terça-feira, 1 de setembro de 2020

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XXIII

Quase cedia ao impulso de me dar um abraço… mas deteve-se a tempo:
- Há tanto tempo que não te via! Que pena não poder abraçar-te, querida. Não imaginas as saudades que senti, Mariazita!
- Mas que exagerada, minha querida Nanda. Não passou assim tanto tempo como isso…
- Talvez tenhas razão. Mas, sabes? É que gosto muito de falar contigo, desabafar… Diz-me: com quem mais posso fazê-lo? Só contigo! E não ter  contado o resto da festa do Carlos faz-me sentir formigueiros…
E naquele rosto bonito aparece o esplendoroso sorriso!
- Vamos lá então ouvir o resto – respondo, complacente.
*
SEGREDOS - CAPÍTULO XXII

                        

“… Sentiu-se como se estivesse vivendo uma história das “Mil e uma noites”, com uma sedutora odalisca movendo-se lenta e sensualmente à sua frente.
Levantou-se a custo e abraçando Rui, emocionado, puxando-o por um braço em direcção ao quarto, murmurou-lhe ao ouvido:
SEGREDOS – CAPÍTULO XXIII
Ao regressar do trabalho, perto da meia noite,  Diogo verifica, com alguma preocupação, que a sua mulher, Carla, e os gémeos, não se encontram em casa. De repente lembra-se da festa do Carlos e galga os degraus até ao 2º. Andar.
Recebido afavelmente por Carlos, beija a mulher ao mesmo tempo que pergunta pelos filhos.
- Estão na cama do Carlos. Mantiveram-se acordados e  bem dispostos até tarde, mas acabaram sendo vencidos pelo sono – respondeu Carla.
- Ainda bem! Mas agora, querida, se não te importas, é só acabar esta bebida que o Carlos me ofereceu e vamos embora. Estou a morrer de cansaço!
- Nem outra coisa seria de esperar, depois de tantas horas seguidas a trabalhar. Mas vamos embora, sim. Aliás, já estava a preparar-me para o fazer. A Nanda ia ajudar-me com os meninos… -  sorriu para Nanda.
Feitas as despedidas prepararam-se para sair. Nanda foi com eles, assim como Margarida, a amiga mais velha de Carlos, que recusou a oferta dele para a acompanhar.
- Eu já sou grande, não se nota? - disse, com um sorriso. Além disso moro ao virar da esquina. Demoro menos tempo a chegar a casa do que tu a desceres as escadas…
Saíram. Restavam, na festa, Amélia e António, e Lara, a amiga mais nova de Carlos, que nutria por ele uma paixoneta não correspondida.
A festa estava a chegar ao fim. Amélia, contristada por não poder prolongar por mais tempo aquela noite que acabara por se revelar tão agradável, fez o gesto de se levantar, no que foi secundada por António.
- Bom, a festa foi muito agradável, Carlos. Há muito tempo que não passava momentos tão bons. Mas vão sendo horas de me retirar…
- Fico muito feliz por saber que se divertiu, Amélia. Brevemente havemos de pensar noutra reunião.
- Pode contar sempre comigo, Carlos. Até amanhã. – e, baixita como era, esticou-se para dar um beijo ao anfitrião.
- Se me dá licença, Carlos, eu aproveito a boleia – disse António, sorridente – e vou também retirar-me.
Carlos agradeceu a presença dos dois e acabou por ficar a sós com Lara.
- Bem, minha menina, vai buscar o teu casaco para eu te acompanhar a casa. É muito tarde para andares por aí sozinha.
- Por favor, Carlos, é cedíssimo! Estás a pôr-me fora da tua casa? – Lara falava num tom mimado
- Não é nada disso, mas já toda a gente se foi embora …
- Mas eu não sou toda a gente, eu sou a tua amiga especial, ou não?
- Claro que és, mas isso não significa que eu te faça todas as vontadinhas.
Lara, com todo o ardor dos seus 17 anos,  sentia-se completamente apaixonada por Carlos, embora ele nunca tivesse para com ela qualquer gesto que a incentivasse. Apenas nutria por ela uma grande amizade e sentido de protecção, pois que ela vivia sozinha num quarto alugado,  e a família, que ele conhecia, morava na província.
Lara resolveu mudar de táctica:
- Olha, podíamos dar uma arrumadela a esta bagunça e a seguir víamos um filme.
Normalmente, nos dias a seguir às festas a Nanda e a Amélia iam ajudá-lo  a pôr tudo em ordem.
Mas, perante a perspectiva de ter ajuda para arrumar a casa  antes de se deitar, convenceu-o.
- De acordo. Vamos lá então arrumar as coisas e depois vemos um vídeo. Mas aviso-te já de que logo que o filme termine vou levar-te a casa!
- Ok, chefe – brincou Lara. E começou a levar os copos e pratos para a cozinha.
Com o vídeo preparado para arrancar sentou-se no sofá enquanto Carlos foi fazer pipocas, vindo, depois, sentar-se a seu lado.
Começaram a ver o filme. A certa altura ela acariciou o braço de Carlos, murmurando:
- Tens a pele tão macia!
