SEGREDOS – CAPÍTULO XXIV
“… Agora somos apenas bons amigos…
- Sim, bons amigos unidos por dois
filhos e um neto… Digo-te uma coisa, eu estive a reparar na maneira como ele
olha para ti. Ainda há ali muito amor… E, por falar em amor, nunca mais
soubeste nada do Alessandro? …”
SEGREDOS – CAPÍTULO XXV
Nanda encolheu os ombros e,
simulando indiferença, respondeu:
- E como querias tu que eu soubesse?
Nem faço a mínima ideia donde ele se encontra, presentemente. Tal como tu,
apenas soube que foi para Itália, para dar andamento à tal investigação, e nada
mais. Escreveu-me algumas vezes mas… tu sabes… longe da vista longe do coração.
Quem sabe se não foi melhor assim? Cada um orientou a sua vida e seguiu o seu destino.
- Tens razão, mas ao mesmo tempo faz
uma certa impressão pensar como pode morrer uma paixão assim tão grande, como
era a vossa.
- Minha querida, como tudo, a paixão
não vive sem alimento. E uma ou outra carta, de vez em quando, por muito
inflamada que seja não é o suficiente para manter acesa a chama… É preciso
muito mais do que isso…
- Mais uma vez tens razão, mas
faz-me pena, sabes?
- Isso é porque hoje estás muito
lamechas – Nanda riu alegremente. Passado é passado, não vale a pena chorar
sobre leite derramado. Olha, vou fazer umas torradinhas e um
chá – também tenho ali daquelas bolachinhas de canela que tu adoras… - vamos
jantar e em seguida vou levar-te a casa.
Depois de deixar Bela com a
recomendação de que tomasse “qualquer coisa” para a ajudar a descansar – “amanhã
é dia de trabalho, não te esqueças, precisas de dormir” – Nanda regressou a
tempo de levar o Tejo à rua, que já se contorcia com as suas necessidades
fisiológicas.
Anoitecia. E, como sempre acontecia,
esta hora do dia tornava-a nostálgica, trazendo-lhe à lembrança as recordações
do passado que, normalmente, fazia por esquecer. “Como é que Bela se fora
lembrar de Alessandro? Não se tinha passado nada durante o dia que a levasse a
isso… Seria o facto de ter estado com Tó Zé, ao almoço? Mas isso não tinha
muita lógica… Só ela própria e o ex marido é que sabiam que Miguel, o filho
mais velho, era filho do Alessandro…” E continuou nos seus pensamentos…
“Sem dúvida, Tó Zé foi um verdadeiro
cavalheiro! Passados quase trinta anos nunca revelou aquele segredo que me
prometeu guardar. Nem mesmo naqueles momentos bem difíceis, depois de nascer o
segundo filho, em que ele me acusava de não sentir por este o mesmo amor que
sentia pelo mais velho – “isso acontece porque o Miguel é fruto da tua grande paixão” – acusava Tó Zé.
Ele dizia estas coisas, acusava-me,
mas sempre e só de portas para dentro, nunca deixou transparecer a mágoa que,
no fundo, sentia, por não ser o pai de Miguel.
Pensando bem… foi a partir do
nascimento do Luís que o nosso casamento começou a tremelicar… Meteu-se-lhe na
cabeça que eu dava mais mimo ao Miguel e, casmurro, ninguém o convencia do
contrário. Como se uma mãe pudesse amar mais um filho do que outro! Ideias
destas só mesmo na cabeça de um homem, que não sabe o que é o amor maternal.
A verdade é que foi pena as coisas
começarem a descambar. Podíamos ainda hoje estar casados e felizes…
Depois começou a dar atenção àquelas
galdérias que iam lá à loja, todas derretidas para cima dele. Umas ordinárias é
o que elas eram! Sabiam muito bem que ele era casado mas não se importavam nada
com isso. Bem, o que é certo é que elas
também não queriam casar com ele, só queriam “dar umas cambalhotas” e seguir em
frente. E eu não posso esquecer que o Tó Zé era um rapaz bastante atraente, e,
quando queria, sabia ser irresistível.
Já nem me lembro quando foi a
primeira noite que ele não dormiu em casa! Com a desculpa esfarrapada de que
tinha de ir levar uma encomenda grande não sei onde… só apareceu em casa no dia
seguinte.
Mas teve azar porque eu, de parva,
nunca tive nada… e ele também foi descuidado e deixou no bolso das calças a
conta do hotel para duas pessoas, que eu encontrei quando pus as calças para
lavar. Era só somar dois mais dois… e o
mistério foi desvendado.
