… quatro ou cinco horas num comboio misto, de carga e passageiros, daqueles que param em todas as estações e apeadeiros… /ou uma viagem de tantas ou mais horas de machimbombo… por uma picada… cheia de buracos e pó, debaixo dum sol escaldante, respirando o odor de todos aqueles corpos transpirados misturado com a poeira que entrava pelas janelas abertas.
… Por muita força e coragem que a juventude de então nos desse, esta perspectiva era arrasadora.
Reunidos todos os tostõezinhos restantes optamos por alugar um táxi aéreo… um aviãozinho particular que fazia serviço de táxi, fazendo-se pagar bastante bem.
… Chegados ao nosso destino, o piloto sobrevoou o local onde iríamos viver por tempo indeterminado…
… Alguns minutos depois apareceu um jipe para nos levar para casa.
Mais tarde soube que era procedimento habitual… porque, muitas vezes, o piloto levava correspondência para os habitantes do povoado, que era sempre ansiosamente esperada.
… seguimos o conselho do nosso companheiro de viagem, que conhecêramos no navio, e decidimos recorrer ao médico ali destacado.
… De facto tratava-se dum homem extremamente simpático, solteiro,
… imediatamente disponibilizou o melhor quarto da casa, uma divisão enorme onde cabíamos perfeitamente.
Acabamos por nos adaptar e aprender a viver com as poucas comodidades que a casa oferecia.
(Marrupa)
Havia calor humano, que nos compensava de todo o desconforto.
ENQUANTO OS DIAS PASSAM…
É bom viver nesta cidade, a terceira deste vasto território que, dentro de duas décadas, será um país independente. Ainda ninguém sabe, mas vai acontecer num futuro não muito distante.
Não fora o espectro da guerra que lavra lá para o Norte, e teríamos, aqui, uma vida perfeita.
A cidade é bonita. Na zona central existem largas avenidas, de sentido único, com separadores ao meio, ajardinados. Há lojas bem fornecidas, onde se encontra tudo o que é necessário para o dia-a-dia; um grande mercado, com frutas variadas e legumes frescos, talho e peixaria; livrarias onde se podem encontrar os últimos livros publicados.
Esta vida fácil nem sempre é calma. De vez em quando – com demasiada frequência – recebemos notícias que nos abalam muito:
- A do soldado que, tendo terminado a sua comissão, regressava do mato a caminho desta cidade, onde faria escala para seguir para Lourenço Marques, e daí para a sua terra natal.
Em pleno voo, o pequeno avião em que vinha, sofreu uma avaria, despenhou-se, e aqui apenas chegaram os restos mortais, dentro de um caixão.
- Ou a notícia do acidente que sofreu o segundo comandante da base aérea.
Acompanhou, voluntariamente, uma missão, onde acabou por perder a vida.
Era uma pessoa muito estimada por todos, incluindo civis, entre os quais contava muitos amigos.
A cidade inteira, em peso, acompanhou-o ao cemitério, para um último e forte abraço.
O corpo foi aí depositado, e mais tarde trasladado para o local do seu descanso eterno.
Foi uma cerimónia muito comovente. O capelão militar proferiu a alocução apropriada, terminando com um “Até sempre, Tó”.
São apenas dois exemplos dos muitos a que vimos assistindo.
Foi este clima que me levou a decidir aceitar a proposta para produzir um programa, na rádio onde trabalho, dedicado aos soldados em combate.
(Fazendo locução no E.R.N.)
É um trabalho fascinante. Como, diariamente, faço locução cinco horas, repartidas ao longo do dia, aproveito os tempos livres para preparar o programa que é transmitido uma vez por semana.
Encontra-se aqui na cidade, em comissão militar, um locutor do Rádio Clube Português, de Lisboa, que, gentilmente, “cedeu” a voz para a abertura do programa, dizendo:
“O Emissor Regional do Norte… apresenta… (uma ligeira pausa) – Mensagem ao soldado! – um programa dedicado aos militares em serviço no norte de Moçambique”
É a minha deixa. Com voz que tento seja suave, digo:
“É para ti, soldado, que as minhas palavras e o meu pensamento vão, neste momento. Sim, para ti, exactamente para ti”.
O começo, gravado, é sempre igual. Daí por diante o programa prossegue por minha conta e risco.
Segue-se conversa, respondendo às dezenas, se não centenas de cartas que recebo semanalmente.
Sei que o programa é muito bem acolhido, e à hora em que é transmitido, todos que podem ligam os rádios para ouvir. É o elo que os liga à vida normal. Sei que, ao ouvir-me, eles sentem como se eu falasse para cada um deles em particular. Ao responder às suas cartas é isso mesmo que faço.
(Participação do E.R.N. na festa de aniversário do Clube do Niassa)
O capelão, que regressou há
pouco, confidenciou-me que este programa é um incentivo e até lenitivo para
eles.
É gratificante saber que
estamos ajudando alguém a ultrapassar momentos tão difíceis como estes.
As cartas que escrevem são
enternecedoras. Transparecem as saudades imensas que sentem da família, da vida
que deixaram tão longe, ao mesmo tempo que mostram confiança na vitória e no
regresso tão desejado.
Termino o programa com a
sensação de “dever cumprido”.
Regresso a casa para uma
noite de descanso.
Amanhã, às 7 horas, cá
estarei novamente.
(Excerto de dois capítulos da 2ª.parte, respeitante a Moçambique, do
livro que estou escrevendo.)