- É próprio da raça negra, não sabias?
- Não, não sabia, mas a tua pele parece veludo…
- Os negros são todos assim. Mas, não te distraias, o filme está numa parte muito emocionante – advertiu-a Carlos.
Quando o filme chegou ao fim ele disse:
- Vou-te levar a casa.
- Para quê? É muito mais simples eu ficar cá… - Lara adoçou a voz.
- Não venhas de novo com essa conversa…
- Porquê? Não gostas de mim? – ela pôs um ar de amuo.
- Já te disse mil vezes o que penso do assunto! Cresce, e quando fores uma mulher adulta, falamos sobre isso – respondeu Carlos, ligeiramente irritado.
Ele tinha muitas amigas jovens, com quem gostava de conviver. Algumas eram menores, tal como Lara, mas a todas respeitava sem o mais leve atrevimento.
Segurando-a por um braço, quase a arrastou para a porta. Desceram as escadas com muito cuidado, até porque alguns degraus, de madeira e com mais de trinta anos, já se ressentiam da idade.
Lara mora relativamente perto pelo que, pouco depois, Carlos voltou. Adormeceu tranquilamente.
Entretanto, quando Amélia e António saíram da casa de Carlos, ele, timidamente, perguntou-lhe se podia acompanhá-la a casa.
Amélia reprimiu uma gargalhada.
- Ó António, até parece que eu moro muito longe! Mas por mim tudo bem, até tenho muito gosto em que me acompanhe. Mas olhe que depois tem de regressar sozinho… - ambos riram , baixinho.
- Um dia destes convido-a para conhecer a minha casa – se a Amélia quiser, evidentemente – apressou-se a acrescentar.
- E porque não? Afinal, somos vizinhos há tantos anos, e mal nos conhecemos – respondeu Amélia.
Vagarosamente, iam descendo as escadas.
Chegados ao patamar, António, olhando-a fixamente,  começou a entoar, a meia voz, no seu belo tom de barítono:
“Amélia dos olhos doces
“Quem é que te trouxe grávida de esperança?
“Um gosto de flor na boca
“Na pele e na roupa, perfumes de França”
Fez uma breve pausa. Acercou-se de Amélia e, segurando-lhe suavemente na mão, continuou:
“ Amélia gaivota, amante, poeta
“Rosa de café
“Amélia gaiata do bairro da lata
“Do Cais do Sodré”
Instintivamente Amélia colocou-lhe um dedo sobre os lábios, murmurando:
- Xiu! Vai acordar o prédio todo!
- Desculpe, mas não consegui resistir, Amélia. Os seus olhos são tão doces que foram eles, por certo, que inspiraram o poeta que produziu tão lindos versos…
- O Joaquim Pessoa, autor desse poema, nunca me viu mais gorda – riu Amélia, baixinho.
Completamente rendida, pensava: “A Nanda tinha razão. É amor, mesmo”.
Numa última resistência, disse, baixinho:
- António, adoro ouvi-lo cantar. Mas aqui, e agora, não é o local. Os vizinhos estão todos a descansar, não podemos acordá-los…
- Por favor, Amélia, não me mande embora; não agora, que sinto que não posso separar-me de si.
- Para isso temos um bom remédio – respondeu ela, afoitamente. E abrindo a porta, segurou-lhe a mão e puxou-o para dentro.
António mal podia acreditar no que lhe estava acontecendo. “Há, apenas, vinte e quatro horas ainda estávamos tentando agredir-nos - no fundo só para chamarmos a atenção um do outro, é certo – e, num repente, a situação altera-se por completo…” “Abençoada festa do Carlos!”
Amélia sugeriu:
- Podemos tratar-nos por tu? Então deixa-me mostrar-te o motivo das tuas questiúnculas…
- Não me recordes como fui estúpido… Eu só queria que reparasses em mim, e fazia-o da maneira mais errada possível, reconheço-o agora – respondeu, em tom contrito.
- Vamos esquecer isso. Vem conhecer o que te servia de pretexto para resmungares – um sorriso luminoso iluminava-lhe a face.
Puxando-o por um braço quase o arrasta para o pequeno estúdio onde dá as suas aulas. Comprimindo-lhe as costas contra o varão, prende-lhe as mãos atrás das costas e murmura, excitada:
- Agora vou ensinar-te a dança do varão! Vais ver como é bonita.
- Vais sequestrar-me? Olha que eu grito! – tentou brincar, enquanto a sua voz reflectia uma excitação incontrolável.
- Podes gritar à vontade. Ninguém sabe que estás aqui. E, para além disso, sei que morres de curiosidade para conhecer esta misteriosa dança – Amélia continuava a comprimi-lo contra o varão.
- Tens toda a razão. Mas, do mesmo modo que não posso cantar, também não podes fazer barulho com danças…
Soltando-se repentinamente das mãos frouxas de Amélia, agarrou-a fortemente pela cintura, murmurando num tom de voz apaixonado:
- Vamos ver quem é que ensina o quê a quem!
Tomou-a nos braços encaminhando-se para o que lhe parecia ser o quarto.
Pára, por segundos, e olhando-a nos olhos, diz, enlevado:
- Para que andámos a perder tanto tempo?

