"...- Ai, Tejo, Tejo, tu consegues imaginar o amor que sinto por ti? Só mesmo um amor muito grande me faria vir para o parque a estas horas da manhã…
Ao ouvir o seu nome o animal levantou a cabeça olhando
para ela e, como se percebesse as suas palavras, abanou a cabeça como que em
sinal de concordância..."
SEGREDOS –
CAPÍTULO XIX
Rapidamente se
passou um mês. Entre estar com a família e o seu emprego, Nanda nem se
apercebeu de que o tempo corria veloz.
A inauguração
da “Orvalho de Prata” fora um êxito. Empresário exímio, Araújo mandara fazer
umas pequeninas rosas em prata que foram oferecidas, como presente de
inauguração, aos clientes que efectuaram alguma compra. Todos os clientes
saíram satisfeitos, tanto pela lembrança como pela simpatia das empregadas,
duas senhoras já na casa dos quarenta anos, mas com uma apresentação impecável.
O dia a dia de
Nanda era quase rotineiro. De manhã levava o Tejo a passear, o que repetia à
noite, já tarde, pois que a loja fechava às 22 horas. À hora do almoço, muitas
vezes aproveitava para ir ver o neto, e ao Domingo não dispensava o almoço em
família. Nestes eventos era frequente a presença de Tó Zé, que se mostrava
verdadeiramente apaixonado pelo neto. Isso levava a que Nanda, ao regressar a
casa, sozinha no seu apartamento, infalivelmente recordasse o passado…
***
“…- Essa mania que vocês têm de comer porcarias,
e ainda por cima à noite! Se calhar era melhor ires ao médico…
- Não é preciso, Mãe. É só eu fazer
um pouco de dieta, e fico boa.
- Bem, vamos ver. Mas olha que com a
saúde não se brinca…”
Dona Lucinda ficou com a pulga atrás da orelha e nos
dias que se seguiram esteve ainda mais atenta ao estado da filha, que não
mostrava qualquer melhoria. Antes pelo contrário, a cada dia que passava Nanda
sentia mais náuseas e várias vezes teve de interromper o pequeno almoço para ir
vomitar.
Um dia a mãe decidiu esclarecer o assunto duma vez por
todas. Colocando no rosto um ar severo, logo a seguir ao pequeno almoço,
interpelou a filha:
- Ora vamos lá falar como duas pessoas crescidas,
minha menina. Sim, que tu já és bem crescidinha!
Nanda estremeceu. Todas as vezes que a mãe lhe chamava
“minha menina” era sinal de que vinha por aí raspanete. E, com este tom tão
rígido, tinha de se preparar para o pior.
Foi sentar-se em frente da mãe, dizendo com ar
contrito:
- Sim, Mãe. Quer falar de quê?
- De ti, evidentemente. Essa tua
suposta doença que se manifesta apenas por vómitos já dura há tempo suficiente
para me deixar desconfiada.
Nanda, interiormente, tremia de medo antevendo o que
viria a seguir, mas fazia os possíveis por aparentar uma calma que estava longe
de sentir.
- Queres contar-me a verdadeira
razão desse teu “mal estar” ou preferes que seja eu a adivinhar?
O tom de voz da mãe endurecia à medida que ela falava.
Nanda sentia que não havia escapatória possível. Chegara a hora da verdade. E
pensava, aflita – “Isto tinha de acontecer, mais tarde ou mais cedo. No
fundo, até me parece que mais vale contar tudo de uma vez…”
A mãe insistia:
- Então? Queres falar ou não?
- Eu gostava de falar, sim, Mãe. Mas falta-me
coragem….
A mãe respirou fundo como se precisasse de se acalmar.
Quase a gritar, exclamou:
- Falta-te coragem? Mas para fazer o
que fizeste não te faltou coragem!
Voltou a respirar fundo, e, num tom mais comedido,
continuou:
- Vamos pôr as cartas na mesa. Tu
estás grávida, não é verdade?
Nanda começou a chorar. As lágrimas deslizavam em
silêncio pelo seu rosto. Não conseguia responder. A mãe continuou.
- Pelo teu silêncio já percebi que
não estou errada. Pois muito bem, agora vais me dizer quem é o pai desse
desgraçado que trazes no ventre.
Nessa altura Nanda conseguiu forças para dizer, em tom
magoado:
- Não é nenhum desgraçado, é um bebé
que está para nascer!
A mãe pareceu acalmar-se ligeiramente, mas continuou
com tom muito duro:
- Pois que seja! Agora quero saber quem é o pai.
Nanda continuou a chorar em silêncio. Não conseguia
articular uma palavra.
Mas a Dona Lucinda não lhe deu tréguas.
- Não penses que me comoves com essas lágrimas. E,
para que saibas, essas são apenas o começo de muitas que ainda hás-de chorar. Queres
ou não queres dizer-me quem é o pai dessa criança?
Novo silêncio e mais lágrimas no rosto de Nanda.
- Tu não queres dizer, mas eu posso bem adivinhar
de quem se trata.
Ao ouvir estas palavras Nanda sentiu-se gelar, mas
continuou silenciosa. “A mãe estaria a pensar no Alessandro?”
