- Há tanto tempo que não te via! Que pena não poder
abraçar-te, querida. Não imaginas as saudades que senti, Mariazita!
- Mas que exagerada, minha querida Nanda. Não passou
assim tanto tempo como isso…
- Talvez tenhas razão. Mas, sabes? É que gosto muito
de falar contigo, desabafar… Diz-me: com quem mais posso fazê-lo? Só contigo! E
não ter contado o resto da festa do
Carlos faz-me sentir formigueiros…
E naquele rosto bonito aparece o esplendoroso sorriso!
“…
Sentiu-se como se
estivesse vivendo uma história das “Mil e uma noites”, com uma sedutora
odalisca movendo-se lenta e sensualmente à sua frente.
Levantou-se a
custo e abraçando Rui, emocionado, puxando-o por um braço em direcção ao
quarto, murmurou-lhe ao ouvido:
SEGREDOS – CAPÍTULO XXIII
Ao regressar do trabalho, perto da
meia noite, Diogo verifica, com alguma
preocupação, que a sua mulher, Carla, e os gémeos, não se encontram em casa. De
repente lembra-se da festa do Carlos e galga os degraus até ao 2º. Andar.
Recebido afavelmente por Carlos,
beija a mulher ao mesmo tempo que pergunta pelos filhos.
- Estão na cama do Carlos.
Mantiveram-se acordados e bem dispostos
até tarde, mas acabaram sendo vencidos pelo sono – respondeu
Carla.
- Ainda bem! Mas agora, querida, se
não te importas, é só acabar esta bebida que o Carlos me ofereceu e vamos embora.
Estou a morrer de cansaço!
- Nem outra coisa seria de esperar,
depois de tantas horas seguidas a trabalhar. Mas vamos embora, sim. Aliás, já
estava a preparar-me para o fazer. A Nanda ia ajudar-me com os meninos… - sorriu para Nanda.
Feitas as despedidas prepararam-se
para sair. Nanda foi com eles, assim como Margarida, a amiga mais velha de
Carlos, que recusou a oferta dele para a acompanhar.
- Eu já sou grande, não se nota? - disse, com
um sorriso. Além disso moro ao virar da esquina. Demoro menos tempo a chegar
a casa do que tu a desceres as escadas…
Saíram. Restavam, na festa, Amélia e
António, e Lara, a amiga mais nova de Carlos, que nutria por ele uma paixoneta
não correspondida.
A festa estava a chegar ao fim.
Amélia, contristada por não poder prolongar por mais tempo aquela noite que
acabara por se revelar tão agradável, fez o gesto de se levantar, no que foi
secundada por António.
- Bom, a festa foi muito agradável,
Carlos. Há muito tempo que não passava momentos tão bons. Mas vão sendo horas
de me retirar…
- Fico muito feliz por saber que se
divertiu, Amélia. Brevemente havemos de pensar noutra reunião.
- Pode contar sempre comigo, Carlos.
Até amanhã. – e, baixita como era, esticou-se para dar um beijo ao
anfitrião.
- Se me dá licença, Carlos, eu
aproveito a boleia – disse António, sorridente – e vou também
retirar-me.
Carlos agradeceu a presença dos dois
e acabou por ficar a sós com Lara.
- Bem, minha menina, vai buscar o
teu casaco para eu te acompanhar a casa. É muito tarde para andares por aí
sozinha.
- Por favor, Carlos, é cedíssimo!
Estás a pôr-me fora da tua casa? – Lara falava num tom mimado
- Não é nada disso, mas já toda a
gente se foi embora …
- Mas eu não sou toda a gente, eu
sou a tua amiga especial, ou não?
- Claro que és, mas isso não
significa que eu te faça todas as vontadinhas.
Lara, com todo o ardor dos seus 17
anos, sentia-se completamente apaixonada
por Carlos, embora ele nunca tivesse para com ela qualquer gesto que a
incentivasse. Apenas nutria por ela uma grande amizade e sentido de protecção,
pois que ela vivia sozinha num quarto alugado,
e a família, que ele conhecia, morava na província.