A partir daí as coisas entortaram de
vez. Ainda nos aguentámos uns tempos mas depois decidimos, de comum acordo, que
o melhor era separarmo-nos. Este “comum acordo” foi relativo, porque ele
preferia continuar casado… e a ter outras mulheres por fora.
Mas enfim, o destino tem de ser
cumprido, e o meu era acabar sozinha, como agora estou. Bom, sozinha é um modo
de dizer, tenho junto de mim um filho e um neto que amo muito. E uma nora, é
claro. Ela é muito boazinha, e faz o meu Luís muito feliz. E ainda tenho o
Miguel, aquele filho tão querido de quem tenho já tantas saudades!”
Como se quisesse vir ao encontro dos
seus pensamentos o telemóvel tocou. Com grande alegria viu tratar-se de Miguel.
Foi com voz em alvoroço que atendeu:
- Miguel, meu querido filho, estava
agora mesmo a pensar em ti!
- Agora mesmo? Então tu não andas
sempre comigo no pensamento? – riu Miguel.
- Sabes bem que sim, mas num
cantinho muito especial, só teu, , deixando espaço para que eu possa pensar
noutras coisas – Nanda alinhou na brincadeira.
- Eu entendo. Olha, Mãezita,
adivinha o motivo deste telefonema.
Quando o filho a tratava por Mãezita
era sinal de que estava particularmente bem disposto.
- Prefiro não me pôr a adivinhar – Nanda não
queria criar falsas esperanças.
- Tu e as tuas superstições! Mas
podes adivinhar à vontade. Aliás… evidentemente que já sabes do que se trata.
Vamos aí de férias! Pronto, já está dito!
Embora desconfiasse que fosse isso
mesmo, Nanda sentiu uma alegria enorme.
- Que bom, meu filho. Estava a ver
que nunca mais chegava esse dia. Há quase dois anos que não vens cá…
- Que exagerada, Mãe. Mas olha,
tenho um grande favor a pedir-te.
- Sim. Diz. Já sabes que podes
contar sempre comigo…
- Eu sei. É o seguinte: Nós temos
uma amiga - muito amiga, é quase como se fosse da família – que trabalha também
em investigação, embora num ramo diferente do nosso. Ela tem de ir a Portugal
fazer umas consultas na Torre do Tombo. Está a compilar documentos para, em
conjunto com um colega, escreverem um tratado sobre Cristóvão Colombo, o
“genovês”.
Parece que querem tirar a limpo se
ele era português ou italiano – riu
Miguel, continuando:
Ela vai ter que ficar aí algum
tempo, e lembrei-me que talvez tu não te importasses que ela ficasse aí em
casa…
Nanda, apanhada totalmente de
surpresa, ainda tentou reagir:
- Mas, meu filho, ter em casa uma
pessoa que não conheço, sinceramente não me agrada muito…
- Mãe, tu só dizes isso porque não a
conheces. Confia em mim. Ela é uma doçura de miúda, tenho a certeza de que te
vais apaixonar quando a conheceres…
- Sendo assim… O que é que posso
recusar-te?
- Nada, Mãezita, nada! – riu Miguel.
De repente, Nanda lembrou-se:
- Mas… estás a esquecer-te de uma
coisa. Eu só tenho dois quartos – o meu e o quarto de hóspedes, que é onde tu
dormes com a Farida, quando cá vêm. Onde vamos deitar a tua amiga?
- Quanto a isso não há problema,
está tudo pensado. Quando aí chegarmos ela dorme no sofá, na sala.
- No sofá, Miguel? Mas que
disparate! Queres deitar uma hóspede num sofá, na sala? – Nanda
mostrava-se entre admirada e indignada.
- Parece que não ouviste o que eu te
disse da Giuliana – é o nome dela… A Giuliana é como uma irmã para nós. Se te
faz impressão ela dormir na sala, até pode dormir num colchão no nosso quarto… - riu Miguel.
- Credo, meu filho, nem que eu
tivesse que lhe ceder o meu quarto… - indignou-se Nanda. Mas pronto, se tu
achas que pode ser assim, enfim, não é que me agrade muito, mas paciência.
- Sossega, Mãezita, quando
conheceres a Giuliana vais te sentir como se a tivesses conhecido desde que
nasceu – rematou Miguel, alegremente.
Não cabendo em si de contente Nanda
ligou logo para Luís a fim de lhe dar a novidade. Como seria de esperar o filho
ficou radiante:
- Que bom, Mãe! Já tenho tantas
saudades do meu irmão! E, finalmente, ele vai conhecer o mais novo membro da
família, o nosso Nani.
