quinta-feira, 1 de outubro de 2020

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XXIV

SEGREDOS – CAPÍTULO XXIII

“… E, a pensar no Miguel e em como deveria estar prestes a vir de férias, tranquilamente entregou-se aos braços de Morfeu.

Uma ou duas horas mais tarde, quem passasse por perto ouviria o respirar profundo do prédio adormecido…”

 

SEGREDOS – CAPÍTULO XXIV

Domingo é o dia dedicado à família em que vai almoçar com o Luís, a Catarina e o netinho. Às vezes, bastantes, Tó zé junta-se-lhes, levando sempre uma apetitosa sobremesa.

Passa a manhã levando o Tejo a passear – o que só faz aos fins de semana, e lhe dá um enorme prazer – e depois entretém-se a arrumar pequenas coisas que não deixa ao cuidado da empregada, enquanto ouve música suave que lhe transmite uma enorme calma e serenidade.

Ao escolher a roupa para vestir fá-lo com todo o cuidado, pois gosta de se apresentar sempre muito bem arranjada – no fundo, apesar de não o querer reconhecer, ainda quer impressionar o ex-marido.

E assim se passam, habitualmente, as manhãs de Domingo.

Naquele dia, o toque do telefone fê-la sobressaltar-se, embrenhada que estava nos seus pensamentos, antevendo a vinda de férias do filho Miguel.

Com espanto verificou tratar-se de Bela, o que não era usual – normalmente falavam, diariamente, à noite, antes de irem para a cama.

Foi com alguma apreensão que atendeu, e, com angústia, ouviu a amiga soluçar do outro lado da linha. Ficou aflita.

- Minha querida, mas o que é que se passa? Porque estás nesse estado?

Bela soluçava convulsivamente, e Nanda não conseguia perceber nada do que ela dizia, entre os soluços. Passaram-lhe pela cabeça mil e uma coisas, mas tudo suposições sem qualquer fundamento. Ainda no dia anterior tinham falado pelo telefone e estava tudo bem…

A custo conseguiu, por fim, entender:

- O meu pai… - e o choro não deixava perceber mais nada.

“Será que está doente? Ou pior, terá morrido? Para uma aflição tão grande, só uma coisa desse género…” - pensou

- Mas o teu pai… o quê? Por favor, tenta acalmar-te, doutro modo fico sem saber o que se passa…

Finalmente a voz de Nanda transmitiu-lhe um pouco de calma, e ela conseguiu articular:

- O meu pai foi preso! – e os soluços recomeçaram.

- Meu amor, procura acalmar-te um bocadinho. Eu vou já ter contigo. Só tens de me dar tempo para me arranjar. Em meia hora estou ao pé de ti. Mas, por favor, não fiques nesse estado.

Nanda preparou-se em tempo record e voou para junto da amiga. Encontrou-a irreconhecível, os olhos inchados de tanto chorar, ainda de pijama e sem qualquer make-up… Nanda sentiu uma dor enorme ao vê-la.

Abraçou-a com toda a força e começou a acarinhá-la como se fosse um bebé, fazendo-lhe festas e mimos, e deixando que as suas próprias lágrimas se juntassem às dela.

Sentaram-se no sofá da sala – Bela vivia num apartamento de apenas um quarto, já que, desde que se divorciara, há bastantes anos, nunca mais tivera nenhum relacionamento sério.

Aos poucos os soluços foram rareando e,   sentindo todo o carinho de Nanda, encostou a cabeça ao seu ombro e começou a falar.

- Ai! O meu coração parece que vai rebentar! - queixou-se.

- Tem calma e diz-me o que aconteceu – pediu Nanda.

- Olha, nem sei por onde começar… é tanta coisa!

- Começa pelo princípio, que é o melhor.

- Pois, só que eu nem sei qual é o princípio.

- Vejamos – ponderou Nanda. Tu disseste-me que o teu pai foi preso… certo? Então começa por me dizer os motivos que levaram a essa situação…

- Tu não vais acreditar! A minha mãe apresentou queixa do meu pai porque, segundo ela, ele molestava jovens, raparigas menores, entendes?

