quarta-feira, 1 de março de 2023

A CARRANCA MISTERIOSA

 Para quem não sabe, CARRANCA (em Náutica) é a figura ornamental esculpida em madeira, geralmente representando formas femininas ou de animais, com que era decorada a proa dos navios, entre os séculos XVI e XIX.

 

A CARRANCA MISTERIOSA

(Conto fantástico)

Em pleno alto mar, quando havia luar o chamamento era ainda mais forte, a ponto de se tornar irresistível. Corria o ano de 1522.

Naquela noite a lua cintilava excepcionalmente, com uma luz clara e brilhante.

Enrique caminhava cautelosamente, evitando fazer o mínimo ruído. Dirigia-se para a proa da embarcação, onde se encontrava a figura da deusa, senhora dos seus pensamentos.

Esculpida em madeira, integrada na proa da nau, a deusa rebrilhava na escuridão.

Como acontecia todas as noites, ao sentir a aproximação do marinheiro, ela voltou a cabeça, mantendo o corpo firmemente agarrado ao seu suporte de madeira. Sorriu, com o seu ar luminoso.

Ele soergueu-se o mais possível e depositou um beijo nos lábios entreabertos da sua amada.

Com as mãos presas ao poste que a sustinha, a deusa apenas podia oferecer-lhe o rosto que ele, afagando meigamente, cobria de beijos.

Soprava uma leve brisa que fazia ondular docemente as águas do mar, trazendo consigo um agradável cheiro a maresia.

As noites eram passadas num suave enlevo, entre carícias e juras de amor. Só quando a aurora começava a surgir no horizonte é que ele, depois de um prolongado beijo, se retirava tão silenciosamente como chegara. Não podia atrair as atenções dos outros marinheiros e muito menos revelar o seu segredo amoroso.

Esta paixão tinha surgido havia um mês, numa noite em que o marujo, incomodado com o calor, deixara o beliche de madeira sem colchão em que tentava adormecer e se dirigira para o convés, a fim de se refrescar com o ar nocturno e a brisa marítima.

Caminhando ao longo do barco, avistou, à proa, uma sombra que movia a cabeça na sua direcção.

Intrigado, dirigiu-se, cautelosamente, para o local. Foi quando ouviu uma voz sussurrar meigamente o seu nome. Aproximando-se mais confiante, constatou que a deusa esculpida na proa do barco estava movendo a cabeça e olhando-o nos olhos, com um sorriso que lhe iluminava o rosto.

Inicialmente petrificado, como que deslizou para junto dela. Estendeu a mão, tocando-lhe nos cabelos. Completamente subjugado pelo seu encanto, apenas murmurava:

- Minha deusa!

Manteve-se ali a noite toda, embriagado de felicidade.

O dia seguinte foi interminável. Meio adormecido ia desempenhando as suas funções que, por aquela altura, não eram muito trabalhosas. Ansiava pela noite para poder confirmar se o que vivera na noite anterior não passara de um sonho.

Quando anoiteceu e o barco caiu num silêncio profundo, Enrique, com todo o cuidado, levantou-se e dirigiu-se, sem hesitar, à proa, onde a deusa já o esperava.

Trinta noites se passaram sem que de tal se apercebesse.

Estavam os dois enamorados conversando mais uma vez quando começou a levantar-se um vento manso, que em breve se tornou forte, passando a furioso.

Soprava de Barlavento com tal violência que a caravela rodopiava. O balanço era assustador. O barco oscilava de bombordo para estibordo; as ondas, altíssimas, varriam o convés. O comandante andava como louco, dum lado para outro, vociferando ordens, sem saber bem o que fazer, já que a tempestade o apanhara de surpresa.

A acostagem estava fora de questão. Encontravam-se em alto mar, sem qualquer porto à vista. As anteparas ameaçavam ruir de um momento para o outro.

Bastante contrariado o comandante viu-se obrigado a tomar uma medida que se revelou não surtir qualquer efeito – alijar a carga. Nada se mantinha no seu lugar, tudo se movia numa dança frenética, no meio do barulho ensurdecedor da tempestade.

O timoneiro esforçava-se, em vão, por manter o leme firme. A bússola girava em todos os sentidos, descontrolada, semelhando um catavento.

Um balanço mais forte fez o barco inclinar-se todo para estibordo, ao mesmo tempo que ondas alterosas levantavam os marinheiros ao ar, arremessando-os para o mar. No meio das águas fortemente batidas pelo vento, na noite profundamente negra, os homens esbracejavam tentando manter-se à tona de água.

Enrique, passado o atordoamento causado pelo embate das ondas no seu corpo, tentou manter a calma no meio daquele inferno. Cortando as ondas agitadas foi nadando devagar, lutando com todas as forças, na direcção da proa. Uma onda fortíssima fez afundar a frente do barco no preciso momento em que Enrique estava a chegar lá. Mergulhada na água, a deusa, pela primeira vez, desprendeu os braços do poste em que se encontrava presa, puxando para si o marinheiro, levando-o, suspenso no ar, quando a embarcação voltou à posição normal.

Tão inesperadamente como surgira, o vento acalmou, as ondas desapareceram, e o mar entrou em calmaria.

O marinheiro continuava preso à sua amada que, agora com os braços soltos, o apertava carinhosamente contra o peito. Subitamente, um raio de luz fortíssimo desceu do céu, incidindo sobre o corpo da deusa, desprendendo-a do mastro que a aprisionava. Libertos e abraçados, ambos caminharam pela embarcação deserta. Ele segurou firme o leme e o barco desapareceu na noite rumando ao desconhecido.

Momentos depois foram avistados por um barco que navegava em alto mar, cujos marinheiros juraram ter visto, a sobrevoar o barco dos enamorados, um ser alado duma beleza resplandecente, brilhando mais que mil sóis, que os guiava na noite escura.

 Maria Caiano Azevedo