sábado, 1 de setembro de 2018

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS III


“ … - Mas que raio de nome o homem havia de arranjar: Carvalho Araújo!
“Carvalho Araújo”, tanto quanto sei, é nome de navio. Querem lá ver que ele é marinheiro? Tinha graça agora aparecer-me pela frente um capitão-de-mar-e-guerra… Ou…melhor ainda, um sócio da CNN (3). – e o seu rosto iluminou-se com um largo sorriso.
Como que a chamá-la à realidade, o telefone tocou…”

SEGREDOS – CAPÍTULO III

Contrariada, Nanda levantou-se para ir buscar o telemóvel à carteira que deixara sobre a mesinha de entrada.
A chamada era do filho Luís, do Alentejo. Resolveu não atender. Podia adivinhar o que ele queria – dinheiro. O problema é que agora, desempregada, a situação também não estava famosa. Não podia pôr-se a mexer nas reservas que conseguira amealhar, e que podiam vir a fazer-lhe falta. Não sabia quanto tempo ainda estaria sem trabalho… O negócio das “farturas” era muito incerto…
- Bem, já que me levantei, vou tratar do assunto deste filho, que tanto me preocupa.
Com o telemóvel na mão foi sentar-se no sofá da sala e, aí instalada, marcou o número do seu ex, o Tó Zé. Apenas dois ou três toques depois, atenderam.
- Tintas e Vernizes de Todos os Matizes…bom dia! Em que posso ser útil? – era a voz do ex-marido.
- Bom dia, Tó Zé. Daqui é a Nanda.
- Reconheci logo a tua voz mal pronunciaste “Bom dia”…
- Que bom! Vá lá, lembras-te de alguma coisa, já não é mau de todo – ripostou Nanda, com voz trocista.
- Não sejas assim, mulher! Tu sabes muito bem que não foi só da voz que eu não me esqueci. Lembro-me de cada pormenor do teu corpo, que nunca deixei de amar – a voz era doce como mel.
- Sim, eu sei, amavas-me tanto que nem querias gastar-me. Por isso ias usando outras, para me poupares… Se calhar era para veres se eu durava até aos cem anos… - Nanda continuava, sarcástica.
- Podes crer que nunca nenhuma mulher me fez feliz como tu. O que se passava é que eu queria ter a certeza do meu amor por ti, por isso experimentava outras para ver a diferença. Ai, Nanda, Nanda, tu nunca me compreendeste, esse é que foi o mal.
Mas diz-me, telefonaste para me dizer que, finalmente, resolveste vir trabalhar comigo?
- Tu estás cada vez mais doido! Já te disse mais de mil vezes que nem que eu estivesse a passar fome iria trabalhar contigo.
- Por acaso até estás enganada. Não foram mais de mil vezes, foram apenas 993. Parece que afinal não te serve de grande coisa esse curso que andaste a tirar no ISCAL (1). Ninguém diria que tens o mestrado em Contabilidade e Gestão – Tó Zé falava em tom de voz alegre, folgazão.
Nanda sorriu, mas guardou silêncio. Não queria que ele percebesse que lhe tinha achado graça. Preferia manter sempre aquela posição de “eterna ofendida” que não queria dar-lhe confiança. A verdade é que, apesar de tudo o que ele tinha aprontado, no fundo ainda sentia por ele um grande carinho.
Respirou fundo e, já com voz calma, continuou:
- Não sei porque estamos para aqui a deitar conversa fora… O que tenho para te dizer é muito sério, e é bom que prestes bem atenção.
- Sou todo ouvidos, mulher. Fala!
- Mais uma vez te venho falar do teu filho…
- Do meu filho? Do meu ou do nosso? Ou será do teu? – Tó Zé imprimira um tom sério à voz. Já não brincava.
- Não precisas ser desagradável! Sabes muito bem que estou a falar do Luís – Nanda adoptara um tom magoado.
- Desculpa, não queria aborrecer-te. Mas então o que me queres dizer? É novamente a situação em que ele vive?
- Exactamente! Não sabes quanto me dói saber que um filho meu está passando tantas dificuldades. Demais a mais agora…
- Que queres dizer com isso? Ele está doente? – Tó Zé mostrava-se preocupado.
- Não, felizmente está de boa saúde.
- Então o que se passa, mulher? Desembucha duma vez!
- Prepara-te, Tó Zé! Vais ser avô…
Do outro lado… profundo silêncio. Não se ouvia o mais leve som. Nanda pensou que a chamada tivesse caído.
- Tó Zé, estás aí?
- Estou, sim – ouviu, por fim.
- Ficaste tão calado…
- Pois… Sabes, Nanda, há muito tempo que não recebia uma notícia que me fizesse tão feliz – a voz era verdadeiramente emocionada.
Nanda sentiu um aperto no coração. Afinal, o seu ex-marido ainda tinha sentimentos. Era um “estabanado” (2), mas agora mostrava que sentia verdadeiro amor pelo filho.
Ficou sem saber bem o que lhe responder. Permaneceu uns momentos calada. Por fim, disse:
- Pois a melhor forma de demonstrares o que dizes é ajudando o Luís, como tantas vezes te pedi.
- Fica descansada. Podes dizer-lhe que trate das coisas para vir para cima, que não vai viver debaixo da ponte, nem lhe há-de faltar o pão para a boca. Para o meu neto… nem que eu tivesse que ficar sem comer! A propósito, já se sabe se é menino ou menina?
- Não, eu não sei, e penso que eles também não sabem., senão o Luís já me teria dito. Com as dificuldades com que vivem… nem dinheiro têm para ir ao médico. Logo que eles venham para cima quero levá-la ao obstetra.
- Tu sabes que os negócios não andam muito bem, e por isso é que eu ainda não tinha pensado verdadeiramente em ajudá-lo. Mas agora nem penso duas vezes. Eu vivo numa casa muito pequena, só tem dois quartos, um para nós e outro para o rapaz… Não tenho espaço para eles lá em casa, é claro, mas não te aflijas que eu vou arranjar uma solução. Na rua não vão ficar.
