SEGREDOS – CAPÍTULO V
… “Mas…para o que lhe havia de dar… Se não fosse aquele ‘pequeno
defeito’ eu até era capaz de dar umas voltinhas com ele no carrocel! Noutras
circunstâncias não me escapava – continuou o seu raciocínio, bem-humorada.
Que desperdício, santo Deus!” – e riu baixinho.”
SEGREDOS –
CAPÍTULO V
Depois de fazer inúmeros telefonemas – toda a gente
tinha que saber que ela já era avó – Nanda sentou-se no sofá da sala, exausta,
com um copo de vinho na mão, pensando nos últimos acontecimentos. Um sorriso
estampou-se-lhe no rosto ao lembrar-se da reacção do seu “ex” quando lhe deu a
notícia.
Tó Zé ficou delirante. As perguntas saíam-lhe em
catadupa, quase não dando tempo a que Nanda pudesse responder. Queria saber
tudo, inclusive a morada do filho e da nora, para, no dia seguinte, se deslocar
ao Alentejo. Foi preciso Nanda impor-lhe calma, coisa que a si própria faltava.
Quando, finalmente, conseguiu falar, disse-lhe:
- Em vez de
pensares em ir lá é melhor resolveres a vinda deles para cá…
- Já estou a
tratar do assunto e dentro de dois ou três dias já podem vir – respondeu,
deixando transparecer toda a felicidade que sentia.
Depois daquelas pequenas tarefas que toda a mulher
executa antes de se deitar, Nanda foi para a cama. Deu voltas e mais voltas mas
o sono teimava em não aparecer. Vencida pelo cansaço adormeceu já depois das
quatro horas.
Encontrava-se profundamente adormecida quando começou
a ouvir ao longe o toque do telemóvel. A princípio aquele som integrou-se no
sonho – estava com o netinho ao colo quando uma amiga ligou para saber
notícias. Porém… o som continuava, insistente, acabando por acordá-la.
Foi com muito má vontade que estendeu o braço para
apanhar o telemóvel. Ao ver que o relógio marcava sete horas, resmungou,
contrariada: -“ Mas quem é que se lembra de ligar a estas horas da madrugada?”
Temendo que fosse o filho com alguma notícia menos boa
– as avós vivem com o coração nas mãos – pegou no telemóvel e nem olhou para o
visor.
-
Está? – atendeu, com a voz meio entaramelada.
-
É a D. Nanda? Onde é que a senhora está? – era a voz do Chico.
-
Onde é que eu estou? Essa agora! Então onde é que eu havia de estar às sete da
manhã? Estou na cama, naturalmente! E digo-lhe desde já que isto não são horas
de telefonar a ninguém – resmungou Nanda, mal-humorada.
-
Na cama? Oh D. Nanda, eu estou à sua espera há um ror (1) de tempo! Então a senhora esqueceu-se que hoje é dia da Feira
de São Macário das Alminhas? Já devíamos estar a caminho – Chico
falava apressadamente, como se quisesse incutir rapidez na interlocutora.
-
A caminho de quê, homem de Deus? Eu lá sei alguma coisa do Macário ou das almazinhas!
-
Pois é, D. Nanda, a senhora tem que começar a fazer como eu, senão não há nada
p’ra ninguém.
-
Não sei do que é que o senhor está a falar. E, se quer que lhe diga, eu neste
momento só quero dormir, que passei muito mal a noite – Nanda
preparava-se para desligar.
-
Qual dormir, qual carapuça! A senhora tem que vir agora ter comigo, que já
vamos chegar atrasados. E volto a dizer, a senhora tem que começar a fazer como
eu…
Com todo este arrazoado
Nanda acabara por perder o sono, e estava agora desperta.
-
Afinal, o que é que eu tenho que começar a fazer? O que é isso tão importante
que o senhor faz e que eu devo começar a imitar?
-
Consultar o Almanaque, D. Nanda! – Chico falava como se o que dizia
fosse a coisa mais evidente deste mundo, estranhando que ela não soubesse.
-
Consultar o Almanaque? – o espanto de Nanda era enorme. Para quê?
-
Ora para quê! Para ver os inventos do dia a seguir! – Chico
continuava espantado com a ignorância de Nanda. – Só assim o negócio pode andar p’ra frente!