Nanda ajudara Carla a deitar os gémeos nas suas caminhas.
Os amigos agradeceram a ajuda:
- Com eles a dormir a tarefa torna-se um pouco mais complicada. Parece que os corpos ficam mais pesados – comentou Diogo.
- Eles já têm dois anos e alguns meses… - justificou Carla.
- E estão muito bem desenvolvidos, diga-se em abono da verdade. Vão ser uns rapagões, altos como o pai – sorriu Nanda. E imediatamente se calou, meio embaraçada, lembrando-se de que os meninos eram adoptados.
- Não fique assim, minha amiga – apressou-se Carla a tranquilizá-la. Eles sabem que são adoptados. Claro que ainda são muito pequeninos para entenderem isso, mas já se vão habituando à ideia.
- Na minha opinião é o melhor a fazer. Assim, quando forem crescidos, não têm surpresas desagradáveis. – concordou Nanada
Em casa, enquanto se preparava para se deitar, revia os corpinhos dos gémeos a dormir, o que lhe trouxe à memória os seus próprios filhos quando pequeninos.
“O Miguel tinha dois aninhos quando nasceu o Luís. Meu Deus! Como o tempo voa! Parece que foi ontem…
Tenho de reconhecer que, apesar de todas as dificuldades e aflições por que passei, a vida acabou por me compensar, e vivi momentos muito felizes com o Tó Zé. E agora voltaram tempos muito bons com o meu netinho… Quando será que o Miguel contribui para o crescimento da família? “
E, a pensar no Miguel e em como deveria estar prestes a vir de férias, tranquilamente entregou-se aos braços de Morfeu.
Uma ou duas horas mais tarde, quem passasse por perto ouviria o respirar profundo do prédio adormecido.

Maria Caiano Azevedo