Com este título – “Poetas Africanos” - apresentei dois poetas moçambicanos, pouco conhecidos do público em geral – Juvenal Bucuane e Francisco Xavier Guita Júnior (Guita Jr).
Hoje cabe a vez a um escritor cuja poesia é também pouco divulgada. Publicou apenas um livro de poemas, em 1983. A sua notoriedade deve –se à sua escrita em prosa, tendo publicado vários livros de contos e romances.
Trata-se de Mia Couto, natural de Moçambique, filho de emigrante português, também ele poeta e jornalista. Cursou medicina, acabando por formar-se em biologia. É como biólogo que, actualmente, exerce a profissão de professor universitário.
Oportunamente publicarei aqui alguns dos seus poemas. Hoje prefiro apresentar um excerto de um conto que faz parte do livro «Cada homem é uma raça».
“Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu” - conto
A barbearia do Firipe Beruberu ficava debaixo da grande árvore, no bazar do Maquinino. O tecto era a sombra da maçaniqueira
(árvore da maçanica, conhecida por maçã-da-índia).
Paredes não havia: assim ventava mais fresco na cadeira onde Firipe sentava os clientes Uma tabuleta no tronco mostrava o custo dos serviços. Estava escrito: «cada cabeça 7$50». Com o crescer da vida, Firipe emendou a inscrição: «cada cabeça 20$00».
E para os clientes que adormeciam na cadeira, acrescentou «Cabeçada com dormida – mais 5 escudos»
… O barbeiro distribuía boas disposições, dákámaus( apertos de mão) . Quem passeasse seus ouvidos por ali só ouvia conversa sorridente. Propaganda do serviço. Firipe não demorava:
- Estou-vos a dizer: sou mestre dos barbeiros, eu. Podem andar aí, em toda a volta, procurar nos bairros: todos vão dizer que Firipe Beruberu é o maior.
Alguns clientes toleravam, pacientes. Mas outros lhe provocavam, fingindo contrariar:
- Boa propaganda, mesire(tratamento de respeito) Firipe.
- Chii, propaganda? Realidade! Se até cabelo fino de branco já cortei.
- O quê? Não diga que um branco já chegou nessa barbearia…
- Eu não disse que chegou aqui um branco. Disse que cortei cabelo dele. E cortei, palavra da minha honra.
- Explique lá, ó Firipe, Se o branco não chegou até aqui, como é que lhe cortou?
- É que fui chamado lá na casa dele. Cortei dele, cortei dos filhos também. Razão que eles tinham vergonha de sentar aqui, nessa cadeira. Só mais nada.
- Desculpa, mesire.Mas esse não era branco-mezungo(branco, senhor). Era um xikaka(colono, português de categoria social dita inferior).
Firipe fazia cantar a tesoura enquanto a mão esquerda puxava da carteira
- Uáá! Vocês? Sempre duvidam, desconfiam. Já mostro prova da verdade. Espera aí, onde é que…? Ah!, está aqui.
Com mil cuidados desembrulhava um postal colorido de Sidney Poitier.
- Olhem essa foto. Estão a ver esse gajo? Apreciam o cabelo dele: foi cortado aqui, com essas mãos. Tesourei-lhe sem saber qual era a importância do tipo. Só vi que falava inglês.
Os fregueses faziam crescer as suas dúvidas. Firipe respondia:
- Estou-vos a dizer : esse gajo trouxe a cabeça dele desde lááá, da América até aqui na minha barbearia…
… Mas um homem rico como aquele, estrangeiro ainda mais, havia de ir no salão dos brancos. Não sentava aqui, mesire. Nunca!
O barbeiro fingia-se ofendido. A sua palavra não podia ser posta em dúvida. Ele então usava o seu derradeiro recurso:
- Tem dúvida? Então vou apresentar testemunha. Vocês vão ver, esperem lá.
…O barbeiro não tinha ido longe. Afastara-se apenas uns tantos passos para conferenciar com um velho vendedor de folha de tabaco. Regressavam os dois, o Firipe e o velho.
- Está aqui o velho Jaimão.
E virando-se para o vendedor, Firipe ordenava:
- Fala lá você, ó Jaimão.
O velho tossia toda a rouquidão antes de confirmar.
- Sim. Na realmente, vi o homem da foto. Foi cortado o cabelo dele aqui. Sou custumunha.
E choviam as perguntas dos clientes…
…Uááá, não é mentira. Até me lembro: foi um sábudu.
… Foi num dia. A barbearia continuava seu sonolento serviço, e essa manhã, como todas as outras, se sucediam as doces conversas.
…Foi então que apareceram dois estranhos. Só um entrou na sombra. Era um mulato, quase branco. As conversas desmaiaram ao peso do medo. O mulato se dirigiu ao barbeiro e ordenou que mostrasse os documentos:
- Porquê, os documentos? Eu, Firipe Beruberu, sou duvidado?
Um dos clientes aproximou-se de Firipe e segredou-lhe:
- Firipe, é melhor você obedecer. Esse homem é o Pide.
