a
palavra, soletrando pausadamente) DIS PEN SA DOS!
Como
quem deita fora um trapo velho sem qualquer utilidade, dizem que já não
precisam de mim!
Mas
estão muito enganados, porque, ainda que o SALVADOR estivesse vendado, estas
mãos saberiam (soletra a
palavra)
PER FEI TA MEN TE como trazer um bebé
ao mundo. Não foi em vão que o fizeram anos a fio…
(Descai os ombros, em sinal de desalento e tristeza) – Vivemos numa sociedade muito injusta. E estas mãos que
tinham ainda tanto Amor para dar…
(Remata com ar conformado)
Quando
um dia eu tiver de fazer a Grande Viagem… alguém irá colocar estas minhas mãos,
amorosamente, sobre o meu peito (coloca as mãos uma sobre a outra, na horizontal, junto
ao peito)
e eu partirei feliz porque, com Amor,
fiz muita gente feliz.
E termina:
Sinto-me
realizado porque toda a minha vida espalhei…
(Faz
uma pausa, mete a mão ao bolso e retira um papel que desdobra, esticando-o com
as mãos. Nele está escrito em letras grandes a palavra “Amor”, que mostra ao
público)
SALVADOR
(num grito) - AMOR!
Maria Caiano Azevedo
Para quem, eventualmente
não saiba. TEXTO DRAMÁTICO é, em Escrita
Criativa, o nome que se dá a um texto destinado a ser representado. Há quem
opte por chamar-lhe Texto Teatral, embora haja características diferentes entre
ambos.
Como, por motivos particulares,
vou ter de fazer uma pausa indeterminada (dois, três , quatro meses…) decidi
partilhar convosco este “TEXTO DRAMÁTICO” que recebeu o 1º prémio num concurso a que concorri.
Durante o tempo que vou
estar ausente, desejo a todos, amigas e amigos, tudo de bom.
Um abraço, já com
saudades…
Aproveito a oportunidade para
informar que já foi publicado o meu último livro, “SEGREDOS”.
Se alguém estiver interessado em adquiri-lo pode pedir-mo
directamente por email; ainda tenho alguns exemplares disponíveis.
Obrigada.