SEGREDOS – CAPÍTULO IX
“- Realmente,
não se compreende que uma pessoa, com formação superior, especialmente na área
de gestão financeira, tenha tanta dificuldade em arranjar trabalho…
Foi ao ouvir
isto que eu pensei:
- Ora
aí está a pessoa que eu procuro! “
SEGREDOS – CAPÍTULO IX
“Como eu não
disse nada, ele continuou:
- O que se passa
é que eu regressei há pouco do estrangeiro onde tenho vivido. E, como tive a
sorte de a vida me correr bem, consegui fazer umas economias que pensei aplicar
na terra onde fui criado, ou seja, esta onde nos encontramos.
Tenho feito
várias diligências no sentido de abrir um negócio. Para isso, obviamente, vou
precisar de pessoas que colaborem comigo. Uma, pelo menos, terá que ser bem
qualificada para poder ficar à frente do negócio sempre que eu tiver que me
ausentar, o que, em princípio, acontecerá, pelo menos, uma vez por mês.
- E o Sr.
Engenheiro já tem alguma coisa em vista? Algum negócio… quero eu dizer…
-Antes de mais
nada, por favor, acabe com esse tratamento de Sr. Engenheiro… - disse ele rapidamente.
- Mas… - eu ia justificar-me, mas ele
interrompeu:
- A não ser que
exija que eu a trate por Sr.ª Doutora… o que, noutras circunstâncias, seria
perfeitamente justo até porque, tanto quanto me apercebi, as suas qualificações
são maiores do que as minhas…
- Isso eu não
sei… Mas não, de modo algum, não gosto que me tratem por doutora. Eu até me
esqueço que tenho um canudo – respondi com um meio sorriso, involuntário.
- Eu
compreendo-a, mas olhe que às vezes é bom não o esquecer. Infelizmente há
pessoas com quem contactamos que têm tendência para abusar, e é preciso pô-las
no seu lugar – dizia isto com um ar meio ausente, como se estivesse a lembrar-se
de algo acontecido. Depois continuou, com toda a naturalidade:
- Então… esse
pormenor da “doutora” e do “engenheiro” já está ultrapassado. Tratamo-nos por
você, e apenas pelo nome. Concorda?
- Não vejo
inconveniente…
- Sendo assim,
Nanda, - posso trata-la assim ou prefere Fernanda?
- Nanda está
perfeito. São tão poucas as pessoas me tratam por Fernanda que até me esqueço
que é esse o meu nome… - respondi eu, meio a sorrir.
- Então… Nanda,
podemos falar de negócios? – agora o seu tom era cem por cento
profissional.
- Podemos, sim,
embora eu tenha que analisar muito bem a sua proposta – que o senhor ainda não
fez – e só depois disso lhe darei uma resposta – respondi eu, na defensiva.
- Ai, ai, ai… “o
senhor”? Então não combinámos tratarmo-nos pelo nome? Trate-me por Araújo. O
meu nome é Fernando Manuel Carvalho Araújo, mas gosto que me tratem
simplesmente por Araújo.
- Tudo bem,
Araújo. Posso então saber qual é a sua proposta? – perguntei, também em tom
completamente profissional.
- Bom, Nanda, por
enquanto não posso adiantar muito. Eu quis contactá-la já apenas para a pôr de
sobreaviso, não fosse aparecer-lhe alguma oportunidade de trabalho, e eu perder
a sua colaboração. O que posso dizer para já – e peço-lhe que não faça uso
desta informação, pois, como sabe, o segredo é a alma do negócio – acrescentou com um meio sorriso – eu estou em negociações com o dono da ourivesaria
do Centro Comercial, a “Orvalho de Ouro”, no sentido de ele me vender tudo,
isto é, o espaço (a loja é dele) e o recheio. A dificuldade de acerto está em
que ele é também dono da outra ourivesaria, a “Orvalho de Prata”, e não quer
desfazer-se de uma separadamente da outra…
Como a Nanda pode
calcular desse modo o investimento seria enorme, e eu tenho um certo receio de
que não compense… Está em jogo um valor bastante avultado… e em negócios é
preciso ter os pés bem assentes na terra…
- Tem toda a razão,
é preciso ponderar bem e não se atirar de olhos fechados – respondi.
