SEGREDOS – CAPÍTULO XXIII
Uma ou duas horas
mais tarde, quem passasse por perto ouviria o respirar profundo do prédio
adormecido…”
SEGREDOS – CAPÍTULO XXIV
Domingo é o dia dedicado à família em que vai almoçar
com o Luís, a Catarina e o netinho. Às vezes, bastantes, Tó zé junta-se-lhes,
levando sempre uma apetitosa sobremesa.
Passa a manhã levando o Tejo a passear – o que só faz
aos fins de semana, e lhe dá um enorme prazer – e depois entretém-se a arrumar
pequenas coisas que não deixa ao cuidado da empregada, enquanto ouve música
suave que lhe transmite uma enorme calma e serenidade.
Ao escolher a roupa para vestir fá-lo com todo o
cuidado, pois gosta de se apresentar sempre muito bem arranjada – no fundo,
apesar de não o querer reconhecer, ainda quer impressionar o ex-marido.
E assim se passam, habitualmente, as manhãs de
Domingo.
Naquele dia, o toque do telefone fê-la
sobressaltar-se, embrenhada que estava nos seus pensamentos, antevendo a vinda
de férias do filho Miguel.
Com espanto verificou tratar-se de Bela, o que não era
usual – normalmente falavam, diariamente, à noite, antes de irem para a cama.
Foi com alguma apreensão que atendeu, e, com angústia,
ouviu a amiga soluçar do outro lado da linha. Ficou aflita.
- Minha querida, mas o que é que se passa? Porque
estás nesse estado?
Bela soluçava convulsivamente, e Nanda não conseguia
perceber nada do que ela dizia, entre os soluços. Passaram-lhe pela cabeça mil
e uma coisas, mas tudo suposições sem qualquer fundamento. Ainda no dia
anterior tinham falado pelo telefone e estava tudo bem…
A custo conseguiu, por fim, entender:
- O meu pai… - e o choro
não deixava perceber mais nada.
“Será que está doente? Ou pior, terá morrido? Para uma
aflição tão grande, só uma coisa desse género…” - pensou
- Mas o teu pai… o quê? Por favor, tenta acalmar-te,
doutro modo fico sem saber o que se passa…
Finalmente a voz de Nanda transmitiu-lhe um pouco de
calma, e ela conseguiu articular:
- O meu pai foi preso! – e os soluços recomeçaram.
- Meu amor, procura acalmar-te um bocadinho. Eu vou já
ter contigo. Só tens de me dar tempo para me arranjar. Em meia hora estou ao pé
de ti. Mas, por favor, não fiques nesse estado.
Nanda preparou-se em tempo record e voou para junto da
amiga. Encontrou-a irreconhecível, os olhos inchados de tanto chorar, ainda de
pijama e sem qualquer make-up… Nanda sentiu uma dor enorme ao vê-la.
Abraçou-a com toda a força e começou a acarinhá-la
como se fosse um bebé, fazendo-lhe festas e mimos, e deixando que as suas
próprias lágrimas se juntassem às dela.
Sentaram-se no sofá da sala – Bela vivia num
apartamento de apenas um quarto, já que, desde que se divorciara, há bastantes
anos, nunca mais tivera nenhum relacionamento sério.
Aos poucos os soluços foram rareando e, sentindo todo o carinho de Nanda, encostou a
cabeça ao seu ombro e começou a falar.
- Ai! O meu coração parece que vai rebentar! - queixou-se.
- Tem calma e diz-me o que aconteceu – pediu Nanda.
- Olha, nem sei por onde começar… é tanta coisa!
- Começa pelo princípio, que é o melhor.
- Pois, só que eu nem sei qual é o princípio.
- Vejamos – ponderou Nanda. Tu disseste-me
que o teu pai foi preso… certo? Então começa por me dizer os motivos que
levaram a essa situação…
- Tu não vais acreditar! A minha mãe apresentou queixa
do meu pai porque, segundo ela, ele molestava jovens, raparigas menores,
entendes?
