… Depois de pedir uma “Salada César com Frango
”Nanda reparou que o homem que estivera no bar se levantara e saíra do
restaurante. Na rua dirigiu-se a um carro de gama alta, entrou e rapidamente
pôs-se em marcha.
Nanda pensou: “Aquela cara não me é estranha…” E,
dirigindo-se ao empregado:
- Conhece aquele senhor que acabou de sair do bar? …
SEGREDOS –
CAPÍTULO VI
- Conheço sim,
D. Nanda. É o engenheiro Carvalho Araújo. A senhora não o conhece?
De repente Nanda lembrou-se. Claro! Era isso mesmo. O
tal Carvalho Araújo do cartão, que a abordara junto ao Centro de Saúde. Sim,
era ele mesmo. Disfarçando, Nanda esboçou um sorriso e perguntou:
- E por que
havia de o conhecer?
- Como a
senhora é doutora em finanças… pensei…
Nanda deu uma gargalhada.
- Não, nem sou
doutora em finanças nem o conheço.
- Peço muita
desculpa, mas eu acho que ouvi dizer que a senhora era doutora em finanças…
- Não, António,
eu apenas tenho um curso superior de contabilidade, que é muito diferente.
- A senhora desculpe,
mas para mim é tudo a mesma coisa. Nenhum empresário consegue governar as suas
finanças se não perceber de contabilidade… é ou não é?
Nanda sorriu de novo. Até que o empregado não deixava
de ter razão… E sabia raciocinar…
- Na verdade,
se o seu patrão não tiver a contabilidade em ordem… lá se vão as finanças, e
chega ao fim do mês sem dinheiro para pagar o seu ordenado.
- P’ra longe vá
o agoiro, D. Nanda. Eu tenho família para sustentar. Mas olhe, ao engenheiro é
que não deve faltar dinheiro para sustentar a família…
- Ai sim? E
porque é que você diz isso?
- Dizem que ele
quer investir por aqui.
- Investir
como? – Nanda estava verdadeiramente interessada, mas
esforçava-se por não o denotar.
- O que dizem é
que ele esteve muitos anos no estrangeiro e ganhou lá muito dinheiro. E agora
parece que o quer aplicar cá na terra, porque os avós eram de cá e ele foi
criado por eles. – António falava com toda a precisão, como se
estivesse perfeitamente por dentro do assunto.
- Pois muito me
conta, António. Para ser criado pelos avós, se calhar ele era órfão…
- Era, sim
senhora, e foi por isso mesmo que os avós o criaram. Os pais morreram num
acidente, e ele ficou só com os velhotes e um tio, irmão do pai, que vivia no
estrangeiro. E foi esse tio que depois o levou para lá para fora e o pôs a
estudar.
- Então ele
deve estar cá há pouco tempo. Não tenho ideia de o ter visto por aí…
- Sim, ele veio
ainda não tem três meses. Está instalado na casa de um primo, e todos os dias
vem cá tomar café. É muito simpático, e interessa-se pelas pessoas que aqui
moram, está sempre a fazer perguntas…
- E você
retribui com outras perguntas, não é, António? Por isso sabe tanto a respeito
dele… - comentou Nanda, com um sorriso brincalhão.
- Faz parte do
ofício, D. Nanda. Um bom empregado deve estar sempre bem informado acerca dos
clientes…
- Que é como
quem diz: dever ser um perfeito “cusca” – interrompeu-o Nanda,
bem-humorada.
Como o restaurante se encontrava vazio àquela hora o
empregado manteve-se junto à mesa da cliente enquanto ela comia. Terminado o
almoço Nanda despediu-se e saiu.
Durante toda a conversa com o António tentara mostrar
uma curiosidade desprendida, mas registara todas as informações que ele lhe
prestara.
“Então o tal Carvalho Araújo é engenheiro, abastado, e
tem, talvez, intenções de abrir um negócio…” – pensava Nanda ao encaminhar-se
para casa.
“Agora parece que começa a fazer sentido a conversa
dele quando se me dirigiu com a tal história de que o que tem para me dizer
pode ser bom para mim… No Centro de emprego ele percebeu que eu estou
desempregada…
A verdade é que vinha mesmo a calhar um emprego, mas
uma coisa de jeito, não outro ‘negócio de farturas’ – Nanda riu-se, para si
mesma.