- No meio de tudo
isto a certeza que eu tenho é que, se a Nanda aceitar trabalhar comigo, terá
uma remuneração condigna. Mas como eu não faço caridade – acrescentou, meio a sorrir - as suas responsabilidades também serão
grandes… Eu pago bem mas exijo… - frisou
Eu apenas respondi:
- Parece-me
justo. Nem eu me sentiria bem a receber o que não merecesse…
- Eu tinha razão
quando pensei em apostar em si. Algo me dizia que a Nanda era a pessoa certa
para tomar conta do meu empreendimento.
De qualquer modo,
se o negócio da ourivesaria não se concretizar, já tenho outra coisa debaixo de
olho…
E rematou:
- Por agora
ficamos assim. A Nanda vai pensando na hipótese de que lhe falei, vai amadurecendo
a ideia, e logo que eu tenha algo de concreto – que espero não demore muitos
dias – voltamos a contactar. “
- E
pronto. Cumprimentou-me e foi-se embora. Ah! – acrescentou Nanda com um
sorriso – e pagou os cafés…
Bela, fazendo o gesto de bater palmas, aplaudiu,
em silêncio, muito séria. Depois disse, tentando disfarçar o tom manifestamente
ciumento:
- Aplausos para a
doutora Fernanda, que conseguiu conquistar um desconhecido!
- Porque é que eu
vejo nas tuas palavras um mal disfarçado ciúme? – perguntou Nanda, em jeito de
comentário.
- Ciúmes, eu?
Estás a precisar de pôr óculos! – Bela falava num tom meio desabrido – O que me espanta é como uma mulher com
quase cinquenta anos (e acentuou o “cinquenta), mãe de filhos e agora com um
neto, com tanta experiência de vida, ainda vai em cantigas…
- Oh minha menina
(Bela tremia cada
vez que a amiga se lhe dirigia tratando-a por “minha menina”, pois isso só
acontecia quando ela estava verdadeiramente zangada) em primeiro lugar eu não tenho cinquenta anos – e ninguém me dá os
quarenta e sete que tenho, essa é que é a verdade. Depois… tu não estavas lá,
não conheces o Araújo, não assististe à conversa… portanto, não vejo com que
fundamente falas em “cantigas”…
Bela emudeceu. Acabava de receber uma
reprimenda da sua melhor amiga, e o pior é que o raspanete era mais que justo.
Nanda agira com toda a correcção – nada havia a censurar no que lhe contara da
conversa com o engenheiro. Sentia-se aborrecida consigo mesma por ter dito
aquelas barbaridades. Tinha que reconhecer que fora apenas o ciúme que a levara
a falar assim. A verdade é que, no fundo, nunca perdera a esperança de que
Nanda fosse trabalhar na empresa do seu pai, e assim passassem a maior parte do
tempo juntas. E agora esse sonho começava a esfumar-se e perder-se no
horizonte.
Bela não tinha muitas amigas, e nenhuma se
comparava a Nanda, desde sempre a sua melhor amiga. Juntas na escola primária,
assim tinham continuado no liceu e depois na universidade.
Tinham muitos pontos em comum. Ambas eram
filhas únicas; gostavam imensos das mães, mas… adoravam os pais. Preferiam a
praia ao campo; o seu ideal de lazer era passado à beira mar. Nas férias,
enquanto os pais de Bela não iam para a quinta, passavam as tardes deitadas na
areia, a bronzearam os belos corpos juvenis, dando mergulhos de vez em quando
para se refrescarem. Até tinham tirado o mesmo curso, de tal modo os seus
gostos eram comuns. Só no trabalho é que sempre tinham estado separadas.
Logo que se formaram Bela foi trabalhar para a
empresa do pai, não tendo conseguido convencer a sua amiga a seguir-lhe o
exemplo. Nanda recusou.
Naquela altura até compreendeu e não insistiu.
Quando acabaram o curso a amiga já estava casada e tinha um bebé de três anos,
o Miguel. Casara quase em segredo com o Tó Zé, uma decisão repentina que ela
não entendera muito bem… É certo que eles eram grandes amigos mas Bela nunca
sentira que entre eles houvesse mais do que amizade – pelo menos por parte da
Nanda.