Nanda sentiu-se invadida por um turbilhão de sentimentos contraditórios – pena, pelo enorme desgosto da amiga, alegria incontida por se ver justiçada ao fim de tantos anos… em que tanto sofrera em silêncio, sozinha.

Estava como que paralisada, sem saber o que fazer ou dizer. Fazia um esforço sobre humano para não deixar transparecer a verdadeira euforia que começava a invadi-la. Dominando-se, perguntou:

- Mas como é que a tua mãe soube tal coisa? Para conseguir que o teu pai fosse preso deve ter reunido provas muito fortes…

Bela mostrava-se muito mais calma. Percebia-se que o facto de poder falar no assunto a aliviava bastante, pois foi em tom mais contido, que continuou:

- Na verdade, este assunto não é recente. Há muitos anos que a minha mãe sabia que o meu pai tinha casos extra conjugais, mas sempre pensou que seriam aventuras vulgares, com outras mulheres, nunca imaginou que houvesse meninas metidas no assunto. Por isso fingia  ignorar, fazendo por manter a situação aparentemente normal. Ele nunca desconfiou que ela sabia, o que o levou a começar a tornar-se menos cuidadoso. Isso facilitou muito o trabalho do detective que a minha mãe contratou.

- Dizes que a tua mãe há muito tempo tinha conhecimento da situação… E sabes há quantos anos isso já acontecia? – Nanda fez a pergunta a medo, ansiando e ao mesmo tempo receando a resposta.

- Não sei exactamente há quanto tempo, a minha mãe só me disse que o caso não é recente, que ele faz isso há vários anos.

- Ah! Agora estou a lembrar-me duma vez que tu acompanhaste a tua mãe durante meses, e me disseste que eles se tinham desentendido e a tua mãe decidira afastar-se por um tempo… Lembras-te?

- Sim, tenho uma vaga ideia – tartamudeou Bela.

- Pois olha que eu lembro-me muito bem. Foi por isso que não pudeste assistir ao meu casamento. Andavas lá pelo estrangeiro com a tua mãe… – insistiu Nanda.

Bela ficou em silêncio. Por momentos manteve os olhos baixos. Depois retomou a conversa apressadamente, como se não quisesse falar nesse assunto do passado.

Nanda sentiu uma espécie de arrepio – o que já lhe acontecera anteriormente –ao pensar  que a amiga guardava qualquer segredo daquela época, que nunca quisera contar-lhe.

Bela retomara a palavra:

- Mas, como se isto não bastasse, a minha mãe arranjou forma de correr com o meu pai da empresa. Como é sócia, não lhe foi difícil, com a ajuda do advogado, descobrir documentos altamente comprometedores, como contas offshore de que ela não tinha conhecimento… e coisas deste género, pouco claras…        

E agora aqui estou eu, entre os dois, sem saber o que fazer. O meu pai foi detido e vai ser presente ao juiz. O mais certo é não se safar, porque as provas que a minha mãe conseguiu comprometem-no até à raiz dos cabelos.

Sabes? eu não consigo entender como é que o meu pai, uma pessoa tão respeitável, que eu admirava tanto – eu tinha-o num pedestal! - foi capaz de rondar uma escola para aliciar uma miúda, metê-la no carro e levá-la para um desses hotéis que se prestam a este tipo de encontros. E o pior é que ele o fazia com alguma regularidade…

Bolas! Há tantas mulheres profissionais do sexo, porque é que ele havia de se interessar por miúdas menores?

Nanda sentia o coração bater aceleradamente, ao lembrar-se de que também ela fora vítima do assédio desse homem de quem estavam falando, e do qual se livrara apenas com a chegada da empregada. Passados mais de  trinta anos parecia-lhe ainda sentir contra si aquele corpo que a queria dominar, e ao qual ela, uma jovem de apenas quinze anos,  já mal tinha forças para resistir.

Teve de abanar a cabeça com força para expulsar estes pensamentos.