Nanda estava boquiaberta. “Em
que é que os inventos podiam influenciar os negócios? Só se inventassem uma
frigideira para farturas que não libertasse cheiro… Seria desse invento que ele
estava à espera? Mas, tanto quanto ela sabia, não havia almanaques de inventos.
De que estaria ele a falar?”
-
Oh senhor Francisco, desculpe lá, mas o senhor tem a certeza do que está a
dizer?
-
Como assim? Não há nada para ter certeza, é só ler o Almanaque. Vem lá tudo, os
inventos todos. Pensa que eu adivinhei que hoje é a festa de São Macário das
Alminhas? Não senhora, eu vi foi no Almanaque. E vá-se preparando que amanhã é
a Feira de São Torcato. Não podemos faltar a nenhum destes inventos, o
dinheirinho não cai do céu! E rematou:
-
Não se demore, D. Nanda!
Agora sim! Finalmente Nanda
entendeu! Os inventos a que se referia o Chico eram, simplesmente, EVENTOS! E
começou a preparar-se rapidamente, não fosse o ‘invento’ acabar antes de eles
lá chegarem…
Com tudo o que acontecera nas
últimas horas acabara por se esquecer do que combinara com o Chico no dia
anterior - começar a fazer a tal experiência de andar com a carrinha a vender
“as melhores farturas do mundo", como ele dizia. Agora teria que ir falar com
ele e convencê-lo a ir sozinho lá para o “invento”,
já que, depois dos últimos acontecimentos, não tinha forças nem para “pegar uma
gata pelo rabo”. Até porque, com a aproximação da chegada do netinho - e dos
pais, é claro! - tinha muitas coisas a preparar e não podia perder tempo com a
venda das farturas.
Em tudo isto pensava
enquanto se preparava para ir ao encontro de Chico. Passou uma água no rosto –
a que os mexicanos chamam “fazer uma manita de gato”- uma escovadela rápida ao
cabelo, e saiu.
Chico aguardava-a junto à
carrinha, dando passinhos para cá e para lá, denotando impaciência e
nervosismo.
Ao vê-la exclamou
rapidamente:
- Oh D. Nanda, isto não pode voltar a acontecer. A estas horas já
devíamos ter a tenda armada, e ainda aqui estamos. Assim o caixafló vai-se
abaixo!
- Olhe, senhor Francisco, nós precisamos de conversar… - Nanda
preparava-se para lhe dizer que queria desistir do negócio, para o qual, na
verdade, nem tinham acertado condições.
- Qual conversar, D. Nanda? Nós temos é que nos pôr a andar sem demora! Falamos pelo caminho. Vá, sente-se
ao volante e conduza a carrinha, para se ir habituando.
Contrariada, mas temendo a
reacção de Chico, Nanda subiu para a cabine da carrinha, sentou-se ao volante
e, contra as suas próprias expectativas, pôs o motor em marcha e arrancou sem
dificuldade. O local para onde se dirigiam não era muito longe e rapidamente lá
chegaram. Depois, foi uma lufa-lufa
(2) até que tudo estivesse em ordem para começar a fazer as farturas. Quando,
finalmente, colocou a massa na frigideira, Nanda já transpirava por todos os
poros, e dizia mal da sua vida.
A clientela não parava de
chegar, e ela via-se aflita para satisfazer toda a gente com a rapidez
necessária. Chico limitava-se a receber os pagamentos e a incitá-la para
que se despachasse, “senão o caixafló não
se aguenta“.
“Quem
não se aguenta sou eu” – pensava Nanda, já completamente arrependida de
se ter metido naquela alhada.
Por volta da uma hora da tarde a
clientela começou a rarear, e Chico comunicou que não valia a pena pôr mais
massa na frigideira. Arrumaram tudo e iniciaram o caminho de regresso.
Nanda não tivera ainda
oportunidade de comunicar a sua decisão de não trabalhar no negócio das
farturas. Por isso baixou um pouco a velocidade e começou:
-
Senhor Francisco, como eu lhe disse esta manhã nós precisamos conversar…
- Tudo bem, D. Nanda, agora já podemos falar. Ora diga lá…
- Não sei se o senhor sabe que o meu filho Luís já é pai… - começou, sem saber muito bem como abordar o assunto.
