quarta-feira, 1 de setembro de 2021

UM CONTO - O COLO DA MÃE

                                                 O COLO DA MÃE


 Depois de bem instalado no quarto que lhe havia sido reservado, as roupas meticulosamente guardadas nas gavetas, sentou-se na cadeira com tampo estofado que se encontrava junto à janela.          

Abrindo as portadas dispunha-se a apreciar a vista lá de fora, donde emanava um agradável cheiro a flor de laranjeira. Mas os seus olhos eram irresistivelmente atraídos para a cómoda antiga, em raiz de nogueira, uma madeira rara, que, na sua cor castanho avelã, se destacava na parede branca.

O médico tinha-lhe recomendado repouso absoluto, sob pena de sofrer alguma lesão grave se insistisse no ritmo acelerado em que se transformara a sua vida. Com uma carteira de clientes enorme não tinha tempo para descansar. Para além disso, a recente morte do pai deixara-o profundamente abalado. Não lhe saíam da cabeça as últimas palavras que ele proferira, com dificuldade, mas revelando a urgência de quem está prestes a partir.

- Meu filho, escuta-me com atenção. Há na tua vida um segredo muito importante… Procura uma cómoda antiga… lá na nossa terra…

Um forte ataque de tosse interrompeu a confidência. Alguns minutos depois o pai iniciou a Grande Viagem, sem mais explicações.

Decidiu seguir o conselho do médico – até porque aquela forte dormência o assustara a valer.

A sua ida para aquela aldeia não era inocente, pelo contrário, tinha um propósito muito firme – descobrir algo sobre o passado que o seu pai, com quem mantivera relações frias e distantes ao longo da vida, nunca lhe contara. Só quando sentira o fim aproximar-se, finalmente o resolvera fazer.

Tomou conhecimento de que perto da aldeia onde passara a sua meninice havia uma casa, outrora apalaçada, que recebia hóspedes, poucos, e só com recomendação. Não lhe foi difícil obtê-la, e por isso ali se encontrava.

A D. Augusta informara-o de que o jantar era servido a partir das sete e meia. Tinha tempo para um passeio.

Pôs pelos ombros um blusão leve, pois lembrava-se que na serra o tempo arrefecia mal o sol começava a descer.

Atravessando o laranjal, onde o aroma era intenso, continuou por um estreito caminho ladeado de árvores de fruto até um pequeno portão em ripas de madeira que se encontrava apenas encostado. Ultrapassando-o seguiu por uma estrada de gravilha, no meio de um pinhal, donde descortinava uma paisagem deveras encantadora.

Caminhando lentamente, embrenhado nos seus pensamentos, nem se apercebeu da distância percorrida. Encontrava-se, agora, no início doutra aldeia serrana. Cumprimentando algumas pessoas com quem se cruzava, sem dúvida moradores locais, acabou por avistar os extensos muros brancos de uma enorme propriedade. A cada passo que dava maior era a sensação de que pisava terreno conhecido. Aos poucos surgiam, em pequenos flashes, cenas da sua infância. Quase podia ver que por detrás daqueles muros brancos havia uma casa senhorial onde ele brincara muitas vezes.

Metendo conversa com uma velhota que estava sentada à porta de casa fazendo festas ao cão, perguntou-lhe

a quem pertencia aquela propriedade. A mulher respondeu:

- O senhor está a falar da Quinta do Freixo? Há muitos anos que a casa está fechada, e os terrenos arrendados. Ali moraram, desde sempre, os fidalgos. A última pessoa que lá viveu, que também já morreu há muito tempo, não sei o nome dela; só sei que era conhecida pela “fidalga da Quinta do Freixo”. Agora os herdeiros vêm aí às vezes, mas é raro. Falam com o caseiro, fazem as contas e lá vão eles à sua vida!

Agradecendo à simpática velhota toda a informação, o Sr. Dr. sentiu, de repente, uma vontade urgente de regressar. Fazendo o caminho inverso, desta vez em passo acelerado, em pouco tempo chegou ao seu quarto.

Sentando-se de novo na cadeira junto à janela, pôs-se a observar, atentamente, a cómoda que tanto o atraíra à chegada. Com o pensamento “transportou-a” para a Quinta do Freixo onde – agora tinha a certeza – passara muitos dias da sua meninice. As recordações começavam a fluir em catadupa. “Aquela” cómoda estava no quarto de hóspedes, onde a sua mãe por vezes dormia. O seu pai era motorista do fidalgo e, quando havia festas que envolviam grandes jantaradas, ele tinha de ir levar alguns convidados a suas casas, às vezes até ao Porto; e a sua mãe ficava no solar até mais tarde para ajudar a arrumar as louças e a prataria – que a senhora fidalga não confiava nas criadas para fazerem esse trabalho, pois podiam partir alguma peça. Era nessas noites que a sua mãe dormia no tal quarto de hóspedes.

Pensando em tudo isto não conseguia despregar os olhos da cómoda. Cada vez sentia mais a certeza de que aquela era a “cómoda” de que o pai lhe falara. Precisava de a abrir. Ali estavam guardados pormenores acerca do seu passado – cada vez lhe restavam menos dúvidas.

Levantou-se e acercou-se dela, examinando-a com a maior atenção. Tentou abrir as gavetas mas depressa se convenceu que não seria possível, a não ser que usasse alguma ferramenta; mas corria o risco de a danificar…

A D. Augusta dissera-lhe que não sabia das chaves, portanto não valia a pena pedir-lhas.

De repente surgiu-lhe uma ideia:

- Já sei, vou propor à senhora que ma venda, e depois, em casa, chamo um carpinteiro para a abrir com todo o cuidado. Claro que tenho de contar com o espanto dela; vai, por certo, ficar surpreendida… E também tenho de pensar na hipótese de ela não querer vender…

Uma pequena mancha na perna do móvel, junto ao chão, despertou-lhe a atenção. Baixou-se para a examinar mas os seus olhos já não tinham a acuidade visual de outrora. Intrigado pôs-se de joelhos, baixando a cabeça quase até ao soalho. Foi quando os seus olhos foram atraídos para qualquer coisa que sobressaía do fundo da gaveta. Estendeu a mão e, com uma leve pressão, soltou o que verificou tratar-se de um envelope amarelecido pelo tempo.

Com a maior excitação abriu-o retirando de dentro um documento. Tratava-se de uma certidão de nascimento onde constava o seu nome, seguido dos nomes dos pais:

“Idalina de Jesus Silva” e “Don Francisco Sebastião de Saldanha, Conde de Alpedrinha”.

Abriu a boca de espanto!

Então ele, um brilhante advogado que tivera de vencer, “a pulso”, as maiores dificuldades para atingir o seu actual estatuto, era herdeiro da Quinta do Freixo!

E aquela cómoda era o espírito da sua Mãe!

Sem saber bem o que fazia, abraçou-a, depositou um beijo no seu tampo de mármore, e exclamou, em altos brados:

- D. Augusta! Eu quero esta cómoda!

Baixinho, murmurou: Preciso do colo da minha mãe.


 Maria Caiano Azevedo

1º. Prémio - “PROSA”

USFCR /ARPE – JOGOS FLORAIS IV - TORRES VEDRAS