Tó Zé e Nanda conheciam-se quase desde que
tinham nascido, viviam na mesma rua, brincavam juntos, foram colegas na
Primária, e aí separaram-se. Ele não era muito dado a estudos; preferiu seguir
um curso profissional, qualquer coisa relacionada com química, o que o levou a
afastar-se um pouco da amiga de ambos, Bela. Contudo continuou a conviver com
Nanda, com quem falava praticamente todos os dias.
Apesar disso aquele casamento inesperado
surpreendera-a bastante. É certo que às vezes Nanda lhe contava que o Tó Zé lhe
dissera que a amava, que nunca iria encontrar ninguém que gostasse dela como
ele… e coisas desse género. Mas ela levava tudo isso à conta de brincadeira,
não lhe atribuindo qualquer importância. Até porque ele dizia essas coisas mas
nunca tivera qualquer gesto tentando uma maior aproximação.
Afinal… um dia, por telefone, Nanda
comunicara-lhe a sua decisão de se casar com o Tó Zé. E, apesar do seu espanto
perante tal notícia e pedido de justificações, Bela não obteve da amiga
qualquer resposta que a elucidasse. Apenas soube que tudo estava decidido e que
o casamento se realizaria dentro de poucos dias.
Soube, depois, que fora uma cerimónia simples,
apenas no Cartório, com a presença dos pais e testemunhas. Ela própria, a sua
melhor amiga, não tinha estado presente. É certo que, na altura, encontrava-se
com os pais na quinta, onde eles passavam sempre dois meses, de meados de
Agosto a meados de Outubro. E de nada valeu Bela insistir para que Nanda
aguardasse o seu regresso à cidade. Ela mostrava-se decidida a casar-se o mais
rapidamente possível, como se disso dependesse a salvação do mundo.
“Já passaram muitos anos, mas ainda me
lembro que, da única vez que lhe perguntei o porquê daquele casamento, Nanda me
respondeu: Por favor não me faças perguntas a que não posso responder-te”
Agora Bela olhava para a amiga que mostrava um
rosto fechado, verdadeiramente aborrecida com as suas palavras. Raramente se
zangavam, e eram sempre arrufos “de pouca dura” (1). Mas desta vez Bela ultrapassara os limites e Nanda não parecia
disposta a perdoar facilmente.
- Sinto-me tão
mal com o que te disse… Sei que é difícil perdoares-me… mas, por favor, não
fiques zangada comigo. Sabes que não o suporto… - havia lágrimas na voz de Bela.
Nanda também não se sentia bem por ter levado
tanto a peito o que a amiga dissera. Ela própria não entendia o porquê do seu
desagrado. Afinal… a sua amiga não dissera nada assim tão grave. Sentia-se
mesquinha, e isso incomodava-a. A verdade é que andava com os nervos à flor da
pele. Eram coisas a mais a acontecerem ao mesmo tempo. Mas não podia deixar que
isso interferisse na sua amizade. Respirou fundo e, com um sorriso contristado,
respondeu:
- Vamos passar
uma borracha sobre tudo isto. Eu também reagi exageradamente. No fundo eu sei
que não falaste por mal…
Apertaram as mãos por cima da mesa e, mais
sorridentes, sentiram-se, de repente, esfomeadas.
- Vamos
a um restaurante ou comemos aqui mesmo? – perguntou Bela
- Sabes
que para mim uma salada é suficiente. E eles aqui têm-nas muito boas… -
respondeu Nanda.
- Tu e
as saladas… Sempre a preocupação com a linha… Como se precisasses, com esse teu
corpinho escultural – Bela falava com carinho e admiração.
- Se não
fosse a minha preocupação onde é que já ia este corpinho escultural!, como tu
dizes – riu Nanda.
- Digo
eu e diz qualquer pessoa que olhe para ti com olhos de ver. Garanto-te que
ninguém adivinha que já foste mãe duas vezes… -insistiu Bela.
- Nem
que tenho quase cinquenta anos? – Nanda brincou com a anterior frase da
amiga, mostrando assim que não estava nada ressentida.
