domingo, 1 de novembro de 2020

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XXV

 SEGREDOS – CAPÍTULO XXIV

“… Agora somos apenas bons amigos…

- Sim, bons amigos unidos por dois filhos e um neto… Digo-te uma coisa, eu estive a reparar na maneira como ele olha para ti. Ainda há ali muito amor… E, por falar em amor, nunca mais soubeste nada do Alessandro? …”


SEGREDOS – CAPÍTULO XXV

Nanda encolheu os ombros e, simulando indiferença, respondeu:

- E como querias tu que eu soubesse? Nem faço a mínima ideia donde ele se encontra, presentemente. Tal como tu, apenas soube que foi para Itália, para dar andamento à tal investigação, e nada mais. Escreveu-me algumas vezes mas… tu sabes… longe da vista longe do coração. Quem sabe se não foi melhor assim? Cada um orientou a sua vida e seguiu o seu destino.

- Tens razão, mas ao mesmo tempo faz uma certa impressão pensar como pode morrer uma paixão assim tão grande, como era a vossa.

- Minha querida, como tudo, a paixão não vive sem alimento. E uma ou outra carta, de vez em quando, por muito inflamada que seja não é o suficiente para manter acesa a chama… É preciso muito mais do que isso…

- Mais uma vez tens razão, mas faz-me pena, sabes?

- Isso é porque hoje estás muito lamechas – Nanda riu alegremente. Passado é passado, não vale a pena chorar sobre leite derramado. Olha, vou fazer umas torradinhas e um chá – também tenho ali daquelas bolachinhas de canela que tu adoras… - vamos jantar e em seguida vou levar-te a casa.

Depois de deixar Bela com a recomendação de que tomasse “qualquer coisa” para a ajudar a descansar – “amanhã é dia de trabalho, não te esqueças, precisas de dormir” – Nanda regressou a tempo de levar o Tejo à rua, que já se contorcia com as suas necessidades fisiológicas.

Anoitecia. E, como sempre acontecia, esta hora do dia tornava-a nostálgica, trazendo-lhe à lembrança as recordações do passado que, normalmente, fazia por esquecer. “Como é que Bela se fora lembrar de Alessandro? Não se tinha passado nada durante o dia que a levasse a isso… Seria o facto de ter estado com Tó Zé, ao almoço? Mas isso não tinha muita lógica… Só ela própria e o ex marido é que sabiam que Miguel, o filho mais velho, era filho do Alessandro…” E continuou nos seus pensamentos…

 

“Sem dúvida, Tó Zé foi um verdadeiro cavalheiro! Passados quase trinta anos nunca revelou aquele segredo que me prometeu guardar. Nem mesmo naqueles momentos bem difíceis, depois de nascer o segundo filho, em que ele me acusava de não sentir por este o mesmo amor que sentia pelo mais velho – “isso acontece porque o Miguel é fruto  da tua grande paixão” – acusava Tó Zé. 

Ele dizia estas coisas, acusava-me, mas sempre e só de portas para dentro, nunca deixou transparecer a mágoa que, no fundo, sentia, por não ser o pai de Miguel.

Pensando bem… foi a partir do nascimento do Luís que o nosso casamento começou a tremelicar… Meteu-se-lhe na cabeça que eu dava mais mimo ao Miguel e, casmurro, ninguém o convencia do contrário. Como se uma mãe pudesse amar mais um filho do que outro! Ideias destas só mesmo na cabeça de um homem, que não sabe o que é o amor maternal.

A verdade é que foi pena as coisas começarem a descambar. Podíamos ainda hoje estar casados e felizes…

Depois começou a dar atenção àquelas galdérias que iam lá à loja, todas derretidas para cima dele. Umas ordinárias é o que elas eram! Sabiam muito bem que ele era casado mas não se importavam nada com isso. Bem,  o que é certo é que elas também não queriam casar com ele, só queriam “dar umas cambalhotas” e seguir em frente. E eu não posso esquecer que o Tó Zé era um rapaz bastante atraente, e, quando queria, sabia ser irresistível.

Já nem me lembro quando foi a primeira noite que ele não dormiu em casa! Com a desculpa esfarrapada de que tinha de ir levar uma encomenda grande não sei onde… só apareceu em casa no dia seguinte.

Mas teve azar porque eu, de parva, nunca tive nada… e ele também foi descuidado e deixou no bolso das calças a conta do hotel para duas pessoas, que eu encontrei quando pus as calças para lavar.  Era só somar dois mais dois… e o mistério foi desvendado.

