“O SILÊNCIO É UM AMIGO QUE NUNCA TRAI” – Confúcio
Há dias encontrei a minha amiga Márcia, que já não via há duas semanas, e com quem me detive a conversar.
Ao princípio achei-a diferente. Não sabia dizer em quê,
mas depois de quase duas horas de conversa, percebi – a Márcia estava muito mais
calma, aparentava, e transmitia, uma paz interior e uma serenidade que eu não
lhe conhecia.
- Tenho uma coisa para te contar – disse ela depois
dos efusivos abraços e beijos, próprios de quem é bastante expansivo, como a
minha amiga.
- Estou ansiosa por ouvir – respondi. Pensei que, com
o que tinha para me confidenciar, eu iria entender a razão das mudanças que lhe
notara.
- Acabei de passar por
uma experiência maravilhosa – começou Márcia. Estive no que se pode chamar um
Retiro Espiritual de Silêncio.
Eu apenas esbocei um sorriso céptico. A minha amiga,
de vez em quando, tinha destas coisas… apetecia-lhe afastar-se de tudo e de
todos, na convicção de que o recolhimento lhe faria bem ao espírito e lhe
restituiria a calma necessária para enfrentar o dia-a-dia.
- Conta! Quero saber tudo – respondi, com muitas
reticências interiores.
- Conto, sim, até
porque sinto que me fez muito bem e penso que te faria bem a ti, também…
Já tinha ouvido falar
nos benefícios da meditação, e eu própria já tinha tido uma breve experiência,
de apenas um fim-de-semana e numas condições mais ou menos precárias, nada de
muito sério.
Desta vez foi
diferente, e para melhor, muito melhor…
O “programa” decorre,
durante o Inverno, de sexta a sexta, das 13H às 13H. No Verão é diferente… Mas
deixemos de parte esses pormenores.
À chegada fomos
recebidos amavelmente pela equipa de serviço. Perguntaram onde queríamos ficar
instalados. Como a resolução de irmos para lá foi tomada em cima da hora, fomos
um pouco à aventura, sem reserva, acreditando que, pelo facto de estarmos no
Inverno, a afluência não ia ser muito grande. O nosso “feeling” estava certo.
De facto o grupo dessa semana era pequeno, apenas umas 15 pessoas, mais ou
menos.
Depois de dizermos que
queríamos um quarto, e informarmos que nunca tínhamos estado lá anteriormente,
acompanharam-nos numa pequena visita guiada para conhecermos as instalações.
Ficámos a saber que também há bangalows, que, neste tempo, são pouco
requisitados e, quem quiser, pode levar tendas de campismo. Seguiu-se uma
pequena reunião de esclarecimento onde nos disseram que iríamos passar ali uma
semana em completo isolamento do mundo exterior, sendo-nos sugerido,
gentilmente, tirar
o relógio, desligar o telemóvel, evitar o contacto com o exterior e respeitar o
silêncio o mais possível. Até à hora do jantar, que é servido às 19 horas,
pudemos passear pelos jardins e mata. O silêncio que ali se vive é quase
palpável e transmite uma paz indescritível.
Mas não será silêncio a mais? – atrevi-me a
perguntar.
- Nem
pensar! Os dias que se seguiram, ainda que obedecendo a uma certa rotina, foram
todos diferentes. Não é preciso ter experiência prévia de meditação, nem
obedecer a qualquer critério de fé. Seja qual for a religião ou credo todos são
tratados de igual modo. Aliás, nunca ninguém nos perguntou se éramos ou não
crentes ou praticantes fosse do que fosse.
Como
tivemos a sorte de apanhar um dia de sol brilhante e temperatura amena, pudemos
passar pela experiência de praticar exercícios que se assemelham bastante ao
ioga, que são realizados no exterior, de pés descalços sobre um aconchegante
relvado. Alguns destes exercícios são executados em posição fixa, imóvel;
outros em movimentos muito lentos, quase etéreos, ao som de música muito suave,
relaxante.
Com
esta e todas as outras práticas pretende-se pôr de lado as nossas rotinas, o
“mesmismo” do quotidiano, que tantas vezes se torna fastidioso. A intenção
final é encontrar a fonte de paz e alegria profunda
que reside no nosso íntimo, lá bem no fundo do nosso ser. Como criaturas da
Natureza, devemos cultivar uma comunhão absoluta com ela, o que se consegue
através da meditação nos espaços verdejantes, em silêncio absoluto, “ouvindo”
apenas o respirar do “verde” que nos rodeia.
Eu estava verdadeiramente impressionada com a
calma e placidez que a minha amiga Márcia ostentava, pelo menos aparentemente.