Lara resolveu mudar de táctica:
- Olha, podíamos dar uma arrumadela
a esta bagunça e a seguir víamos um filme.
Normalmente, nos dias a seguir às
festas a Nanda e a Amélia iam ajudá-lo a
pôr tudo em ordem.
Mas, perante a perspectiva de ter
ajuda para arrumar a casa antes de se
deitar, convenceu-o.
- De acordo. Vamos lá então arrumar
as coisas e depois vemos um vídeo. Mas aviso-te já de que logo que o filme
termine vou levar-te a casa!
- Ok, chefe – brincou
Lara. E começou a levar os copos e pratos para a cozinha.
Com o vídeo preparado para arrancar sentou-se no sofá enquanto Carlos foi fazer pipocas, vindo, depois,
sentar-se a seu lado.
Começaram a ver o
filme. A certa altura ela acariciou o braço de Carlos, murmurando:
- Tens a pele tão
macia!
- É próprio da
raça negra, não sabias?
- Não, não sabia,
mas a tua pele parece veludo…
- Os negros são
todos assim. Mas, não te distraias, o filme está numa parte muito emocionante – advertiu-a
Carlos.
Quando o filme
chegou ao fim ele disse:
- Vou-te levar a
casa.
- Para quê? É
muito mais simples eu ficar cá… - Lara adoçou a voz.
- Não venhas de
novo com essa conversa…
- Porquê? Não
gostas de mim? – ela pôs um ar de amuo.
- Já te disse mil
vezes o que penso do assunto! Cresce, e quando fores uma mulher adulta, falamos
sobre isso –
respondeu Carlos, ligeiramente irritado.
Ele tinha muitas
amigas jovens, com quem gostava de conviver. Algumas eram menores, tal como
Lara, mas a todas respeitava sem o mais leve atrevimento.
Segurando-a por
um braço, quase a arrastou para a porta. Desceram as escadas com muito cuidado,
até porque alguns degraus, de madeira e com mais de trinta anos, já se
ressentiam da idade.
Lara mora
relativamente perto pelo que, pouco depois, Carlos voltou. Adormeceu
tranquilamente.
Entretanto,
quando Amélia e António saíram da casa de Carlos, ele, timidamente,
perguntou-lhe se podia acompanhá-la a casa.
Amélia reprimiu
uma gargalhada.
- Ó António, até
parece que eu moro muito longe! Mas por mim tudo bem, até tenho muito gosto em
que me acompanhe. Mas olhe que depois tem de regressar sozinho… - ambos riram , baixinho.
- Um dia destes
convido-a para conhecer a minha casa – se a Amélia quiser, evidentemente – apressou-se a acrescentar.
- E porque não?
Afinal, somos vizinhos há tantos anos, e mal nos conhecemos – respondeu Amélia.
Vagarosamente,
iam descendo as escadas.
Chegados ao
patamar, António, olhando-a fixamente, começou a entoar, a meia voz, no seu belo tom
de barítono:
“Amélia dos olhos doces
“Quem é que te trouxe grávida de esperança?
“Um gosto de flor na boca
“Na pele e na roupa, perfumes de França”
“Quem é que te trouxe grávida de esperança?
“Um gosto de flor na boca
“Na pele e na roupa, perfumes de França”
Fez uma breve pausa. Acercou-se de Amélia e,
segurando-lhe suavemente na mão, continuou:
“ Amélia gaivota, amante, poeta
“Rosa de café
“Amélia gaiata do bairro da lata
“Do Cais do Sodré”
Instintivamente Amélia colocou-lhe um dedo
sobre os lábios, murmurando:
- Xiu! Vai acordar o prédio todo!
- Desculpe, mas não consegui resistir, Amélia.
Os seus olhos são tão doces que foram eles, por certo, que inspiraram o poeta
que produziu tão lindos versos…
- O Joaquim Pessoa, autor desse poema, nunca me
viu mais gorda – riu Amélia, baixinho.
Completamente rendida,
pensava: “A Nanda tinha razão. É amor, mesmo”.