- Sei sim, D. Nanda, lá na rua não se fala noutra coisa. Até parece que
foi o filho da rainha da Inglaterra que foi pai… - riu Chico.
- Pois eu lhe digo que para mim é muito mais importante ser filho do meu
Luís… - respondeu , meio abespinhada.
(3)
-Ó D. Nanda, tenha calma, eu não disse isto por mal. Mas diga lá o que é
que quer conversar comigo.
- Olhe, senhor Francisco, eu vou directa ao assunto. Eu não posso
continuar a trabalhar consigo. Agora que… - Ele interrompeu-a, não a
deixando terminar a frase.
- Que conversa é essa, ó D. Nanda? A senhora comprometeu-se comigo. E lá
porque o nosso contrato foi de “de trinta e um de boca”, para mim vale tanto
como se fosse feito no cartório.
- Isso não é bem assim… Se o senhor se lembra, nós nem sequer acertámos
as condições, apenas falámos que eu trabalharia uma ou duas semanas à
experiência, mas não combinámos quanto eu iria ganhar… - Nanda agora falava
rapidamente, sem qualquer hesitação.
-
Pois… não falámos, mas o que a senhora precisa de ganhar é experiência. Não
combinámos nenhum valor, é verdade, mas eu fazia conta de lhe dar uma gorjeta
ao fim da experiência…
- Uma gorjeta? – Nanda mostrava-se estupefacta, de tal modo que deu
uma guinada no volante, o que fez Chico gritar “Cuidado!”. Uma gorjeta? – insistiu. Então
o senhor acha que eu sou mulher de receber gorjetas? Francamente, senhor
Francisco, o senhor decepcionou-me por completo!
-
Ó D. Nanda, a senhora irrita-se por tudo e por nada. Eu não quis ofendê-la,
Deus me livre!
-
Olhe, senhor Francisco, guarde as suas gorjetas para quem quiser, mas comigo
não conta mais para andar pelos ‘inventos’? Era só o que me faltava – rematou num
tom que não admitia réplica.
Chico silenciou, com uma
ruga na testa, apreensivo.
-
D. Nanda, eu peço que me desculpe se a ofendi. Acredite que não foi por mal… E lamuriou,
quase com lágrimas na voz:
-
A senhora sabe muito bem que eu sempre tive por si a maior consideração e
estima. Para mim a senhora era quase como se fosse da família, com o devido
respeito. Se a senhora não quer continuar a trabalhar comigo, tudo bem. Só lhe
peço que não fique zangada.
Nanda ficou desconcertada.
Não esperava esta reacção de Chico. Não sabendo o que lhe responder, optou por
se manter em silêncio.
Estavam a aproximar-se de
casa. Nanda sentiu que tinha que dizer alguma coisa. No tom mais indiferente
que conseguiu arranjar – as últimas palavras de Chico tinham-na comovido e ela
não queria que ele o notasse – disse-lhe:
-
Senhor Francisco, vamos esquecer toda esta conversa e até mesmo este dia. Vamos
fingir que nada aconteceu. O senhor vai seguir com a sua vida e eu com a minha.
Concorda?
-
Se a senhora prometer que não fica zangada comigo… concordo – respondeu
Chico, meio envergonhado.
Despediram-se com algum
constrangimento.
Mal abriu a porta de casa
Tejo correu ao seu encontro, com um misto de alegria e urgência, saltando e latindo
baixinho, queixoso. Ela afagou-lhe ternamente a cabeça, murmurando “perdoa-me
esta demora” e pondo-lhe de imediato a trela para o levar à rua. Não deu mais
que dois passos – o cão alçou a perna contra o primeiro candeeiro que encontrou. E
como tinha a bexiga cheia! Deu mais alguns passos e repetiu o gesto numa árvore
próxima. Desta vez a bexiga já tinha só uns pinguitos. Preparava-se para
continuar mas Nanda puxou-o, prometendo-lhe “logo dás um passeio maior” e
voltou para trás.
Quando
meteu a chave na fechadura da porta do prédio para a abrir sentiu esta ceder e viu aparecer o rosto simpático
de Rui, o outro vizinho do primeiro andar, que vinha a sair. Com a sua gentileza habitual, este
segurou a porta para ela entrar, e cumprimentou-a com afabilidade:
- Boa tarde, D. Nanda. Como
está a senhora?