Sabendo eu como ela é uma pessoa nervosa, ainda que se esforce por ocultar essa
sua peculiaridade… sentia-me tentada a acreditar em milagres… Agora não tinha a
menor dúvida de que o tal Retiro lhe fizera muito bem. Só me falta saber se os
efeitos vão ser duradouros…
Parecendo adivinhar os meus pensamentos,
Márcia interrompeu-os, continuando:
-
Sinto-me tão bem que tu nem podes imaginar! É como se tivesse encontrado um
novo equilíbrio; sinto-me em sintonia com o que me rodeia, mais próxima dos
outros e da Natureza… É como se estivesse a descobrir aspectos da vida que me
eram desconhecidos, como se estivesse a vê-los pela primeira vez.
Sei
que não consegui um estado de alma tão elevado como algumas das pessoas que lá
estavam. Creio que, em parte, isso se deve à minha maneira de ser – nada fácil,
como sabes – mas também porque foi a primeira vez, era tudo, praticamente, novo
para mim… Sei também que me é muito difícil uma concentração absoluta, sou
bastante dispersa, o meu pensamento não pára sossegado, anda sempre a divagar… (nesta altura
esboçou um leve sorriso cúmplice) e só
com grande esforço consigo concentrar-me numa só coisa. E essa concentração é
um ponto essencial para a meditação.
- Pois, eu conheço-te há tempo suficiente
para saber que tu andas sempre a mil… Por isso, se me dissesses que tencionavas
ir para o tal Retiro… eu poria muitas reticências sobre os benefícios que irias
colher. Mas agora tenho de admitir que estás diferente… ou, pelo menos, assim
parece… - mais uma vez a interrompi, com o que Márcia não se incomodou
minimamente.
- Eu
sei. E não és só tu, qualquer outra pessoa diria o mesmo; excepto uma, que me
conhece melhor do que eu própria, me aconselhou a fazê-lo.
As
duas sessões diárias de meditação, uma de manhã e outra à tarde, eram sempre
precedidas de uma breve alocução que funcionava como que um ensinamento. A
própria voz do “acompanhante” era baixa, suave como um calmante. Aprendíamos,
primeiro, como relaxar o corpo e aquietar a mente. Quando a voz ia baixando de
tom até se tornar num murmúrio, e apenas ouvíamos o silêncio… o nosso espírito
já tinha subido para outro nível. Nos noventa minutos que se seguiam sentíamo-nos
conectados com a magia da vida.
A
meditação era seguida de um passeio pela mata, sempre que o tempo o permitia –
o que aconteceu a maior parte dos dias, apesar de a temperatura não ser muito
amena. Como tínhamos ido prevenidos com agasalhos, não houve problemas de frio.
Antecipadamente
tínhamos sabido que era aconselhável levar roupa e sapatos práticos (fatos de
treino e ténis); toalha e chinelos de banho; casaco e chapéu
(ou boné) e um bloco de notas.
Estranhámos a indicação do bloco de
notas que, afinal, veio a revelar-se muito útil. Nas pequenas reuniões que
havia a seguir ao pequeno-almoço (servido às 9 horas) podíamos tomar os
apontamentos que quiséssemos. Nós fizemos imensas anotações – em qualquer
altura ou momento de dúvida, podemos sempres consultá-las e trocar impressões.
Levantávamo-nos às 7 horas, tratávamos
da nossa higiene e quase sempre dávamos um pequeno passeio ou simplesmente
olhávamos a paisagem ao longe, até à hora do pequeno-almoço.
As manhãs eram ocupadas com a
meditação e o passeio pela mata, este também em silêncio (aliás, o silêncio
predominava todo o tempo).
Às 13 horas era servido o almoço. A
alimentação era ovo-lacto vegetariana, muito bem confeccionada, com produtos biológicos
criados na quinta a que pertence o “Retiro”. Mas quem quisesse podia optar por
comida vegetariana pura.
Como sabes não tenho problemas, e até
gosto, da comida vegetariana, por isso a alimentação agradou-me.
As tardes eram passadas na meditação,
de que já te falei, em passeios, observação da Natureza, e palestras de
orientação, onde era permitido fazer perguntas e esclarecer dúvidas.
Às 19 horas serviam o jantar, que era
sempre acompanhado de música ambiente relaxante, num tom bastante baixo.
Este prolongava-se sempre para além das
20 horas porque tudo se passava dentro duma grande calma e placidez, como se se
tratasse de uma preparação para noites repousantes (pensámos que era mesmo essa
a intenção).
Das 20,30 até às 22 podíamos assistir
a uma espécie de danças em que se misturavam posições de ioga com passos
orientais, ao som de música de flauta tocada ao vivo.
Quem não quisesse assistir podia
entreter-se a ler ou escrever, ou como melhor entendesse. O recolher era às 22
horas.
- Com uma explicação tão pormenorizada e
exaustiva, até me fizeste ter vontade de seguir o teu exemplo e fazer essa
experiência – disse eu, num tom um pouco sonhador.
- E tu pensas que eu estive para aqui a
falar, contando-te todos estes pormenores só para me ouvir a mim mesma? Não,
minha querida, o meu relato não foi inocente… A minha intenção era exactamente
essa – convencer-te a experimentar o que, a mim, me fez tão feliz.
Danadinha,
a minha amiga Márcia!