A partir daí as coisas entortaram de vez. Ainda nos aguentámos uns tempos mas depois decidimos, de comum acordo, que o melhor era separarmo-nos. Este “comum acordo” foi relativo, porque ele preferia continuar casado… e a ter outras mulheres por fora.

Mas enfim, o destino tem de ser cumprido, e o meu era acabar sozinha, como agora estou. Bom, sozinha é um modo de dizer, tenho junto de mim um filho e um neto que amo muito. E uma nora, é claro. Ela é muito boazinha, e faz o meu Luís muito feliz. E ainda tenho o Miguel, aquele filho tão querido de quem tenho já tantas saudades!”

 

Como se quisesse vir ao encontro dos seus pensamentos o telemóvel tocou. Com grande alegria viu tratar-se de Miguel. Foi com voz em alvoroço que atendeu:

- Miguel, meu querido filho, estava agora mesmo a pensar em ti!

- Agora mesmo? Então tu não andas sempre comigo no pensamento? – riu Miguel.

- Sabes bem que sim, mas num cantinho muito especial, só teu, , deixando espaço para que eu possa pensar noutras coisas – Nanda alinhou na brincadeira.

- Eu entendo. Olha, Mãezita, adivinha o motivo deste telefonema.

Quando o filho a tratava por Mãezita era sinal de que estava particularmente bem disposto.

- Prefiro não me pôr a adivinhar – Nanda não queria criar falsas esperanças.

- Tu e as tuas superstições! Mas podes adivinhar à vontade. Aliás… evidentemente que já sabes do que se trata. Vamos aí de férias! Pronto, já está dito!

Embora desconfiasse que fosse isso mesmo, Nanda sentiu uma alegria enorme.

- Que bom, meu filho. Estava a ver que nunca mais chegava esse dia. Há quase dois anos que não vens cá…

- Que exagerada, Mãe. Mas olha, tenho um grande favor a pedir-te.

- Sim. Diz. Já sabes que podes contar sempre comigo…

- Eu sei. É o seguinte: Nós temos uma amiga - muito amiga, é quase como se fosse da família – que trabalha também em investigação, embora num ramo diferente do nosso. Ela tem de ir a Portugal fazer umas consultas na Torre do Tombo. Está a compilar documentos para, em conjunto com um colega, escreverem um tratado sobre Cristóvão Colombo, o “genovês”.

Parece que querem tirar a limpo se ele era português ou italiano – riu  Miguel, continuando:

Ela vai ter que ficar aí algum tempo, e lembrei-me que talvez tu não te importasses que ela ficasse aí em casa…

Nanda, apanhada totalmente de surpresa, ainda tentou reagir:

- Mas, meu filho, ter em casa uma pessoa que não conheço, sinceramente não me agrada muito…

- Mãe, tu só dizes isso porque não a conheces. Confia em mim. Ela é uma doçura de miúda, tenho a certeza de que te vais apaixonar quando a conheceres…

- Sendo assim… O que é que posso recusar-te?

- Nada, Mãezita, nada! – riu Miguel.

De repente, Nanda lembrou-se:

- Mas… estás a esquecer-te de uma coisa. Eu só tenho dois quartos – o meu e o quarto de hóspedes, que é onde tu dormes com a Farida, quando cá vêm. Onde vamos deitar a tua amiga?

- Quanto a isso não há problema, está tudo pensado. Quando aí chegarmos ela dorme no sofá, na sala.

- No sofá, Miguel? Mas que disparate! Queres deitar uma hóspede num sofá, na sala? – Nanda mostrava-se entre admirada e indignada.

- Parece que não ouviste o que eu te disse da Giuliana – é o nome dela… A Giuliana é como uma irmã para nós. Se te faz impressão ela dormir na sala, até pode dormir num colchão no nosso quarto… - riu Miguel.

- Credo, meu filho, nem que eu tivesse que lhe ceder o meu quarto… - indignou-se Nanda. Mas pronto, se tu achas que pode ser assim, enfim, não é que me agrade muito, mas paciência.

- Sossega, Mãezita, quando conheceres a Giuliana vais te sentir como se a tivesses conhecido desde que nasceu – rematou Miguel, alegremente.

Não cabendo em si de contente Nanda ligou logo para Luís a fim de lhe dar a novidade. Como seria de esperar o filho ficou radiante:

- Que bom, Mãe! Já tenho tantas saudades do meu irmão! E, finalmente, ele vai conhecer o mais novo membro da família, o nosso Nani.