- Boa tarde, Rui. Eu estou
bem, apenas um pouco cansada – respondeu, como que a justificar a intenção de
entrar logo em casa e não ficar um pouco à conversa como costumava fazer.
- Até logo, D. Nanda. Mas
deixe-me só dar-lhe os parabéns… Já sei que é avó…
- Obrigada, Rui. Até logo.
Nanda sentia-se extenuada.
Não só pelo trabalho, que fora violento, mas também pela conversa com o Chico,
que a deixara incomodada. “A culpa foi minha. Como pude pensar em andar a
vender farturas? Só mesmo o desespero por não conseguir arranjar trabalho…”.
Sem mais demora foi tomar
banho. Sentia uma necessidade premente de se livrar de todo aquele cheiro a
fritos que se lhe tinha entranhado na pele e do qual lhe parecia que não mais
se libertaria.
Após alguns momentos debaixo
do chuveiro já sentia as forças renovarem-se. Deixou-se ficar, sentindo a água
escorrer-lhe pelos cabelos e ao longo do corpo, numa carícia doce que acalmava
e retemperava. E começava a pensar que não fora muito simpática com Rui,
“aquele pedaço de homem, alto, moreno, com uns incríveis olhos verdes… Claro
que os olhos azuis de Jorge eram… especiais, mas estes também não eram de se
deitar fora” – riu com gosto, sentindo-se já como nova. E murmurou:
- Que desperdício, Santo
Deus!
Dado o adiantado da hora não
lhe apetecia ir meter-se na cozinha. Como ainda não tinha almoçado decidiu ir
ao restaurante que ficava próximo de sua casa.
Dirigindo um olhar pela sala
verificou que se encontrava vaga a mesa onde costumava sentar-se quando ali ia.
Procurando o empregado viu
que ele se encontrava no bar, conversando com um cliente. Algo, neste, despertou a sua atenção. Disse para si mesma: "Donde é que eu o conheço?"
Enquanto aguardava que o empregado a
viesse atender, lembrou-se do seu filho Luís, pensando que, depois do almoço
lhe telefonaria, pois não falara com ele desde o dia anterior.
E, sem saber bem porquê,
veio-lhe ao pensamento Alessandro. E interrogou-se a si mesma – “porque será
que me lembro tantas vezes dele desde que nasceu o meu neto?”
E uma vez mais lhe acudiu ao
espírito - como se o estivesse a reviver - o primeiro encontro, naquele dia tão
longínquo em que se conheceram…e ele lhe dera um forte encontrão.
“Tentando abstrair-se da forte atracção que aquele
rosto exercia sobre ela conseguiu balbuciar:
- Pois… mas essa não é a melhor maneira de passear
pelas ruas de Lisboa.
Ao usar a palavra “passear” imaginava estar a falar
com um turista, devido ao seu forte sotaque italiano.
- Estás enganada, eu não ando a passear, venho do
trabalho, ali na Faculdade de Ciências.
- Ah! Trabalhas na Faculdade de Ciências? –
perguntou Nanda, em tom incrédulo.
- Sim, estou a fazer um trabalho de investigação
científica para um laboratório de investigação na Itália – Alessandro pareceu
não notar o tom algo trocista de Nanda. E continuou:
- Mas tudo isto te posso explicar em pormenor se
aceitares jantar comigo…"
- O que é que a senhora vai querer hoje? – o
empregado interrompera, abruptamente, os seus pensamentos.
Depois de pedir uma “Salada César com Frango ”Nanda
reparou que o homem que estivera no bar se levantara e saíra do restaurante. Na
rua dirigiu-se a um carro de gama alta, entrou e rapidamente pôs-se em marcha.
Nanda pensou: “Aquela cara não me é estranha…” E,
dirigindo-se ao empregado:
- Conhece aquele senhor que acabou de sair do bar?
(1) - ror (redução de horror)
Grande quantidade de coisas ou
pessoas (ex.: estava um ror de gente na estação).
(2) - lufa-lufa
Grande pressa ou movimentação. = Azáfama, corre-corre, correria
(3) - abespinhada
Zangada, amuada, irritada, exasperada, amofinada
Maria Caiano
Azevedo