O barbeiro baixou-se sobre o caixote e retirou os documentos:
- Estão aqui os meus plásticos.
O homem passou em revista a carteira. Depois amarrotou-a e atirou-a para o chão.
- falta uma coisa nesta carteira, ó barbeiro.
- Falta alguma coisa, como? Se todos os documentos já entreguei.
- Onde está a fotografia do estrangeiro?
- Estrangeiro?
- Sim, desse estrangeiro que você recebeu aqui na barbearia.
O Firipe duvida primeiro, depois sorri. Entendera a confusão e prontificava-se a explicar:
- Mas senhor agente, isso do estrangeiro é história que inventei, brincadeira…
O mulato empurra-o, fazendo-lhe calar.
- Brincadeira, vamos ver. Nós sabemos muito bem que vêm subversivos da Tanzânia, da Zâmbia, de onde. Turras! Deve ser um desses que recebeste aqui.
- Mas receber, como? Eu não recebo ninguém, não mexo com política.
O agente vai inspeccionando o lugar, desouvindo. Pára em frente da tabuleta e soletra em surdina:
- Não recebes? Então explica lá o que é isto aqui: «Cabeçada com dormida: mais 5 escudos». Explica lá o que é essa dormida.
- Isso é por causa de alguns clientes que dormecem na cadeira.
O polícia já cresce na sua fúria.
- Dá-me a foto.
O barbeiro retira o postal do bolso. O polícia interrompe o gesto, arrancando-lhe a fotografia com tal força que a rasga.
- Este aqui também adormeceu na cadeira, hein?
- Mas esse nunca esteve aqui, juro. Fé – de - Cristo, senhor agente. Essa foto é do artista do cinema. Nunca viu nos filmes, desses dos americanos?
- Americanos, então? Está visto. Deve ser companheiro do outro, o tal Mondlane que veio da América. Então este também veio de lá?
- Mas esse não veio de nenhuma parte. Isso tudo é mentira, propaganda.
- Propaganda? Então deves ser tu o responsável da propaganda da organização…
O agente sacode o barbeiro pela bata, os botões caem. Vivito (1) tenta apanhá-los, mas o mulato dá-lhe um pontapé.
- Para trás, sacana. Ainda vai é tudo preso.
O mulato chama o outro agente e fala-lhe ao ouvido. O outro parte pelo atalho e regressa, minutos depois, trazendo o velho Jaimão.
- Já interrogámos este velho. Ele confirma que recebeste aqui o tal americano da fotografia.
Firipe, de sorriso frouxo, quase nem tem força para se explicar.
- Vê, senhor agente, outra confusão. Eu que paguei ao Jaimão para ele servir de testemunha da minha mentira. Jaimão está combinado comigo.
- Está combinado, está.
- Ó jaimão diz lá: não foi uma maneira que combinámos?
O pobre velho, desentendido, rodava dentro do seu casaco esfarrapado.
- Sim. Na realmente eu vi o cujo homem. Estava aqui, nessa cadeira.
O agente empurrou o velho, amarrando os seus braços aos do barbeiro, Olhou em volta, com vistas de abutre magro. Enfrentava a pequena multidão que assistia a tudo silenciosamente. Deu um pontapé na cadeira, partiu o espelho, rasgou o cartaz. Foi então que Vivito se meteu, gritando. O aleijado segurou o braço do mulato mas cedo se desequilibrou, caindo de joelhos.
- E este quem é? Que língua é que ele fala? Também é estrangeiro?
- Esse rapaz é meu ajudante.
- Ajudante? Então também vai dentro. Pronto, vamos embora! Tu, o velho e este macaco dançarino, tudo a andar à minha frente.
- Mas o Vivito…
- Cala-te barbeiro, já acabou o tempo das conversas. Vais ver que, lá na prisão, há um barbeiro especial para te cortar o cabelo a ti e aos teus amiguinhos.
E, perante o espanto do bazar inteiro, Firipe Beruberu, vestido de sua imaculada bata, tesoura e pente no bolso esquerdo, seguiu o último caminho na areia do Maquinino. Atrás, com sua antiga dignidade, o velho Jaimão. Seguia-se-lhe o Vivito de passo bêbado. Fechando o cortejo, vinham os dois agentes, vaidosos da sua caçada. Calaram-se então os pequenos milandos (brigas, discussões) do quanto custa, o mercado rendeu-se à mais funda melancolia.
Na semana seguinte vieram dois cipaios. Arrancaram a tabuleta da barbearia. Mas, olhando o lugar, eles muito se admiraram: ninguém tinha tocado em nenhuma coisa. Ferramentas, toalhas, o rádio e até a caixa de trocos continuavam como foram deixados, à espera do regresso do Firipe Beruberu, mestre dos barbeiros de Maquinino.
(1) – Vivito , o ajudante do barbeiro era aleijado, as pernas bambas, a cabeça pequenita coxeava sobre os ombros. Babava-se nas palavras, salivando nas vogais, cuspindo nas consoantes…
Mia Couto in «Cada homem é uma Raça»