Essa semana passou a voar. Nanda não cabia em si de contente. E, apesar de ter uma empregada exemplar, que lhe mantinha a casa impecavelmente limpa, as horas que passava em casa eram ocupadas a fiscalizar tudo, a descobrir pó onde ele não existia, a mudar de sítio os bibelots porque lhe parecia que não ficavam muito bem onde estavam… enfim, não tinha um minuto de descanso. É que não lhe saía da cabeça a ideia de que ia receber em sua casa uma desconhecida, e não queria que ela tivesse nada a apontar-lhe. Apesar de tudo o que Miguel lhe dissera acerca da amiga, a tal Giuliana, não se sentia muito confortável com a ideia.

Na véspera da chegada do filho Nanda falou com Araújo explicando a situação e informando-o de que não iria tralhar no dia seguinte.

O engenheiro respondeu-lhe com um sorriso:

- E quando é que a Nanda pensa em meter férias? Há dois anos que aqui trabalha e só faltou um dia por outro. Não quer agora ficar uns dias com o seu filho?

- Obrigada, mas agora não vale a pena. Quando ele chegar só fica cá um dia e vai logo para o Porto, passar uns dias com um amigo que se vai ausentar. Quando ele regressar talvez aceite a sua oferta – respondeu Nanda, sorrindo.

- Olhe que não me vou esquecer – fingiu ameaçar Araújo.

Levantou-se “com as galinhas”. Depois de passar algumas horas sem quase conseguir dormir, saltou da cama e foi para a cozinha fazer um bolo e uns scones para o lanche. Miguel e Farida chegariam cerca das três horas, e queria estar totalmente liberta para os receber sem qualquer preocupação. Tinha convidado o seu filho Luís para almoçar e, com ela, aguardar a chegada do irmão.

Tinha sugerido ao Miguel ir esperá-los ao aeroporto mas ele dissuadiu-a de imediato. Ele sabia que a mãe não gostava muito de conduzir, especialmente por locais que não conhecia bem. O carro estava a maior parte do tempo dentro da garagem. Nanda conduzia por necessidade e não por prazer. Por isso, quando chegassem ao aeroporto, tomariam um táxi que os traria até ela.

 

Luís correu para a porta mal ouviu o toque da campainha. Nanda, com o coração aos saltos, de ansiedade, aguardou. Queria manter-se abraçada ao filho todo o tempo que lhe apetecesse.

O abraço que envolveu os dois irmãos continha muitas saudades acumuladas ao longo do tempo em que tinham estado sem se verem, e um grande, enorme, amor fraternal.

Em crianças brigavam muito um com o outro, entrando até, por vezes, na agressão física, ainda que sem gravidade. Tinham maneiras de ser muito diferentes.

Mas, à medida que foram crescendo e talvez por tomarem consciência de que estavam a ser criados e educados apenas pela Mãe, o que para ela representava um grande sacrifício e responsabilidade, adoçaram a sua convivência e, sem mesmo se aperceberem, foram-se tornando grandes amigos que, depois de jovens adultos, eram inseparáveis.

Por isso aquele abraço, após uma tão longa ausência, foi comovido para ambos, e comovedor para a mãe, que os observava em silêncio, enlevada.

Finalmente afastaram-se e Nanda pôde dar vazão aos sentimentos contidos, sem se preocupar com as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto.

Num gesto de imenso carinho Miguel enxugava-lhas, suavemente, murmurando baixinho:

- Então, Mãezita, ficas assim tão triste por me veres? Volto já para a Bélgica!

Nanda apertou-o com mais força, respondendo, com voz entrecortada:

- Só se me levares contigo…

Lentamente afastaram-se dando lugar a Farida, que os olhava sorrindo. Também ela gostava muito da sogra.

Depois de acalmadas as emoções e todas as manifestações de carinho Miguel afastou-se para o lado deixando à vista a amiga que se mantinha silenciosa, encoberta pelo casal, e disse:

- Mãe, esta é a amiga de quem te falei. Chama-se Giuliana.

Nanda desviou, finalmente, a atenção dos recém-chegados, voltando-se para Giuliana.

Como que assombrada, não conseguia afastar o olhar dos lindos olhos azuis que a fitavam sorrindo, ao mesmo tempo que uns braços se lhe dirigiam com a intenção de a abraçar.

Sentiu um zumbido fortíssimo nos ouvidos; depois tudo escureceu à sua volta. Começou a cambalear. Foi apoiada por Luís que a transportou em braços, desmaiada, para o sofá.

 Maria Caiano Azevedo