Sim, que o Luís não deve tardar muito a vir para cima,
se o Tó Zé cumprir o prometido, e mais dia, menos dia estou com um netinho nos
braços… - inconscientemente sorriu, embevecida, ao imaginar-se em tal
situação.”
Ao chegar a casa encontrou no hall de entrada a
vizinha do rés-do-chão esquerdo, a professora Carla.
Cumprimentaram-se amavelmente. Simpatizam bastante uma
com a outra, o que as leva a conversar sempre que se encontram.
- Bom dia,
Nanda. Como está? Calculo que muito feliz com a notícia de ser avó…
- Ah! A Carla
já sabe…
- E há alguém
aqui no prédio que não saiba? – riu Carla. Aliás, eu acho que não é só no prédio mas sim no bairro todo… -
sorria com simpatia.
Mas… entre um
bocadinho para conversarmos – enquanto falava ia abrindo a
porta da sua casa. Há tanto tempo que não
o fazemos, e eu gosto tanto de falar consigo. Como sabe… não tenho por cá
muitos amigos, e as pessoas aqui do prédio, embora me falem todas muito bem,
não passa disso…
- Eu penso que
é apenas porque a Carla está cá há pouco tempo. Há pouco mais de um ano… se não
me engano. Todos os moradores daqui se conhecem há muitos anos, vivem cá
praticamente desde que o prédio foi construído. E como somos apenas seis
condóminos… é quase como se fôssemos uma família apenas. Vai ver que com o
tempo acaba por se sentir “em casa” – Nanda pretendia assim animar a sua
amiga.
Mas voltando ao
assunto de eu ser avó e toda a gente saber – acrescentou
com um sorriso - acho que tem razão. A
notícia espalhou-se bem depressa. Tenho cá na minha ideia que para isso terá
contribuído muito o Chico das Farturas – respondeu Nanda, rindo; e acrescentou
logo de seguida: Bem, eu também não fiz
propriamente segredo…
- As boas
notícias são para se saberem. Para mal basta o que vemos na televisão – respondeu
Carla.
- É isso mesmo,
na TV só se ouvem desgraças. E por falar em desgraças… Quando vinha para casa
vi ali na esquina a Alberta com um fulano qualquer. Coitada, faz-me uma pena! O
marmanjo que estava com ela já não é o mesmo da semana passada. Aproveitam-se
da deficiência da pobrezinha, os desavergonhados! Nem sei quantos já se
divertiram à custa dela… Quando os vejo naquela esfregação toda só me dá
vontade de os insultar. – Nanda falava toda empolgada.
- É uma
tristeza, sim. Mas… não é nada fácil resolver aquele problema. Como a Nanda
sabe muito bem, os portadores da síndrome de Down têm a líbido muito
exacerbada, o que, no caso das mulheres, muitas vezes as leva a ir
coleccionando homens atrás de homens, em sexo ocasional, sem qualquer controle.
O comportamento da Alberta reflecte exactamente isso. Ela é um exemplo perfeito
dessa característica.
- É verdade. Mas
sabe, Carla? O que mais me incomoda é que essas pessoas são sempre extremamente
carinhosas, gentis, simpáticas, afáveis…E é isso, precisamente, que as torna
alvos fáceis para os desalmados que delas abusam.
Por sorte, é
muito raro estas mulheres engravidarem, não porque sejam estéreis, como os
homens, mas porque têm uma ovulação muito irregular, o que dificulta, quase
impossibilita, a gravidez.
- Sem dúvida
isso é uma bênção, pois seria difícil essas mulheres cuidarem dos filhos.
Haveria, então, mais um encargo para as suas famílias – acrescentou Carla.
Nanda fez um sinal de concordância e continuou:
- Sempre que
vejo a Alberta lembro-me de uma rapariga que havia na terra dos meus avós, lá
na Beira, que também sofria de Trissomia 21, e a sua maneira de se comportar
era igual à da Alberta.
- Ah! Então os
seus avós eram da Beira?! Que coincidência engraçada! Os meus também eram
beirões – disse Carla.
- Se formos
esmiuçar bem ainda descobrimos que os nossos avós eram primos – respondeu Nanda.
E ambas riram da ideia.
Carla retomou a palavra:
- Mas conte-me:
a Nanda ia lá quando eles eram vivos?
