SEGREDOS - CAPÍTULO VII
… Mas, de facto está a fazer-se tarde, também tenho que ir buscar os
gémeos ao colégio…
- Ah! Mas que indelicadeza a minha! Com o entusiasmo
da conversa esqueci-me de perguntar pelos meninos… Eles estão bem?
- Sim, estão. A semana passada o Tiago pregou-me um
susto, tive que o levar ao hospital, mas não foi nada de grave. Não vejo é a
hora de poderem ser operados…
- Pois… sabemos como é a saúde em Portugal… respondeu Nanda, levantando-se. Eu vou também tratar do “meu bebé” Tejo, antes que aconteça alguma
fatalidade líquida lá em casa…
SEGREDOS – CAPÍTULO VII
Como seria de esperar o Tejo estava ansioso por ir à rua. Fora lá de
manhã, mas numa saída muito rápida, que nem lhe deixara cheiriscar as árvores
habituais. Quantos amigos seus não teriam já marcado o território que a ele
pertencia!? E a dona que não vinha! Isto é mesmo vida de cão!
Quando a viu aparecer saltou, dançou à sua volta, ladrando alegremente
numa ruidosa manifestação de júbilo.
Na rua corria de árvore para árvore, rapidamente, como se tivesse receio
de que o passeio terminasse antes que ele tivesse tempo de verificar todos os locais
e não pudesse assinalar a sua passagem.
Aos poucos foi-se acalmando, dando algum sossego a Nanda, que não o
largava da trela, e que entretanto ia pensando na sua conversa com Carla.
“Que mulher simpática! O marido, Diogo, o engenheiro informático, também
é muito educado. E que grandes corações têm aquelas duas almas! Adoptarem dois
gémeos quase recém-nascidos com aquele problema de saúde… lábio leporino... E
logo os dois! Imagine-se o dinheirão que vai ser preciso para as duas
cirurgias…
Não há dúvida, poucas pessoas adoptariam crianças assim. Se não fossem
estes pais, que destino estaria reservado a estes meninos? Andarem eternamente
de instituição em instituição… Apesar do azar de terem nascido ambos com esse
defeito, tiveram uma sorte enorme em lhes aparecerem estes pais…”
O passeio já ia longo, o Tejo olhava os troncos das árvores com
indiferença, e Nanda deu a volta por terminada.
A noite descia a passos largos. Sentada no sofá da sala, com o Tejo,
exausto da longa passeata, a seus pés, ligou a televisão. E enquanto as imagens
passavam quase sem as ver ia pensando em tudo o que acontecera nesse dia.
Agora, calmamente, podia “dissecar” todas as informações que António lhe
dera acerca do Carvalho Araújo. “Onde terei posto o cartão que ele me deu? Afinal,
devo ter feito bem em não o deitar ao lixo…”
Quando voltou a si, a sala encontrava-se às escuras. Tejo aproveitava
para dormir a sono solto. Estava na altura de acender as luzes.
***
Nanda levantou-se cedo. Dormiu bem e estava bem-disposta.
Tomou um pequeno-almoço com baixas calorias, pois a sua preocupação com
a figura que todos elogiavam não a deixava cometer loucuras alimentares. Tinha
consciência de que, com os seus 47 anos, não podia facilitar. E como
presentemente não podia – ou, pelo menos, não devia… - dar-se ao luxo de
frequentar o ginásio, era muito rigorosa com a alimentação e as caminhadas.
Tinha
combinado encontrar-se com Bela exactamente para isso – caminhar.
Depois
de levar o Tejo a satisfazer as suas necessidades matinais, passou por casa
para vestir uma roupa de desporto e foi ao encontro da amiga. Esta
encontrava-se sentada à mesa do café, com uma chávena vazia sobre a mesa e, à
sua frente, o tablet aberto.
Depois dos cumprimentos que, entre elas, eram sempre
de tal modo efusivos que, quem as observasse, iria pensar que não se viam “há
séculos”, Bela perguntou, abruptamente:
- Sabes o que é um “count down”?
- Sim, sei… é uma contagem regressiva. Mas por que
perguntas?
- E sabes quantas pessoas em Portugal sabem o que isso
significa?
- Não faço a menor ideia… Calculo que muitas não saberão…
- E sabes quantas palavras portuguesas - frisou
o “portuguesas” - são usadas nas
televisões dos países cuja língua é o inglês… ou o francês, ou o japonês…? – insistia
Bela
- Também não faço ideia… mas calculo que nenhuma. Mas
porquê tantas perguntas?
