NATAL DE 2085
O calendário indica-nos que o ano de 2085 estás prestes a terminar.
Embora cada um deles pudesse, individualmente, ver o seu canal
preferido, controlável por ondas cerebrais captadas nos auscultadores, bisavô e
bisneto estavam, naquele momento, assistindo ao mesmo programa, no mesmo écran.
A sala é muito agradável, com todos os requisitos modernos, desde
carpetes com auto-limpeza, o que lhes permite terem sempre os tapetes
impecavelmente limpos, até à lareira que esfria ao toque, o que evita acidentes
indesejáveis, como queimaduras.
Os sofás de módulos facilitam a sua arrumação e permitem-lhes estar lado
a lado, como agora, ou afastados, se assim o desejarem, como, por exemplo,
quando estão a ver programas diferentes.
Quando o programa terminou, Ícaro, o bisneto, disse para o bisavô,
Marco:
- Então, Bi, este ano
não vais ver os festejos da reserva? Olha que hoje é dia 24 de
Dezembro…
- E e eu podia lá
faltar, meu querido? É o único evento a que nunca dexei de assistir
desde a sua
inauguração e ao qual tenciono não faltar enquanto tiver forças para me
deslocar.
E tu, Ícaro, queres acompanhar-me?
- Claro que sim, Bi.
Eu também nunca deixei de ir desde que me levaste lá a primeira
vez…
- Então vai-te
preparar porque temos que nos pôr a caminho. Olha, e não te esqueças
de avisar a tua prima, a Ísis, porque ela
disse-me que também queria ir…
- Ok, Bi. Vou já
dizer-lhe para preparar a mochila e, claro, “não esquecer os abafos
porque à noite arrefece” – acrescentou, brincalhão, imitando a voz do bisavô.
Apesar dos seus cento e cinco anos a memória de Marco continua perfeita,
embora de vez em quando vá tendo alguns esquecimentos – “onde terei posto os óculos? “, “o que vinha aqui fazer?”, “será que já tomei os medicamentos” e
coisas deste género. Mas recorda muito bem o que se passou quando era jovem, e
todas as transformações que a Natureza foi sofrendo ao longo dos anos.
Quando tinha 30/31 anos, recorda ele, o planeta começou a aquecer
desmesuradamente. Lembra-se bem das notícias que ouvia de que, nos últimos 17
ou 18 meses, não podia precisar, tinham sido batidos, todos os meses, os recordes
máximos de temperatura média global.
As alterações climatéricas continuaram a ocorrer a um ritmo assustador,
mas não foram tomadas medidas eficazes para evitar uma catástrofe.
Cimeiras e acordos realizados resultaram em fracassos sucessivos, pois
os países desrespeitavam todas as decisões aí tomadas, contribuindo para o
aumento consecutivo da poluição atmosférica.
As guerras infindáveis tinham contribuído também, em grande parte, para
a desertificação do Planeta.
A falta de políticas ambientais levou a que o Planeta Terra se tornasse
no lugar inóspito e quase sem vida que Marco, com desgosto, descortinava para
além das largas janelas da sua sala.
No jardim do condomínio onde vivem há relva artificial fazendo desenhos
exóticos, perfeitamente simétricos.
Vêem-se alguns vasos com plantas naturais que, diariamente, são mudados, trocados por outros mantidos em
estufas, já que a poluição atmosférica é tão elevada que não permite que as
delicadas plantas verdadeiras possam ficar expostas ao ar por mais de vinte e
quatro horas.
É também em estufas que são criados os poucos alimentos naturais a que
só os mais favorecidos têm acesso. A restante população alimenta-se de produtos
sintéticos, produzidos em laboratórios.
Enquanto espera pelos bisnetos Marco senta-se, pega no comando
interactivo e dirije-o para as cortinas. Estas têm espessura dinâmica para
permitir a alteração do nível de iluminação, assim como a exibição de imagens.
Escurece a sala, e faz projectar nos cortimados fotos de tempos passados, de
quando era jovem, de praias de areia branca e resplandecente, e do mar no seu
constante movimento.
Com grande algazarra Ísis e Ícaro entram na sala interrompendo-lhe os
nostálgicos pensamentos. Trazem às costas as suas mochilas e vêm radiantes.
- Lembraram-se de
trazer os vossos cartões? Não estejam à espera de que eu pague
as vossas despesas… - disse Marco, olhando para os bisnetos, enternecido.
- Claro que sim, Bi.
Nós não somos como tu, que te esqueces de onde pões os óculos –
respondem alegremente.