Nanda sentiu-se invadida por um turbilhão de
sentimentos contraditórios – pena, pelo enorme desgosto da amiga, alegria
incontida por se ver justiçada ao fim de tantos anos… em que tanto sofrera em
silêncio, sozinha.
Estava como que paralisada, sem saber o que fazer ou
dizer. Fazia um esforço sobre humano para não deixar transparecer a verdadeira
euforia que começava a invadi-la. Dominando-se, perguntou:
- Mas como é que a tua mãe soube tal coisa? Para
conseguir que o teu pai fosse preso deve ter reunido provas muito fortes…
Bela mostrava-se muito mais calma. Percebia-se que o
facto de poder falar no assunto a aliviava bastante, pois foi em tom mais
contido, que continuou:
- Na verdade, este assunto não é recente. Há muitos
anos que a minha mãe sabia que o meu pai tinha casos extra conjugais, mas
sempre pensou que seriam aventuras vulgares,
com outras mulheres, nunca imaginou que houvesse meninas metidas no assunto.
Por isso fingia ignorar, fazendo por
manter a situação aparentemente normal. Ele nunca desconfiou que ela sabia, o
que o levou a começar a tornar-se menos cuidadoso. Isso facilitou muito o
trabalho do detective que a minha mãe contratou.
- Dizes que a tua mãe há muito tempo tinha
conhecimento da situação… E sabes há quantos anos isso já acontecia? – Nanda fez a pergunta a medo, ansiando e ao mesmo tempo receando a
resposta.
- Não sei exactamente há quanto tempo, a minha mãe só
me disse que o caso não é recente, que ele faz isso há vários anos.
- Ah! Agora estou a lembrar-me duma vez que tu
acompanhaste a tua mãe durante meses, e me disseste que eles se tinham
desentendido e a tua mãe decidira afastar-se por um tempo… Lembras-te?
- Sim, tenho uma vaga ideia – tartamudeou Bela.
- Pois olha que eu lembro-me muito bem. Foi por isso
que não pudeste assistir ao meu casamento. Andavas lá
pelo estrangeiro com a tua mãe… – insistiu Nanda.
Bela ficou em silêncio. Por momentos manteve os olhos
baixos. Depois retomou a conversa apressadamente, como se não quisesse falar
nesse assunto do passado.
Nanda sentiu uma espécie de arrepio – o que já lhe
acontecera anteriormente –ao pensar que
a amiga guardava qualquer segredo daquela época, que nunca quisera contar-lhe.
Bela retomara a palavra:
E agora aqui estou eu, entre os dois, sem saber o que
fazer. O meu pai foi detido e vai ser presente ao juiz. O mais certo é não se safar,
porque as provas que a minha mãe conseguiu comprometem-no até à raiz dos
cabelos.
Sabes? eu não consigo entender como é que o meu pai,
uma pessoa tão respeitável, que eu admirava tanto – eu tinha-o num pedestal! -
foi capaz de rondar uma escola para aliciar uma miúda, metê-la no carro e
levá-la para um desses hotéis que se prestam a este tipo de encontros. E o pior
é que ele o fazia com alguma regularidade…
Bolas! Há tantas mulheres profissionais do sexo,
porque é que ele havia de se interessar por miúdas menores?
Nanda sentia o coração bater aceleradamente, ao
lembrar-se de que também ela fora vítima do assédio desse homem de quem estavam
falando, e do qual se livrara apenas com a chegada da empregada. Passados mais
de trinta anos parecia-lhe ainda sentir
contra si aquele corpo que a queria dominar, e ao qual ela, uma jovem de apenas
quinze anos, já mal tinha forças para
resistir.
Teve de abanar a cabeça com força para expulsar estes
pensamentos.
- Infelizmente há muitos homens que têm essa tara – conseguiu responder. Eu lamento aquilo por que estás a passar, minha
querida, mas se tentares pôr-te no lugar dessas miúdas, vais ver que passas a
encarar o eventual castigo que o teu pai venha a sofrer como uma questão de
justiça…
- Eu sei… mas… é o meu pai. Não percebes que custa
muito?