- É porque, enquanto esperava por ti, pus-me aqui a
assistir a um desses programas da manhã que passam metade do tempo a anunciar
que dão dinheiro…
- Sim, há vários programas desses…
- Pois… só que desconhecem que a língua portuguesa é
composta por cerca de 400.000 vocábulos e por isso não há necessidade de
recorrer a palavras estrangeiras. Para além do mais, estes programas são
dirigidos essencialmente a um público não muito letrado, portanto deveria haver
o cuidado de falar de forma a que todos entendessem. Tenho a certeza que muitos
dos ouvintes não sabem o que significa count down… -
Bela não disfarçava a irritação.
- Desculpa, querida, mas tu és muito exigente, e estás sempre pronta para uma
alfinetadazinha… – comentou Nanda, com um sorriso.
- Por acaso achas que não tenho razão? –
Bela estava bastante irritada.
- Não é que não tenhas razão, mas a verdade é que em
Portugal, não sei se devido ao crescimento acelerado do turismo, usa-se muito
intervalar palavras inglesas nas conversas. Até nas novelas se vê isso… - Nanda
tentava contemporizar
- Tu chamas-lhe turismo, já eu chamar-lhe-ia… servilismo – ripostou Bela, que
continuava de mau humor.
- O que acontece, minha querida, é que tu és
uma purista da língua portuguesa, e por isso estas modernices causam-te
brotoejas… - Nanda tentava levantar o ânimo da amiga que, quando se tratava
de assuntos deste género, ficava sempre abalado.
Mas afinal – continuou
– vamos ou não vamos caminhar?
- Queres que eu seja mesmo sincera? Só te desafiei para a
caminhada para te obrigar a vires para ao pé de mim… - sorriu
Bela, já mais bem-disposta. Há tanto
tempo que não passamos um tempinho simplesmente a conversar… - e fez um
arzinho de amuo, que a fazia parecer-se com uma criança mimada.
- Tu sabes muito… - sorriu Nanda, que não
conseguia resistir quando a amiga punha aquele ar a que ela chamava de
“cachorrinho abandonado”. Pois muito bem,
aqui me tens ao teu dispor. Mas não precisavas de usar de subterfúgios… Sabes
que basta um gesto teu para eu vir a correr – ambas riram alegremente.
- Por acaso até tenho uma novidade para te contar –
continuou Nanda.
- Pois conta, que eu gosto muito de novidades. Mas antes
deixa-me fazer-te uma pergunta.
- Faz lá, perguntadeira – riu
Nanda.
-Na conversa que tiveste com a tua amiga Carla acerca do
Natal falaste-lhe nas janeiras? Tendo vivido sempre em Lisboa certamente não
sabe o que isso é…
- Claro que falei, mas só agora de manhã. Encontrei-a à
saída de casa.
- Não sei se estou a gostar de tantos encontros… - Bela
fingiu-se amuada.
- Não sejas pateta! – Nanda riu com
vontade. Tu és e sempre serás a minha
melhor amiga.
- Pois é bom que não o esqueças… - ameaçou
Bela, continuando a fingir-se despeitada.
- E se falássemos como pessoas crescidinhas? Voltemos ao
assunto. Falei à Carla não só nas Janeiras mas também nos Reis Magos. De facto
ela sabia de tudo isso duma forma muito vaga. Fiquei com a impressão de que a
família dela não liga muito para essas coisas.
- E achas que ela gostou? Explicaste tudo bem? – Bela
interessava-se muito por estes assuntos, e era de um grande preciosismo nos
pormenores.
- Sim e sim. Sim, ela gostou e sim eu expliquei tudo! – Nanda
respondeu num tom meio enfadado.
- Não precisas de te abespinhar, eu só queria saber se
tinhas contado tudo direitinho, sem te esqueceres de nada… Lembraste-te da
romã? – perguntou Bela, num tom duvidoso.
- Estou feita contigo! Olha, não queres ir lá falar com a
Carla e fazeres-lhe um exame para comprovar que sou boa professora?
- Calma, tu sabes como é importante o pormenor da romã.
Imagina que ela quer seguir esse ritual e não sabe bem as regras… As coisas,
quando se fazem, têm que ser bem feitas.
- Eu sei, dona Perfeição!