Essa semana passou a voar. Nanda não
cabia em si de contente. E, apesar de ter uma empregada exemplar, que lhe
mantinha a casa impecavelmente limpa, as horas que passava em casa eram
ocupadas a fiscalizar tudo, a descobrir pó onde ele não existia, a mudar de
sítio os bibelots porque lhe parecia que não ficavam muito bem onde estavam…
enfim, não tinha um minuto de descanso. É que não lhe saía da cabeça a ideia de
que ia receber em sua casa uma desconhecida, e não queria que ela tivesse nada
a apontar-lhe. Apesar de tudo o que Miguel lhe dissera acerca da amiga, a tal
Giuliana, não se sentia muito confortável com a ideia.
Na véspera da chegada do filho Nanda
falou com Araújo explicando a situação e informando-o de que não iria tralhar
no dia seguinte.
O engenheiro respondeu-lhe com um
sorriso:
- E quando é que a Nanda pensa em
meter férias? Há dois anos que aqui trabalha e só faltou um dia por outro. Não
quer agora ficar uns dias com o seu filho?
- Obrigada, mas agora não vale a
pena. Quando ele chegar só fica cá um dia e vai logo para o Porto, passar uns
dias com um amigo que se vai ausentar. Quando ele regressar talvez aceite a sua
oferta – respondeu Nanda, sorrindo.
- Olhe que não me vou esquecer –
fingiu ameaçar Araújo.
Levantou-se “com as galinhas”. Depois de passar algumas horas sem quase
conseguir dormir, saltou da cama e foi para a cozinha fazer um bolo e uns
scones para o lanche. Miguel e Farida chegariam cerca das três horas, e queria
estar totalmente liberta para os receber sem qualquer preocupação. Tinha
convidado o seu filho Luís para almoçar e, com ela, aguardar a chegada do
irmão.
Tinha sugerido ao Miguel ir esperá-los ao aeroporto mas ele
dissuadiu-a de imediato. Ele sabia que a mãe não gostava muito de conduzir,
especialmente por locais que não conhecia bem. O carro estava a maior parte do
tempo dentro da garagem. Nanda conduzia por necessidade e não por prazer. Por isso, quando
chegassem ao aeroporto, tomariam um táxi que os traria até ela.
Luís correu
para a porta mal ouviu o toque da campainha. Nanda, com o coração aos saltos,
de ansiedade, aguardou. Queria manter-se abraçada ao filho todo o tempo que lhe
apetecesse.
O abraço que envolveu os dois irmãos continha muitas saudades
acumuladas ao longo do tempo em que tinham estado sem se verem, e um grande,
enorme, amor fraternal.
Em crianças brigavam muito um com o outro, entrando até, por
vezes, na agressão física, ainda que sem gravidade. Tinham maneiras de ser
muito diferentes.
Mas, à medida que foram crescendo e talvez por tomarem
consciência de que estavam a ser criados e educados apenas pela Mãe, o que para
ela representava um grande sacrifício e responsabilidade, adoçaram a sua
convivência e, sem mesmo se aperceberem, foram-se tornando grandes amigos que,
depois de jovens adultos, eram inseparáveis.
Por isso aquele abraço, após uma tão longa ausência, foi
comovido para ambos, e comovedor para a mãe, que os observava em silêncio, enlevada.
Finalmente afastaram-se e Nanda pôde dar vazão aos
sentimentos contidos, sem se preocupar com as lágrimas que lhe escorriam pelo
rosto.
Num gesto de imenso carinho Miguel enxugava-lhas, suavemente,
murmurando baixinho:
- Então, Mãezita, ficas assim tão triste por me veres? Volto
já para a Bélgica!
Nanda apertou-o com mais força, respondendo, com voz
entrecortada:
- Só se me levares contigo…
Lentamente afastaram-se dando lugar a Farida, que os olhava
sorrindo. Também ela gostava muito da sogra.
Depois de acalmadas as emoções e todas as manifestações de
carinho Miguel afastou-se para o lado deixando à vista a amiga que se mantinha
silenciosa, encoberta pelo casal, e disse:
- Mãe, esta é a amiga de quem te falei. Chama-se Giuliana.
Nanda desviou, finalmente, a atenção dos recém-chegados,
voltando-se para Giuliana.
Como que assombrada, não conseguia afastar o olhar dos lindos
olhos azuis que a fitavam sorrindo, ao mesmo tempo que uns braços se lhe
dirigiam com a intenção de a abraçar.
Sentiu um zumbido fortíssimo nos ouvidos; depois tudo
escureceu à sua volta. Começou a cambalear. Foi apoiada por Luís que a
transportou em braços, desmaiada, para o sofá.
Maria Caiano Azevedo