Há dois ou três anos ( ou quatro? ), quando começavam a sentir-se mais vivos os sinais da crise que se avizinhava, e que nos tem acompanhado desde então – e sabe-se lá quanto tempo mais irá ser nossa fiel companheira! – encontrei, por alturas do Natal, uma senhora que conheço há algum tempo.
É uma pessoa que considero muito pelo exemplo de vida que tem dado, e é motivo para, pelo menos, meditarmos.
Viúva há anos, sem filhos, reformada de uma entidade bancária, vive da sua modesta reforma, sempre com um sorriso no rosto.
Habita uma casa pequena, sem luxos, mas que possui um quintal de razoáveis dimensões.
A necessidade que sente de ser útil e praticar o bem ajudando o próximo levou-a a arquitectar um plano que mantém até hoje.
É a dona Emília.
Como os poucos familiares conhecidos se encontram no estrangeiro, satisfaz essa necessidade auxiliando os que precisam, logo que disso tem conhecimento.
Para o efeito desloca-se a uma vila próxima à procura de crianças abandonadas. A sua atenção recai, essencialmente, sobre crianças de tenra idade, que encontra sozinhas, estendendo a mão à caridade pública, e lhes confessam dormir na rua por não terem casa nem família.
Traz consigo essas crianças, limpa-as, alimenta-as e cuida-as até à idade escolar.
Nessa altura encaminha-as para a Segurança Social, já que o ir para a escola acarreta despesas acrescidas a que ela não pode fazer face. Muitas dessas crianças, depois de encaminhadas, vêm visitá-la, o que lhe dá grande alegria.
Chega a ter ao seu cuidado cinco e seis crianças ao mesmo tempo.
Como a casa onde habita é pequena não pode albergar tantas crianças. Conseguiu que lhe oferecessem uma velha roulotte, que ela própria limpou, pintou, tornou habitável; aí acomoda, para dormir, as crianças de mais idade que não cabem dentro da casa.
Tem tido muitas ajudas; a sua magra reforma não chegaria para tanto.
Conheci-a num dia em que a vi passar com uns sacos de roupa que a minha filha tinha depositado, momentos antes, junto ao contentor do lixo. Eram roupas dos meus netos, que já não serviam por serem pequenas, mas ainda se encontravam em bom estado.
Na falta de haver a quem as dar, costumávamos colocá-las em sacos, encostados ao contentor do lixo, esperando que alguém pudesse aproveitá-las.
Reparando que a senhora transportava os ditos sacos dirigi-me a ela, especialmente porque o seu aspecto não era o de uma pessoa necessitada.
Apresentei-me como a pessoa que colocara os sacos da roupa junto ao contentor. Sem me deixar entrar em mais considerações, com um largo sorriso disse-me:
- Ai sim? Que bom! Há aqui roupas muito boas, que vão fazer muito felizes os meus meninos. E, se não se importar, vou pedir-lhe um favor.Admiradíssima por ouvi-la falar em “meus meninos”, pois não tinha idade para ter filhos pequenos (as roupas que levava eram de crianças de dois anos) respondi-lhe que sim, podia pedir o que quisesse.
Foi então que ela contou, em largos traços, o fim a que se destinavam as roupas, pedindo-me que, de futuro, não as colocasse junto ao contentor do lixo, mas as guardasse, que ela passaria lá por casa a recolhê-las.
Foi o que passámos a fazer, tanto com as roupinhas como com brinquedos, aos quais juntamos, por vezes, uma ou outra guloseima e alguns alimentos.
De vez em quando vemo-la passar, para fazer as suas recolhas – felizmente há muita gente boa que lhe dá ajuda – e trocamos dois dedos de conversa.
Conhecemos, porque nos convidou para o fazer, a casa onde vive e o quintal que se transforma em paraíso para tantas crianças que por lá passam.
Não sei se por causa do muito amor que se respira naquele local o ar é perfumado, as flores que nascem aqui e ali no chão são frescas e brilhantes, as crianças que correm naquele espaço perfeitamente limpo têm um ar extremamente feliz. Ali sentimo-nos em paz.
Chegada a altura do Natal recebe imensos presentes para os “seus” meninos.
Como forma de retribuição costumava oferecer uma pequena lembrança a todas as pessoas que tão generosamente lhe enchiam a casa, quer para a ceia de Natal, quer para os “sapatinhos” na árvore.
Disse, no início, que a encontrei há dois ou três anos. Contra o costume apresentava um ar triste. Perguntei-lhe se havia algum problema. Respondeu-me:
- Sim, até certo ponto. Estamos no Natal e, ao contrário de todos os outros anos, não pude comprar lembrancinhas para as pessoas, tão bondosas, que me ajudam a criar os meus meninos.E enquanto uma pequena lágrima assomava aos seus lindos olhos, acrescentou:
- Este ano vou apenas distribuir Amor, muito Amor e Carinho por todos.Não resisti a dar-lhe um abraço. Também eu tinha uma lágrima entalada na garganta.
Mariazita – Dezembro 2009