Nanda optou
por não ligar grande importância às dúvidas de Bela. Ela sabia que a amiga era
uma perfeccionista em tudo, e quando transmitia algo que ela considerava
importante, ia atá aos mais ínfimos pormenores.
- Para que não fiques para aí a ruminar no assunto – que eu
sei muito bem como tu és… - vou-te contar tudo. RESUMIDAMENTE, é claro. Presta
bem atenção para depois não vires para cá com perguntas.
- Sou toda ouvidos… murmurou Bela.
- Então…
acerca das Janeiras eu disse o seguinte:
- “Cantar as Janeiras” era uma
tradição, não só em Portugal mas também na maior parte dos países europeus
(desconheço o que, a este respeito, se passa fora da Europa). Consistia na
formação de grupos de homens e mulheres que, no início do ano, andavam cantando
de porta em porta, geralmente cânticos de cariz religioso, para desejarem feliz
ano novo. Os donos das casas ofereciam aos cantantes frutos secos, nozes e
castanhas, vinho, e até dinheiro.
No final, as
guloseimas eram consumidas num jantar em que todos participavam, e o dinheiro
era para as almas do Purgatório – “as alminhas” - ou seja, era entregue na
igreja.
Nalgumas
localidades as Janeiras prolongavam-se até ao final do mês de Janeiro; noutras,
terminavam no Dia de Reis.
Actualmente
esta tradição está quase em desuso, mantendo-se, apenas, nalgumas regiões da
província.”
- Muito bem – aplaudiu
Bela.
- Quanto ao Dia de Reis a explicação foi mais
simples porque… quem não sabe o que é o Dia de Reis?
“Toda a gente
sabe que é neste dia que se celebra a chegada dos três Reis Magos ao presépio
onde se encontrava Jesus, e as prendas que levavam para oferecer ao Menino.
O que talvez
poucos saibam é o significado dessas ofertas, que é o seguinte:
- O OURO
simbolizava a Realeza. Era, à época, o metal mais valioso que existia.
- O INCENSO
significava a Fé. Quando é queimado exala um perfume muito agradável.
- A MIRRA
representava a Pureza. Trata-se de uma resina rara, extraída da casca da árvore
com o mesmo nome. É perfumada e valiosa pelas suas propriedades medicinais e
curativas.
Todos os
presentes eram, portanto, dignos de um rei – o Rei dos Judeus – tal como os
três Reis Magos consideravam o Menino. “
Nanda
calou-se, olhando para Bela, que estava verdadeiramente emocionada.
- Perfeito! – murmurou.
E acrescentou logo de seguida, tentando disfarçar a emoção: Eu não teria feito melhor. É claro que não
te esqueceste da romã – disse como que a medo, temendo a reacção de Nanda.
É claro! … –
respondeu Nanda, já com uma pontinha de irritação. Queres que te diga também o que contei à Carla a esse respeito? Pois
então ouve:
“Em tempos
idos acreditava-se – e ainda hoje há quem creia – que os pedidos feitos aos
três Reis Magos no dia 6 de Janeiro seriam atendidos, e que o ano decorreria
próspero, com muita sorte, e que não faltaria dinheiro. Mas… para que isso
acontecesse, os pedidos teriam que ser acompanhados pela ingestão de bagos de
romã. Contudo, não era qualquer fruta que servia; a romã tinha que ter intactos
os “sete bicos”. O fruto tem no topo como que uma coroa formada por sete
pontas. Essas pontas não podiam ter nada quebrado, tinham que estar perfeitas.
Era a chamada “romã de sete bicos”.
- Ufa! Estou cansada de tanto falar. E tu estás
satisfeita? – disse Nanda, querendo dar o assunto por
encerrado.
- Desculpa! – Bela apresentava um ar
verdadeiramente contrito. Sei que fui
demasiado insistente, mas tu conheces-me… Sabes como gosto de todas estas coisas
e desejaria que estas tradições – e tantas outras – se transmitissem de pais a
filhos e netos, e não se perdessem no esquecimento.
- Sim, eu sei, não te preocupes. Eu própria aprecio todos
estes costumes antigos, que tenho bem presentes porque os praticávamos na casa
dos meus avós. E continuei com a tradição, tanto quanto possível, enquanto os
meus filhos estiveram em casa… - respondeu
Nanda, com um ar meio ausente.