- Ah! Sim, ia lá
todos os anos. No Verão passava uma semana na província – o meu pai não podia
ter mais férias nessa altura; só depois, no Outono ou no Inverno. No Natal
íamos sempre por dez dias.
- Mas isso
devia ser uma maravilha! Os meus avós mudaram-se para cá quando eu era
pequenina. Só tenho lembranças muito vagas da época em que íamos lá… Mas a
Nanda deve lembrar-se bem…
- Claro que me
lembro! Quando penso nisso até parece que sinto o aroma da canela e da casca de limão que dominava a casa da minha avó…
- Nanda sorriu, àquela doce lembrança.
- Estou a ver
que o que a Nanda recorda melhor são as doçarias… - brincou
Carla.
- Não, não,
isso não é verdade. Falei nisso porque era a primeira impressão à chegada lá. A
minha avó já tinha tudo preparado para fazer os “Bolinhos de Jerimu”. Depois a
minha mãe ajudava-a a fritar os bolinhos, que tinham que esperar uma semana,
depois de feitos, para os comermos. Elas diziam que assim eles eram muito
melhores. Eu e o meu pai tínhamos uma opinião diferente… achávamos que
acabadinhos de fazer deviam ser uma delícia… mas nunca os provámos assim; as
matriarcas não se podiam contrariar – Nanda falava num tom saudoso.
- É
interessante que eu tenha tão poucas memórias desse tempo e me lembre
perfeitamente dos “Bolinhos de jerimu” – lembrou Carla. A verdade é que, mesmo depois de estar cá, a
minha avó os continuou a fazer…
- Afinal não
sou só eu a lembrar-me das doçarias… - sorriu Nanda. Mas tenho muitas outras recordações,
igualmente agradáveis, daqueles Natais. No dia seguinte à nossa chegada lá,
logo após o pequeno-almoço, o meu pai e eu íamos a um pinhal que pertencia aos
meus avós para colhermos musgo. Àquela hora da manhã estava muito frio; por
entre os troncos dos pinheiros havia uma neblina cerrada, misteriosa, que me
fazia imaginar que, por detrás daquelas árvores, dezenas ou até centenas de
duendes nos espreitavam. Eu quase podia vê-los a brincar às escondidas,
correndo de arbusto em arbusto, em alegre galhofa. Isso tornava-me um pouco
receosa. Mas a presença do meu pai era quanto bastava para me sossegar. Com a
minha mão presa na dele nada de mal me podia acontecer…
Levávamos um
cestinho e uma faca velha, meio rombuda. Quando encontrávamos alguma pedra com
o precioso fungo, o meu pai enfiava a faca cuidadosamente por debaixo da planta,
e eu amparava aquele delicado tapete verde com o maior cuidado, porque o musgo
parte-se com muita facilidade. Depois colocávamo-lo dentro do cestinho e quando
já tínhamos quantidade suficiente íamos para casa. Ali chegados corríamos para
a lareira, completamente enregelados, mas felizes… Nanda falava
com um ar sonhador e saudoso. Carla ouvia-a atentamente, bebendo as suas
palavras, como se quisesse gravar na memória tudo o que a sua amiga lhe
contava.
- Estou a
ouvi-la e a imaginar a alegria que tudo isso devia ser para uma criança – sim,
porque a Nanda era uma criança, na altura, imagino eu… comentou
Carla.
- Sim, quando
eu comecei a acompanhar o meu pai ao pinhal tinha os meus 8 ou 10 anos…
Anteriormente, quando eu era mais novinha, ele ia sozinho, e eu esperava-o
ansiosamente, em casa. É que aquele era o primeiro passo para a construção do
presépio…
- Que era, com
certeza, um dos pontos altos das Festas… – adiantou Carla.
- Sim, sem
dúvida! Para mim era um verdadeiro êxtase colocar no presépio, que o meu pai
armava, construindo morros e vales com pedras que punha por baixo do musgo,
todas aquelas figurinhas que eu considerava mágicas…
Havia também um
outro ritual que me encantava. O do tição de Natal…
- Nunca ouvi
falar nisso. De que se trata? – perguntou Carla, curiosa.