- Não me
faças envergonhar mais… Como pude ser tão parva e injusta contigo? – Bela
mostrava-se verdadeiramente contrita.
- Vamos
pedir e comer em paz? – propôs Nanda.
- Boa ideia! – Bela chama o empregado e encomendam
o almoço.
Enquanto comem vão conversando amenamente. Por
fim é chegado o momento de se separarem. Despedem-se com um abraço apertado,
como é habitual entre elas. No abraço de hoje sentem que não há entre elas o
menor ressentimento pelo que aconteceu, o que constitui para ambas um enorme
alívio. Amigas há tanto tempo só muito raramente tiveram discussões com
verdadeiro azedume, como hoje.
- Ainda vou
passar pelo escritório para assinar uns documentos que deixei com a minha
secretária –
informa Bela, à laia de despedida.
- E eu tenho o meu
secretário Tejo à minha espera para ir dar um passeio – respondeu Nanda, rindo.
Afastaram-se seguindo direcções opostas.
Bela, rememorando o que acontecera nessa manhã
e pensando como fora desagradável com a sua amiga, sentia-se mal consigo mesma.
“Conhecemo-nos há tanto tempo que cenas destas
são inconcebíveis. A minha reacção não tem desculpa. A Nanda é para mim como
uma irmã, a irmã que tanto desejei e nunca tive. A vida dela é para mim como um
livro aberto. Bem… totalmente aberto não será… Até hoje ela não me contou o que
a levou a casar-se com o Tó Zé, demais a mais com aquela urgência toda. A mim
ninguém me convence que ali havia amor, pelo menos da parte da Nanda; já ele
sempre viveu apaixonado por ela, desce criança. Mas isso não justifica um casamento.
É certo que ela engravidou logo a seguir… mas
até isso me pareceu estranho. Era tão nova… Cheguei a pensar que já tinham tido
“alguma coisa” antes do casamento… Isso explicaria toda aquela pressa… Mas se
fosse isso ela não me contava? Sempre achei tudo muito misterioso.
É a única coisa em que sinto que Nanda não foi
totalmente franca comigo. Mas a verdade é que isso nunca interferiu na nossa
amizade.
Enfim… quem é que não guarda algum segredo da
sua vida qua não revela a ninguém?”
Embrenhada nestes pensamentos, sem se
aperceber, tinha chegado à porta da empresa.
Nanda caminhava apressadamente. Já passava das
três horas e o pobre Tejo devia estar aflito para ir dar o seu passeio
higiénico. Entretanto veio-lhe à ideia o acontecido no café onde passara a
manhã com a sua amiga.
“Que reacção tão intempestiva, a da Bela! Eu
sei que o sonho dela era que trabalhássemos juntas, e Deus sabe que era também
o que eu mais gostaria. Mas, onde ela trabalha, na empresa do pai, é que nunca!
Claro que ela nem sonha qual o motivo que me tem feito sempre recusar os seus
convites … E por mim jamais o saberá.
Afinal… conhecemo-nos há tantos anos! -
Quarenta? Sim… mais coisa menos coisa… - somos como duas irmãs (que há irmãs
que se dão pior do que nós…) e no entanto nunca consegui contar-lhe esse
segredo.
A verdade é que eu também tenho vivido há mais
de vinte anos, com a sensação de que a Bela guarda um segredo que nunca me quis
contar. Aquela ausência tão prolongada… na altura do meu casamento, sempre me
deixou desconfiada. E não me convenceu a conversa de que estava a acompanhar a
mãe que, por desavenças conjugais, resolvera fazer umas férias no estrangeiro.
Ná! (2)
Pareceu-me uma desculpa muito esfarrapada.
Mas enfim, ela lá terá tido as suas razões
para guardar segredo.
E… quem é que não guarda algum segredo da sua
vida qua não revela a ninguém? Infelizmente sei-o bem, por experiência
própria…”
Ruminando
estes pensamentos acercou-se do prédio onde morava. O Tejo, pressentindo-a,
começou logo a raspar o chão por detrás da porta.
(1) - Que
acaba muito depressa.
(2) – Ná = Não
Maria Caiano
Azevedo