Nanda sentiu-se ligeiramente incomodada. Sabia que o ex-marido tinha refeito a sua vida. Casara, ou acasalara – ela não sabia nem queria saber – com uma das galdérias com quem andava quando ainda era casado com ela, e que tinha um filho dessa união, um rapaz dois ou três anos mais novo que o Luís, agora com 26 anos.
Sabia-o desde sempre, já que o contacto entre ambos se foi mantendo, aparentemente por causa dos filhos, embora, na verdade, sentissem necessidade de saberem um do outro, o que os levava a telefonarem de vez em quando. Mas ouvi-lo falar assim, com todo o à-vontade, na sua situação actual, causava-lhe uma dor fininha que lhe custava suportar.
Foi, por isso, com voz sacudida, que lhe respondeu:
- Sim, eu entendo, mas a minha casa também não é grande, tem apenas dois quartos, como a tua. Mas, como sabes, não posso dispensar o quarto de hóspedes, que é onde fica o Miguel quando cá vem. Aliás, não deve tardar muito a vir de férias…
Como já dissemos tudo o que havia para dizer… vai à tua vida que eu vou à minha.
-Está bem, minha querida. Diz então ao Luis que prepare tudo, que hoje mesmo eu vou tratar de arranjar uma solução pra o alojamento deles.
Nanda sentiu de novo aquele “apertozinho” no peito ao ouvi-lo trata-la por “querida”. Dando à voz o tom mais desprendido que conseguiu, respondeu:
- Tudo bem, vou informá-los já de seguida. Até logo, um beijo.
- Até logo. Mil beijos.
Com um sorriso estampado no rosto, Nanda desligou o telemóvel e dirigiu-se à cozinha. A conversa abrira-lhe o apetite.
Preparou uma salada de legumes com salmão fumado. Tinha muito cuidado com a alimentação pois não queria deixar-se engordar. Com os seus 47 anos era ainda uma mulher muito elegante e bastante atraente. Como fora mãe com apenas 18 anos, agora, ao lado dos filhos, o Miguel com 29 e o Luís com 26, muitas vezes passava por irmã deles. Eles ficavam todos orgulhosos da mãe que tinham, e ela… ela ficava toda vaidosa!
Depois de arrumar a pouca louça que utilizara, foi dar uma limpeza à casa. Noutros tempos, mais abonados, tinha uma empregada que ia todas as manhãs fazer esse serviço; mas agora tem que economizar o mais possível, já que está desempregada há bastante tempo, e o pouco que o Fundo de Desemprego lhe paga não dá para luxos, como o de ter empregada diariamente.
A verdade é que o trabalho nunca lhe meteu medo, e faz o que for preciso mesmo fora da sua área. Nunca teve qualquer prurido em relação a isso. Já esteve a chefiar uma secção de contabilidade numa grande empresa, e aí, sim, aplicou todos os seus conhecimentos académicos. Infelizmente depois de três anos de trabalho a empresa foi à falência, e Nanda ficou desempregada.
Mas também já trabalhou como “pseudo-secretária” na EILA, contratada como tal pelo Doutor Santos Costa, e onde fez de tudo menos o trabalho de secretária, propriamente dito. Também este emprego durou pouco tempo, não chegou a um ano, e igualmente a empresa foi à falência, mas desta vez fraudulenta. O “atraente” Doutor Santos Costa fez um enorme desfalque e depois “deu às de Vila Diogo”, deixando os empregados com “uma mão à frente e outra atrás”, que é como quem diz – sem nada!
Depois de terminados os seus afazeres telefonou para a sua melhor amiga, Bela, desafiando-a para uma caminhada, o que faziam com muita frequência.
Como de costume Bela aceitou o convite. Combinaram encontrar-se na esquina – já que Bela morava numa rua paralela à de Nanda - dali por meia hora.
Deu comida e água fresca ao Tejo, que, com o calor, se esparramara no chão da cozinha, onde se sentia mais fresco.
Foi vestir o fato de treino e calçar os ténis, e, entretanto lembrou-se de que tinha de telefonar ao filho. Olhou para o relógio. Estava a fazer-se tarde para o encontro marcado com Bela.
- Também não é uma urgência assim tão grande – pensou. Ligo-lhe quando regressar.
Estava a abrir a porta da rua quando o telemóvel tocou. Viu que era o Luís e resolveu não atender. Logo de seguida ouviu uma mensagem em alta voz:
- Mãe! Porque não atendes o telefone? Já te liguei hoje não sei quantas vezes! Preciso falar contigo com a máxima urgência! Liga-me, por favor!
A voz do filho denotava, realmente, urgência. E ansiedade.


(1) – ISCAL – Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa
(2) "Estabanado"- Alteração de estavanado
1. Que tem pouco juízo ou pensa pouco nas consequências. = DOIDIVANAS, ESTOUVADO, LEVIANO
In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
(3) A expressão “dar às de Vila Diogo” significa FUGIR
Embora a origem desta expressão não esteja comprovada, diz-se que, por ordem de Fernando III de Castela, na localidade espanhola de Villadiego, que em português deu Vila Diogo, os judeus podiam circular livremente sem serem perseguidos.
Os judeus de outras localidades, para escapar à perseguição, fugiam para Villadiego.


Maria Caiano Azevedo


Tal como informei no Post anterior estarei de regresso em finais de Setembro, e visitarei todos.
Até lá… que tudo corra à medida dos vossos desejos.

Beijinhos