Descem o supersónico elevador e vinte segundos depois encontram-se no
rés do chão. Caminham rapidamente para o aeromobil que Marco já comandara para
sair da garagem e os aguardava à porta de casa.
Chegados à reserva introduzem os cartões no local próprio para abrir o
enorme portão.
Respiram fundo, felizes, preparados para viver os momentos mais
emocionantes de que têm memória.
A reserva é uma vasta área, semelhante a uma vila dos anos passados.
Ruas alcatroadas onde circulam veículos que, aos bisnetos, parecem
pré-históricos, mas que não têm mais de cem anos. As ruas encontram-se todas
iluminadas. Ouve-se no ar uma suave música natalícia.
Marco respira fundo, emocionado como sempre que aqui vem. Ísis e Ícaro
olham para tudo com espanto – têm apenas nove anos, Ísis, e oito anos, Ícaro, e
já não se lembram bem do que viram no ano anterior.
Vão caminhando lentamente, apreciando as luzinhas que, brilhando,
envolvem as casas, donde se escapam os odores dos cozinhados que lá dentro se
estão preparando para mais logo. De quando em quando deparam-se com pequenas
árvores de Natal, artificiais, às portas de algumas casas, enfeitadas com bolas
brilhantes e vários enfeites, como pequenos pais natais nos seus trenós,
passarinhos em ninhos, laços e pingentes de vidro, e por cima flocos de neve
artificial.
Pelas ruas veêm-se vários turistas, que se distinguem dos habitantes da
reserva pelas suas vestes modernas e de mochilas às costas. Todos tencionam ali
pernoitar.
A noite vai descendo e Marco, Ísis e Ícaro vão-se encaminhando para o
grande largo onde se encontra a sala comunitária.
Passados alguns momentos abre-se a grande porta da sala, onde os
turistas se apressam a entrar, depois de terem passado os cartões na máquina
que lhes fornece o talão que lhes vai permitir tomar parte no repasto.
Ao centro da sala pode ver-se uma enorme árvores natural, profusamente
iluminada com miríades de luzinhas de todas as cores, e todos os enfeites que
os moradores da reserva foram acumulando ao longo dos anos.
Durante o ano esta árvore é mantida dentro duma enorme estufa, onde se
cultivam também árvores de fruto. Além desta, há outras estufas para o cultivo
de vegetais de que se alimentam os moradores da reserva. Estes são
autosuficientes; vivem dos produtos que cultivam nas estufas, ovos das galinhas
que criam nos quintais, e carne de animais domésticos. Peixe não é ali
consumido há largos anos pois o rio, a que eles podem ter acesso, tem a água de
tal modo poluída que nenhum ser vivo ali sobrevive.
Ao fundo da sala uma lareira com troncos ardentes confere-lhe um
ambiente extremamente acolhedor.
Junto à árvore de Natal encontra-se uma mesa oval onde irão acomodar-se
o pároco e os maiorais da reserva. Dos lados da sala há mesas redondas às quais
se vão sentar os comensais que costumam ser cerca de quinhentos – quatrocentos
habitantes da reserva e aproximadamente cem turistas.
Marco, Isis e Ícaro sentam-se à mesa cujo número está indicado no talão
retirado à entrada. Em breve juntam-se-lhes mais sete pessoas, perfazendo um
total de dez.
Enquanto esperam pelo grande momento do jantar de Natal entretêm-se
petiscando pinhões e figos secos, nozes e passas, e apreciando a música natalícia
que se escoa pelos altifalantes.
A dado momento entram na sala, que está praticamente cheia, o pároco e o
chefe da reserva, seguidos das outras pessoas que vão ocupar a mesa oval.
Depois de uma saudação dirigida aos presentes sentam-se à mesa.
Logo de seguida começa a ser servido o jantar.
Aparece em primeiro lugar o bacalhau fumegante, logo seguido de
apetitosas batatas, grão de bico, ovos cozidos, feijão verde cortado bem
fininho e com um aspecto delicioso, grelos e por fim as tão apetecidas couves.
Em travessas mais pequenas é apresentado polvo cozido e ainda pasteis de
bacalhau.
Aqui, na reserva, onde residem pessoas oriundas das mais diversas regiões,
há sempre o cuidado de manter as tradições de cada um, cozinhando os alimentos
que lhes recordam os saudosos tempos do passado.
Em cada mesa estão colocados o azeite, o vinagre, o sal e a pimenta; em
jarros, o precioso vinho fabricado lá mesmo na reserva e sumos naturais para os
mais pequenos.