- Infelizmente há muitos homens que têm essa tara – conseguiu responder. Eu lamento aquilo por que estás a passar, minha querida, mas se tentares pôr-te no lugar dessas miúdas, vais ver que passas a encarar o eventual castigo que o teu pai venha a sofrer como uma questão de justiça…

- Eu sei… mas… é o meu pai. Não percebes que custa muito?

- Claro que custa muito! Mas nós temos de ser responsabilizados pelos nossos actos. Se assim não fosse viveríamos num caos – respondeu Nanda, com dureza.

- Eu sei que estás coberta de razão, Nanda, meu amor, mas não me peças para ser racional neste caso. Não hoje, pelo menos. É tudo ainda muito recente…

- Claro, meu anjo, desculpa se te pareço insensível. – e Nanda voltou a acariciar-lhe os cabelos beijando-a no rosto como se quisesse secar as já raras lágrimas.

Mantiveram-se em silêncio por alguns momentos. Foi Nanda que o interrompeu para dizer:

- Sabes o que estou aqui a pensar? É que tu vais almoçar comigo!

- Nem penses nisso! Hoje é o teu “dia da família”. Já foi mau bastante ter-te “alugado” para curtir as minhas mágoas – respondeu Bela com um meio sorriso.

- Tens toda a razão, é o meu “dia de família”. E tu não és da família? Tu és a minha irmã muito querida, que eu amo mais do que se fosses irmã biológica…

Bela abraçou-a com mais força e as lágrimas voltaram a assomar aos seus olhos. Nanda afastou-a docemente e disse, em tom peremptório:

- Vais tomar um belo banho e pôr-te linda como és sempre. Entretanto eu vou a casa para fazer o mesmo… Não queres que eu me apresente para o almoço com este fato de treino que enfiei à pressa para vir ter contigo… É ou não é? Depois passo por cá para te levar.

- Estás a tentar-me… A verdade é que hoje não sinto vontade de ir almoçar com a minha mãe, como é costume. Bem… na verdade costumava almoçar com os dois… - e o seu rosto ensombrou-se de novo.

Nanda levantou-se como que a dar o assunto por encerrado. Dirigindo-se à porta, disse, no tom mais alegre possível:

- Trata de te arranjar! E livra-te de me fazeres esperar!

Logo que se apanhou sentada ao volante sentiu uma vontade enorme de gritar bem alto : “Estou vingada! A justiça de Deus pode demorar mas não falha!”

De repente sentiu-se estranhamente leve, como se uma montanha lhe tivesse saído dos ombros.

O tempo que demorou até chegar a sua casa passou-o a cantarolar. De vez em quando lembrava-se de Bela e do seu enorme desgosto e murmurava: “Perdoa-me, meu amor, mas não posso evitar que esta enorme alegria inunde o meu peito!”

O almoço decorreu alegremente como acontecia sempre que se reuniam. Nani, o netinho, já se sentava à mesa, na sua cadeirinha alta, contribuindo em grande parte para o barulho que se instalava, batendo constantemente com a colher na mesa a reclamar comida. Tudo lhe agradava; mesmo a alimentos desconhecidos não torcia o nariz. Por isso estava forte e bem desenvolvido.

Terminada a refeição Nanda disse a Bela:

- Vamos para minha casa!

Ali chegadas Nanda fez todos os possíveis para evitar o assunto do pai de Bela.

Passaram a tarde falando de tudo, vendo fotos antigas, recordando os tempos em que eram umas jovens cheias de ilusões, depois o casamento da Nanda e o nascimento dos filhos, até que Bela comentou:

- Minha querida, o teu ex ainda continua apaixonado por ti.

Nanda deu uma gargalhada.

- Tu lembras-te de cada coisa! Onde vai essa paixão! Tenho de reconhecer que, durante alguns anos, fomos muito felizes. Depois… ele começou a andar com outras mulheres… e acabámos por nos separar.  Agora somos apenas bons amigos…

- Sim, bons amigos unidos por dois filhos e um neto… Digo-te uma coisa, eu estive a reparar na maneira como ele olha para ti. Ainda há ali muito amor… E, por falar em amor, nunca mais soubeste nada do Alessandro?   

 

Maria Caiano Azevedo