Numa última resistência,
disse, baixinho:
- António, adoro ouvi-lo
cantar. Mas aqui, e agora, não é o local. Os vizinhos estão todos a descansar,
não podemos acordá-los…
- Por favor, Amélia, não
me mande embora; não agora, que sinto que não posso separar-me de si.
- Para isso temos um bom
remédio – respondeu ela, afoitamente. E abrindo a porta, segurou-lhe
a mão e puxou-o para dentro.
António mal podia
acreditar no que lhe estava acontecendo. “Há, apenas, vinte e quatro horas
ainda estávamos tentando agredir-nos - no fundo só para chamarmos a atenção um
do outro, é certo – e, num repente, a situação altera-se por completo…”
“Abençoada festa do Carlos!”
Amélia sugeriu:
- Podemos tratar-nos por
tu? Então deixa-me mostrar-te o motivo das tuas questiúnculas…
- Não me recordes como
fui estúpido… Eu só queria que reparasses em mim, e fazia-o da maneira mais
errada possível, reconheço-o agora – respondeu, em tom
contrito.
- Vamos esquecer isso.
Vem conhecer o que te servia de pretexto para resmungares – um sorriso
luminoso iluminava-lhe a face.
Puxando-o por um braço
quase o arrasta para o pequeno estúdio onde dá as suas aulas. Comprimindo-lhe
as costas contra o varão, prende-lhe as mãos atrás das costas e murmura, excitada:
- Agora vou ensinar-te a
dança do varão! Vais ver como é bonita.
- Vais sequestrar-me? Olha
que eu grito! – tentou brincar, enquanto a sua voz reflectia
uma excitação incontrolável.
- Podes gritar à
vontade. Ninguém sabe que estás aqui. E, para além disso, sei que morres de
curiosidade para conhecer esta misteriosa dança – Amélia
continuava a comprimi-lo contra o varão.
- Tens toda a razão.
Mas, do mesmo modo que não posso cantar, também não podes fazer barulho com
danças…
Soltando-se
repentinamente das mãos frouxas de Amélia, agarrou-a fortemente pela cintura,
murmurando num tom de voz apaixonado:
- Vamos ver quem
é que ensina o quê a quem!
Tomou-a nos
braços encaminhando-se para o que lhe parecia ser o quarto.
Pára, por
segundos, e olhando-a nos olhos, diz, enlevado:
- Para que
andámos a perder tanto tempo?
Nanda ajudara Carla a deitar os
gémeos nas suas caminhas.
Os amigos agradeceram a ajuda:
- Com eles a dormir a tarefa
torna-se um pouco mais complicada. Parece que os corpos ficam mais pesados – comentou
Diogo.
- Eles já têm dois anos e alguns
meses… - justificou Carla.
- E estão muito bem desenvolvidos,
diga-se em abono da verdade. Vão ser uns rapagões, altos como o pai – sorriu
Nanda. E imediatamente se calou, meio embaraçada, lembrando-se de que os
meninos eram adoptados.
- Não fique assim, minha amiga –
apressou-se Carla a tranquilizá-la. Eles sabem que são adoptados. Claro que
ainda são muito pequeninos para entenderem isso, mas já se vão habituando à
ideia.
- Na minha opinião é o melhor a
fazer. Assim, quando forem crescidos, não têm surpresas desagradáveis. – concordou Nanada
Em casa, enquanto se preparava para
se deitar, revia os corpinhos dos gémeos a dormir, o que lhe trouxe à memória
os seus próprios filhos quando pequeninos.
“O Miguel tinha dois aninhos quando
nasceu o Luís. Meu Deus! Como o tempo voa! Parece que foi ontem…
Tenho de reconhecer que, apesar de
todas as dificuldades e aflições por que passei, a vida acabou por me
compensar, e vivi momentos muito felizes com o Tó Zé. E agora voltaram tempos
muito bons com o meu netinho… Quando será que o Miguel contribui para o crescimento
da família? “
E, a pensar no Miguel e em como
deveria estar prestes a vir de férias, tranquilamente entregou-se aos braços de
Morfeu.
Uma ou duas horas
mais tarde, quem passasse por perto ouviria o respirar profundo do prédio
adormecido.
Maria Caiano Azevedo