- Claro que custa muito! Mas nós temos de ser
responsabilizados pelos nossos actos. Se assim não fosse viveríamos num caos – respondeu Nanda, com dureza.
- Eu sei que estás coberta de razão, Nanda, meu amor,
mas não me peças para ser racional neste caso. Não hoje, pelo menos. É tudo
ainda muito recente…
- Claro, meu anjo, desculpa se te pareço insensível. –
e Nanda voltou a acariciar-lhe os cabelos beijando-a
no rosto como se quisesse secar as já raras lágrimas.
Mantiveram-se em silêncio por alguns momentos. Foi
Nanda que o interrompeu para dizer:
- Sabes o que estou aqui a pensar? É que tu vais
almoçar comigo!
- Nem penses nisso! Hoje é o teu “dia da família”. Já
foi mau bastante ter-te “alugado” para curtir as minhas mágoas – respondeu Bela
com um meio sorriso.
- Tens toda a razão, é o meu “dia de família”. E tu
não és da família? Tu és a minha irmã muito querida, que eu amo mais do que se
fosses irmã biológica…
Bela abraçou-a com mais força e as lágrimas voltaram a
assomar aos seus olhos. Nanda afastou-a docemente e disse, em tom peremptório:
- Vais tomar um belo banho e pôr-te linda como és
sempre. Entretanto eu vou a casa para fazer o mesmo… Não queres que eu me apresente
para o almoço com este fato de treino que enfiei à pressa para vir ter contigo…
É ou não é? Depois passo por cá para te levar.
- Estás a tentar-me… A verdade é que hoje não sinto
vontade de ir almoçar com a minha mãe, como é costume. Bem… na verdade
costumava almoçar com os dois… - e o seu rosto
ensombrou-se de novo.
Nanda levantou-se como que a dar o assunto por
encerrado. Dirigindo-se à porta, disse, no tom mais alegre possível:
- Trata de te arranjar! E livra-te de me fazeres
esperar!
Logo que se apanhou sentada ao volante sentiu uma
vontade enorme de gritar bem alto : “Estou vingada! A justiça de Deus pode
demorar mas não falha!”
De repente sentiu-se estranhamente leve, como se uma
montanha lhe tivesse saído dos ombros.
O tempo que demorou até chegar a sua casa passou-o a
cantarolar. De vez em quando lembrava-se de Bela e do seu enorme desgosto e
murmurava: “Perdoa-me, meu amor, mas não posso evitar que esta enorme alegria
inunde o meu peito!”
O almoço decorreu alegremente como acontecia sempre
que se reuniam. Nani, o netinho, já se sentava à mesa, na sua cadeirinha alta, contribuindo
em grande parte para o barulho que se instalava, batendo constantemente com a
colher na mesa a reclamar comida. Tudo lhe agradava; mesmo a alimentos desconhecidos
não torcia o nariz. Por isso estava forte e bem desenvolvido.
Terminada a refeição Nanda disse a Bela:
- Vamos para minha casa!
Ali chegadas Nanda fez todos os possíveis para evitar
o assunto do pai de Bela.
Passaram a tarde falando de tudo, vendo fotos antigas,
recordando os tempos em que eram umas jovens cheias de ilusões, depois o
casamento da Nanda e o nascimento dos filhos, até que Bela comentou:
- Minha querida, o teu ex ainda continua apaixonado
por ti.
Nanda deu uma gargalhada.
- Tu lembras-te de cada coisa! Onde vai essa paixão!
Tenho de reconhecer que, durante alguns anos, fomos muito felizes. Depois… ele
começou a andar com outras mulheres… e acabámos por nos separar. Agora somos apenas bons amigos…
- Sim, bons amigos unidos por dois filhos e um neto…
Digo-te uma coisa, eu estive a reparar na maneira como ele olha para ti. Ainda
há ali muito amor… E, por falar em amor, nunca mais soubeste nada do
Alessandro?
Maria Caiano Azevedo