Para quem não sabe, CARRANCA (em Náutica) é a figura ornamental esculpida em madeira, geralmente representando formas femininas ou de animais, com que era decorada a proa dos navios, entre os séculos XVI e XIX.
A CARRANCA MISTERIOSA
(Conto fantástico)
Em pleno alto
mar, quando havia luar o chamamento era ainda mais forte, a ponto de se tornar
irresistível. Corria o ano de 1522.
Naquela noite a lua cintilava excepcionalmente, com uma luz clara
e brilhante.
Enrique caminhava cautelosamente, evitando fazer o mínimo ruído.
Dirigia-se para a proa da embarcação, onde se encontrava a figura da deusa,
senhora dos seus pensamentos.
Esculpida em madeira, integrada na proa da nau, a deusa rebrilhava
na escuridão.
Como acontecia todas as noites, ao sentir a aproximação do
marinheiro, ela voltou a cabeça, mantendo o corpo firmemente agarrado ao seu
suporte de madeira. Sorriu, com o seu ar luminoso.
Ele soergueu-se
o mais possível e depositou um beijo nos lábios entreabertos da sua amada.
Com as mãos presas ao poste que a sustinha, a deusa apenas podia
oferecer-lhe o rosto que ele, afagando meigamente, cobria de beijos.
Soprava uma leve brisa que fazia ondular docemente as águas do
mar, trazendo consigo um agradável cheiro a maresia.
As noites eram passadas num suave enlevo, entre carícias e juras
de amor. Só quando a aurora começava a surgir no horizonte é que ele, depois de
um prolongado beijo, se retirava tão silenciosamente como chegara. Não podia
atrair as atenções dos outros marinheiros e muito menos revelar o seu segredo
amoroso.
Esta paixão tinha surgido havia um mês, numa noite em que o marujo,
incomodado com o calor, deixara o beliche de madeira sem colchão em que tentava
adormecer e se dirigira para o convés, a fim de se refrescar com o ar nocturno
e a brisa marítima.
Caminhando ao longo do barco, avistou, à proa, uma sombra que
movia a cabeça na sua direcção.
Intrigado, dirigiu-se, cautelosamente, para o local. Foi quando
ouviu uma voz sussurrar meigamente o seu nome. Aproximando-se mais confiante,
constatou que a deusa esculpida na proa do barco estava movendo a cabeça e
olhando-o nos olhos, com um sorriso que lhe iluminava o rosto.
Inicialmente petrificado, como que deslizou para junto dela.
Estendeu a mão, tocando-lhe nos cabelos. Completamente subjugado pelo seu
encanto, apenas murmurava:
- Minha deusa!
Manteve-se ali a noite toda, embriagado de felicidade.
O dia seguinte foi interminável. Meio adormecido ia desempenhando
as suas funções que, por aquela altura, não eram muito trabalhosas. Ansiava
pela noite para poder confirmar se o que vivera na noite anterior não passara
de um sonho.
Quando anoiteceu e o barco caiu num silêncio profundo, Enrique,
com todo o cuidado, levantou-se e dirigiu-se, sem hesitar, à proa, onde a deusa
já o esperava.
Trinta noites se passaram sem que de tal se apercebesse.
Estavam os dois enamorados conversando mais uma vez quando começou
a levantar-se um vento manso, que em breve se tornou forte, passando a furioso.
Soprava de Barlavento com tal violência que a caravela rodopiava.
O balanço era assustador. O barco oscilava de bombordo para estibordo; as
ondas, altíssimas, varriam o convés. O comandante andava como louco, dum lado
para outro, vociferando ordens, sem saber bem o que fazer, já que a tempestade
o apanhara de surpresa.
A acostagem estava fora de questão. Encontravam-se em alto mar,
sem qualquer porto à vista. As anteparas
ameaçavam ruir de um momento para o outro.
Bastante contrariado o comandante viu-se obrigado a tomar uma
medida que se revelou não surtir qualquer efeito – alijar a carga. Nada se
mantinha no seu lugar, tudo se movia numa dança frenética, no meio do barulho
ensurdecedor da tempestade.
O timoneiro esforçava-se, em vão, por manter o leme firme. A bússola
girava em todos os sentidos, descontrolada, semelhando um catavento.
Um balanço mais forte fez o barco
inclinar-se todo para estibordo, ao mesmo tempo que ondas alterosas levantavam
os marinheiros ao ar, arremessando-os para o mar. No meio das águas fortemente
batidas pelo vento, na noite profundamente negra, os homens esbracejavam
tentando manter-se à tona de água.
Enrique, passado o atordoamento causado
pelo embate das ondas no seu corpo, tentou manter a calma no meio daquele
inferno. Cortando as ondas agitadas foi nadando devagar, lutando com todas as
forças, na direcção da proa. Uma onda fortíssima fez afundar a frente do barco
no preciso momento em que Enrique estava a chegar lá. Mergulhada na água, a
deusa, pela primeira vez, desprendeu os braços do poste em que se encontrava
presa, puxando para si o marinheiro, levando-o, suspenso no ar, quando a
embarcação voltou à posição normal.
Tão inesperadamente como surgira, o
vento acalmou, as ondas desapareceram, e o mar entrou em calmaria.
O marinheiro continuava preso à sua amada que, agora com os braços
soltos, o apertava carinhosamente contra o peito. Subitamente, um raio de luz
fortíssimo desceu do céu, incidindo sobre o corpo da deusa, desprendendo-a do
mastro que a aprisionava. Libertos e abraçados, ambos caminharam pela
embarcação deserta. Ele segurou firme o leme e o barco desapareceu na noite
rumando ao desconhecido.
Momentos depois
foram avistados por um barco que navegava em alto mar, cujos marinheiros
juraram ter visto, a sobrevoar o barco dos enamorados, um ser alado duma beleza resplandecente, brilhando mais que mil sóis, que
os guiava na noite escura.
Maria Caiano Azevedo