Bela tinha
ficado muito bem-disposta. A sua amiga tinha prestado uma informação perfeita a
Carla, que assim aumentara os seus conhecimentos. Propôs mudarem de assunto.
- Nanda,
minha amiga preferida – disse, rindo – vamos mudar de assunto? Disseste que
tinhas uma novidade para me contar e eu interrompi-te… Desculpa!
- Sim, chega
de falarmos de costumes e tradições. Eu tenho, de facto, uma coisa para te
contar. Tu sabes como tenho andado apoquentada
por não conseguir trabalho – começou Nanda.
- Se sei! E tu sabes como me aflige ver-te assim – respondeu
Bela, aparentando verdadeira preocupação. E continuou:
- E, pela milionésima vez volto a dizer-te que
não consigo entender o motivo por que não queres vir trabalhar comigo lá na
empresa do meu pai… Não tem conta o número de vezes em que te falei neste
assunto…
Já pensaste como seria bom trabalharmos juntas? Olha que
o meu pai paga bem e é um patrão óptimo. Põe os olhos em mim. Hoje é dia de
trabalho, e aqui estou eu, perfeitamente à vontade, sem sequer ter posto os pés
no escritório. É certo que o meu pai me dá toda a liberdade de horários porque
sabe que eu sou cumpridora, nunca falho com compromissos… e que respeito muito
o trabalho que faço. E tenho a certeza que contigo não seria diferente…
Querida, deixa-me falar com o meu pai. Pai, pai, pai…
A palavra
“pai” ficou ecoando na cabeça de Nanda…
Num relance
lembrou o que acontecera há tantos anos, e que a marcara tão profundamente.
*
[Era um dia de Verão radioso que acabou por se
transformar num dia cinzento e triste.
Com os seus
irrequietos 15 anos, amigas inseparáveis, Nanda e Bela andavam sempre juntas.
Naquele dia tinham combinado que Nanda passaria pela casa de Bela para esta lhe
mostrar umas roupas que a mãe lhe comprara, e de seguida irem à praia.
Depois de
tocar à campainha, Nanda estranhou ser o pai de Bela a abrir-lhe a porta. O
normal seria que, àquela hora, ele estivesse na sua empresa. Teria acontecido
algo que o tivesse obrigado a vir a casa? Mas rapidamente a estranheza
desapareceu, ao ver o seu ar perfeitamente normal.
Como tantas
vezes fazia o pai de Bela abraçou-a, gesto que Nanda retribuiu, pois gostava
muito dele, sempre atencioso e bem-disposto. Este abraço prolongou-se um pouco
mais do que o habitual, sem que Nanda lhe atribuísse qualquer significado
especial. Só sentiu um certo desconforto quando a mão dele deslisou até às suas
nádegas, comprimindo-lhe o corpo contra o seu. Nanda, apesar de bastante jovem,
pôde perceber, pelo contacto com o seu corpo, que ele estava muito excitado.
Horrorizada e ao mesmo tempo incrédula, começou a afastá-lo suavemente, não
querendo dar-lhe a entender do que se tinha apercebido. Sentindo a pressão dela
para o afastar ele reagiu, encostando-a a si com mais força, procurando
beijar-lhe o pescoço e murmurando palavras doces:
- Gosto tanto
de ti! Não. Não me afastes, eu sei que tu também gostas de mim. Deixa-me
fazer-te feliz.
Nunca houve na sua atitude a mínima
agressividade. Mas a força com que a segurava não deixava lugar para dúvidas:
queria violentá-la. Nanda estava literalmente siderada. Sentia faltarem-lhe as
forças para afastar de si aquele verdadeiro rochedo que, a cada gesto seu, a
prendia mais fortemente, como que a querer mostrar-lhe que ela não tinha outra
hipótese senão ceder à sua vontade.
Nanda pensou em gritar mas sabia que a enorme
casa se encontrava vazia; doutro modo, inteligente como era, o homem não se
teria atrevido a tomar tal atitude.
Continuava mantendo-a fortemente encostada a
si, apertando-a com um braço que parecia de ferro. Com a mão liberta
afagava-lhe delicadamente o rosto, alisando-lhe os longos cabelos, ao mesmo
tempo que murmurava palavras de uma doçura enorme.
Queria
satisfazer os seus desejos libidinosos mas sem hostilizar a vítima.
Ardilosamente pensava consigo mesmo que, deste modo, futuramente ela cederia
aos seus desejos sem opor resistência.
Maria Caiano
Azevedo