- Essas noitadas ao portão foi no
que deram! E eu que confiava tanto naquele rapaz! Para mim era como se fosse
teu irmão. E vê o resultado que deu a confiança que eu tinha nele! Ah! Mas ele
vai ouvir-me das boas, não perde pela demora…
Interiormente, Nanda estava boquiaberta. Não era
possível! A mãe estava a pensar no Tó Zé? Não sabia se se sentia aliviada se
indignada. Tinha de falar urgentemente com o seu amigo, avisá-lo do que se
estava a passar.
Fingindo uma nova náusea, levantou-se, ainda chorosa,
e fez sinal de que precisava ir à casa de banho.
- Vai, vai, e escusas de voltar que
a nossa conversa, por agora, está terminada. Mas isto não fica assim – disse, com
voz gelada.
Quando regressou a mãe já tinha saído da sala. Nanda
dirigiu-se ao seu quarto e ligou de imediato para o Tó Zé, que estava a
trabalhar. Sem lhe dizer do que se tratava avisou-o que tinha muita urgência em
falar com ele, mas só pessoalmente. Ele estava cheio de trabalho e não poderia
vê-la a não ser à noite. “A não ser que queiras vir ter comigo e falamos por
uns momentos”. Mas Nanda preferiu esperar pela noite.
Quando se encontraram depois de jantar Nanda abraçou-o
com força e começou a soluçar. Tó Zé não sabia como reagir. Limitou-se a retribuir
o forte abraço e a falar-lhe em tom suave, quase como se a embalasse.
- Então, então, mas o que é que se
passa? Porquê esse choro assim tão descontrolado? Acalma-te, por favor,
estás-me a pôr louco. Vá lá, tem calma e conta-me o que aconteceu. Eu quero
ajudar-te, mas assim não posso…
Enquanto falava ia-lhe acariciando o rosto e
enxugando-lhe as lágrimas que pareciam não ter fim. Aos poucos os soluços foram
rareando, e Nanda conseguiu falar:
- Tu não vais acreditar no que
aconteceu. A minha mãe descobriu tudo.
- Tudo, o quê?
- A gravidez, que mais querias que
fosse?
- Olha, por um lado ainda bem que
isso aconteceu. Afinal, tu não podias esconder para sempre… Eu acho que estar a
guardar segredo não tinha grande sentido…
Continuava a abraçá-la, alisando-lhe os longos
cabelos, na tentativa de que ela não voltasse a chorar. Nanda retomou a
palavra, agora mais calma:
- Pois, só que tu não sabes quem é
que ela pensa que é o pai do bebé.
- Então, não é o Alessandro? – perguntou Tó
Zé.
- Não, muito longe disso. Ela pensa
que és tu.
- Eu? – não podia
haver maior espanto no rosto e na voz dele. Mas a que propósito é que ela
pensou isso?
- Acha que aproveitámos – e pelos
vistos muito bem - as noites que passámos aqui ao portão.
- Santo Deus! Não podia imaginar que
ela fosse pensar tal coisa… Então e agora?
- Agora prepara-te porque ela
prometeu dar-te um belo sermão…
- Isso não me preocupa nada. Nanda,
sabes como gosto de ti, e chegou o momento de te dizer, com o coração nas mãos,
que sempre fui apaixonado por ti. Perante esta situação, se te sentires mais
confortável podemos fazer crer à tua mãe que ela está certa, que eu sou o pai
do bebé, e, inclusivamente, que podemos casar, se ela assim o desejar, e se tu
quiseres, claro. Talvez isso a acalme…
Foi a vez de Nanda ficar muda de espanto. Tinha por Tó
Zé uma grande amizade, considerava-o o seu melhor amigo, e confiava nele
cegamente. Mas daí a pensar que ele iria ter esta atitude… ia uma grande
distância.
Encostou a cabeça no ombro dele e de novo as lágrimas
assomaram aos seus olhos. Ele, limpando-lhe suavemente o rosto, estranhou:
- Então fiz-te chorar? A minha intenção não era essa…
-Estas lágrimas não são de tristeza, são de comoção.
Nunca pensei que fosses capaz de uma atitude tão nobre. Mas… não sei se devo
aceitar. Tu estás a tomar essa atitude debaixo de uma grande tensão. Vamos
fazer o seguinte – tu vais pensar bem no assunto, auscultas a tua família, e
depois decides. Para todo o efeito eu não confirmei à minha mãe que és tu o pai
do bebé…
- Não confirmaste mas também não desmentiste, não é
verdade? Para além disso… sabes que a opinião da minha família não é
importante. Tenho 19 anos mas sou de maior idade, como sabes, e há muito tempo
que me oriento sozinho. O que me interessa verdadeiramente é o que tu sentes e
pensas do assunto. Portanto… tu é que deves pensar… e confirmar, ou não, junto
da tua mãe. Eu aceito o que tu decidires.
Despediram-se com o beijo habitual.
Nanda foi para dentro e, na sala, encontrou o pai
sentado junto à mãe, nitidamente à sua espera.
Maria Caiano Azevedo