- Era assim: O
meu pai ia ao pinhal – dessa vez eu não o acompanhava, ele ia sozinho – e
trazia de lá um tronco de pinheiro bem grosso. Este tronco era aceso na noite
de Natal e conservava-se a arder, muito lentamente, sem chama, até ao último
dia do ano. Depois da meia-noite era apagado – a essa parte eu já não assistia,
invariavelmente estava a dormir… - e guardava-se para acender quando houvesse
trovoadas. Os antigos acreditavam que o “Tição de Natal” tinha o poder de
afastar as trovoadas e evitar que causassem estragos às pessoas e aos animais.
- Que bonita,
essa crença! É difícil para mim imaginar todo esse encantamento, pois não tive
a sorte de passar os Natais na província. Como sabe, aqui na cidade é tudo
muito mais artificial… compra-se tudo feito, não há a magia de sermos nós
mesmos a “fabricar” seja o que for… Sabe, Nanda, ao ouvi-la eu quase sinto
inveja de si. – comentou Carla, acrescentando rapidamente: - No bom sentido, é claro
- Eu
compreendo-a muito bem, minha amiga. Quando os meus avós faleceram deixámos de
ir passar o Natal a casa deles; a minha mãe não conseguia ir lá durante muito
tempo. Ver a casa dos pais causava-lhe muita dor. Eles morreram com um
intervalo de onze meses, primeiro a minha avó e depois o meu avô. Só bem mais
tarde a minha mãe arranjou coragem para ir lá desfazer-se dos prédios que eles
tinham deixado. A minha mãe era filha única… tal como eu sou.
- Ah! A Nanda é
filha única…
- Sim, não
tenho nem nunca tive irmãos…
- Eu desconfiei
disso pela maneira como falava do seu pai. Fez sobressair a ternura que ele
tinha por si, muito próprio de menina única – murmurou
Carla.
- O meu pai
tinha uma verdadeira paixão por mim. E era correspondido. Com a minha mãe era
diferente. Não que ela não gostasse de mim, nada disso! Só que ela era mais
rígida, mais exigente, queria fazer de mim uma pessoa perfeita. E eu nunca fui
perfeita… - acrescentou, com um meio sorriso.
De uma coisa,
porém, não me posso queixar – de falta de amor. Os meus pais sempre me mimaram
muito. Embora não fossem abastados – como eram, por exemplo, os pais da minha
amiga Bela, esses sim, bastante ricos – nunca senti necessidade do que quer que
fosse. A minha mãe tinha o maior cuidado
para que nada me faltasse, e, à sua maneira, sempre me dispensou muito carinho.
Era muito exigente com os estudos, não admitia sequer a ideia de que eu não
tirasse um curso superior… O meu pai, como a Carla já se apercebeu, era o meu
herói. E eu era a sua princesa – que o lugar de rainha cabia à minha mãe, que
não o dispensava – Nanda riu com gosto.
- Os pais
sempre desejam que os filhos sejam os melhores em tudo – disse Carla.
Mas os filhos nem sempre correspondem.
- Essa é uma
grande verdade, minha amiga. Só quando nasceram os meus filhos é que entendi
muitas coisas, nomeadamente as exigências da minha mãe. Eu sei que a
decepcionei muito, não correspondi às suas expectativas, não fui a pessoa que
ela esperava que eu fosse – havia amargura na voz de Nanda. Mas eu tinha que viver a minha vida, não
podia ser ela a vivê-la por mim…
Lançando um olhar ao relógio acrescentou:
- Já está a
fazer-se tarde. Tenho que pôr pés a caminho…
Carla sorriu:
- O caminho não
é longo… é só atravessar o hall. Nanda, muito obrigada por estes momentos. Nem
imagina como me soube bem falar consigo. Temos que repetir.
Mas, de facto
está a fazer-se tarde, também tenho que ir buscar os gémeos ao colégio…
- Ah! Mas que indelicadeza
a minha! Com o entusiasmo da conversa esqueci-me de perguntar pelos meninos…
Eles estão bem?
- Sim, estão. A
semana passada o Tiago pregou-me um susto, tive que o levar ao hospital, mas
não foi nada de grave. Não vejo é a hora de poderem ser operados…
- Pois… sabemos
como é a saúde em Portugal… respondeu Nanda, levantando-se. Eu vou também tratar do “meu bebé” Tejo,
antes que aconteça alguma fatalidade líquida lá em casa…
Maria Caiano Azevedo
FELIZ
ANO NOVO
FELIZ
2019
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os 365 dias que agora começam a:
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