Porque se trata de um jantar de família, da grande família que é a
população da reserva, embora possam assistir convidados, todos aguardam o sinal
para iniciar a refeição, sinal que é dado pelo pároco ao fazer uma breve oração
de agradecimento pelos alimentos que têm à sua disposição.
É com grande prazer que o jantar começa, e aqui e ali ouvem-se rasgados elogios
especialmente da parte dos convidados, pouco habituados a alimentos naturais.
Logo que todos terminam começam a ser servidos os doces, cujo aroma a
canela e limão enche o recinto. São travessas a abarrotar de rabanadas,
aletria, arroz doce, formigos e os indispensáveis bolinhos de jerimú. Tudo isto
acompanhado por excelente vinho do Porto.
Comendo e conversando, a refeição arrasta-se em alegre convívio.
Cerca das onze horas aparece um grupo coral junto à lareira que começa a
entoar canções natalicias, o que contribui ainda mais para dar àquele jantar o
verdadeiro espírito de Natal.
Bem perto da meia noite o pároco retira-se e alguns minutos depois
ouve-se o sino da igreja, chamando os fiéis para a missa do galo.
Os que desejam assistir à missa, que são a maioria, dirigem-se para a
igreja. Marco, Ísis e Ícaro encontram-se entre eles.
No final, ao sair da igreja, Marco encontra um velho conhecido e amigo
dos seus tempos de juventude, que vive na reserva. Cumprimentam-se com um forte
abraço – já não se viam há um ano – e Marco comenta:
- É impressão minha ou
a população não aumentou do ano passado para cá?...
- Não é impressão, é
mesmo verdade. Como já te disse a população mantém-se sem
grandes oscilações
numéricas porque a natalidade é perfeitamente controlada e respeitada por
todos. Nem poderia ser doutra maneira, a reserva tem espaço limitado…
- Já me tinhas dito,
sim. E a respeito do bacalhau e do polvo… pelos vistos continuam
a conseguir arranjá-lo…
- Conseguimos, mas
cada ano que passa se torna mais difícil e mais caro. A reserva
que o conserva
congelado há quase cem anos cada vez faz mais restrições porque
o stock está a
diminuir, como é lógico, e eles valem-se disso para aumentar os pre-
ços que já são
exorbitantes…
Lá chegará o tempo em
que teremos que comer galinha no jantar de Natal…
- Que isso não
aconteça enquanto eu for vivo, pelo menos – retorquiu Marco.
Baixando a voz para que os bisnetos não o ouçam, Marco pergunta:
- E aquele problema
que me relataste o ano passado, acerca dos islâmicos que queriam
infiltra-se… voltou a acontecer?
- Felizmente não, o
que não admira, depois da recepção que demos aos anteriores…
- Ainda bem, não fazem
cá falta nenhuma – respondeu Marco.
Continuando o seu caminho dirigem-se à sala comunitária, donde
entretanto foram retiradas as comidas.
Com eles estão quase todos os turistas que assistiram ao jantar.
Das mochilas retiram colchões que se enchem automaticamente ao puxar de
um cordão; enfiam-se nos sacos cama e deitam-se quase tão confortavelmente como
se estivessem em casa, nos seus quartos. Ísis e Ícaro não adormecem facilmente,
tal é o seu estado de excitação devido aos últimos acontecimentos.
Levantam-se cedo e depois de tomarem o pequeno almoço num café próximo
da sala comunitária, voltam a percorrer as ruas enfeitadas, agora com as
luzinhas apagadas, cruzando-se com uma ou outra pessoa, geralmente turistas
que, como eles, aproveitam para passear. A felicidade que sentem por ali
estarem é tão grande que até o ar lhes parece menos poluído do que fora da
reserva. Nem têm necessidade de usar as máscaras que frequentemente utilizam no
mundo onde vivem.
Não se apercebem da passagem das horas, mas em breve soa a sineta
avisando que a sala comunitária vai abrir e quem quiser pode ali dirigir-se
para participar do almoço de Natal.
Todos se dirigem para lá, repetindo o ritual da noite anterior.
Em breve a sala é invadida pelos odores das carnes assadas, galinha,
perú e leitão, das batatinhas assadas e da fresca salada variada.
E como não poderia deixar de ser, findos os salgados segue-se a
quantidade infindável de doces, como na noite anterior, acrescida de variados
pudins.
Marco, Ísis e Ícaro terminam a refeição alegremente, e já a tarde vai
avançada quando, com bastante pena, abandonam a reserva e regressam ao seu
modermo apartamento, onde não encontram o mais leve vestígio de Natal.
No dia seguinte, ao acordarem, Ísis e Ícaro ficam a pensar se tudo não
passou de um lindo sonho…