domingo, 24 de abril de 2011

FELIZ PASCOA

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PÔNCIO PILATOS



Dos Ritos e Cultos Orientais

Minha mulher me falara Dele muitas vezes, antes que Ele fosse trazido diante de mim, mas eu não estava interessado.
Minha mulher é uma sonhadora, e é dada, como muitas mulheres romanas de sua classe, aos cultos e ritos orientais. E esses cultos são perigosos para o Império; e quando encontram um caminho para o coração das mulheres, tornam-se destruidores.
O Egipto chegou ao fim quando os hicsos** da Arábia lhe trouxeram o Deus único de seu deserto. E a Grécia foi submetida e reduzida a pó quando Astarté e suas sete virgens vieram das praias da Síria.
Quanto a Jesus, eu nunca vira o homem antes de me ser Ele trazido como um malfeitor, como um inimigo de Sua própria nação e de Roma.
Foi trazido ao Pretório do Juízo com os braços amarrados ao corpo por umas cordas.
Eu estava sentado na curul*, e Ele caminhou para mim com passos largos e firmes; depois, postou-se ereto, com a cabeça erguida.
E não posso compreender o que me salteou naquele momento; mas foi de súbito meu desejo embora não minha vontade, levantar-me e descer daquela curul* e cair diante Dele.
Senti como se César tivesse entrado no Pretório, um homem maior ainda do que a própria Roma.
Mas isto durou apenas um momento. E depois vi simplesmente um homem que era acusado de traição por Seu próprio povo.
Interroguei-O, mas Ele não respondeu. Apenas olhou para mim. E em seu olhar havia piedade, como se Ele é quem fosse meu governador e meu juiz.
Depois, ergueram-se de fora os gritos do povo. Mas Ele permaneceu silencioso, e continuava a olhar para mim com piedade nos olhos.
Então saí para os degraus do palácio, e quando o povo me viu, parou de gritar. E eu disse: “Que quereis com esse homem?”
E eles bradaram como por uma garganta só: “Queremos crucificá-Lo. É nosso inimigo e o inimigo de Roma.”
E alguns gritaram: Não disse Ele que destruiria o templo? E não foi Ele quem reclamou o reino? Não temos rei senão César.”
Deixei-os e voltei para o Pretório do Juízo, e vi-O ainda de pé ali sozinho, e Sua cabeça estava ainda erguida.
E lembrei-me de que tinha lido que um filósofo grego dissera: “O homem solitário é o mais forte.” Naquele momento, o Nazareno era maior do que a Sua raça.
E não senti clemência para com Ele. Ele estava além de minha clemência.
E perguntei-Lhe: És tu o rei dos judeus?
E Ele não disse uma palavra.
E perguntei-Lhe novamente: “Não disseste que és o rei dos judeus?”
E Ele olhou para mim.
E respondeu com uma voz tranquila: “Tu mesmo me proclamaste rei. Talvez eu tenha nascido para tal fim, e por essa causa vim dar testemunho da verdade.”

Imaginai um homem falando da verdade em tal momento!
Em minha impaciência, falei alto, talvez tanto para mim mesmo como para Ele: “Que é a verdade? E que representa a verdade para o inocente quando a mão do carrasco já está sobre ele?”
Então Jesus disse com poder: “Ninguém governará o mundo senão com o Espírito e a verdade.”
E perguntei-Lhe, dizendo: “És tu do Espírito?”
Ele respondeu: “Assim também o és, embora não o saibas.”
E que era o Espírito e que era a verdade, quando eu, pelo bem do Estado, e eles, por zelo pelos seus ritos antigos, entregamos um homem inocente à morte?
Nenhum homem, nenhuma raça, nenhum império se deixará deter por uma verdade em seu caminho, para se realizar.
Eu disse novamente: “És o rei dos judeus?”
E Ele respondeu: “Tu mesmo o disseste. Eu conquistei o mundo antes desta hora.”
E só isso, de tudo o que Ele disse, era impróprio, porquanto somente Roma conquistou o mundo.
Mas agora as vozes do povo levantavam-se novamente e o barulho era maior do que antes.
E desci de meu acento e disse-Lhe: “Segue-me.”
E novamente apareci sobre os degraus do palácio, e Ele postou-se a meu lado.
Quando o povo O viu, bramiu como o trovão rugidor. E em seu clamor, eu só ouvia: “Crucificai-O! Crucificai-O!”
Então, entreguei-O aos sacerdotes que mo tinham trazido e disse-lhes: “Fazei o que quiserdes com este justo. E se for de vosso desejo, tomai soldados de Roma para guardá-Lo.”
E eles O tomaram, e eu decretei que fosse escrito na cruz, acima de Sua cabeça: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus.” Podia, em vez disto, ter posto: “Jesus de Nazaré, um rei.”
E o homem Foi despido, e flagelado, e crucificado.
Ter-me-ia sido possível salvá-Lo, mas salvá-Lo teria provocado uma revolução; e é sempre sábio para o governador de uma província romana não ser intolerante com os escrúpulos religiosos de uma raça conquistada.
Creio, até esta hora, que o homem era mais do que um agitador.
O que decretei, não foi de minha vontade, mas antes pelo bem de Roma.
Não muito depois, deixamos a Síria, e desde esse dia minha esposa se tornou uma mulher de tristeza. Algumas vezes, mesmo aqui neste jardim, vejo uma tragédia em sua face.
Dizem-me que ela fala muito de Jesus às outras mulheres de Roma.
Vede, o homem cuja morte decretei volta do mundo das sombras e entra em minha própria casa.
E, dentro de mim, repito sempre a mesma pergunta: O que é a verdade e o que não é a verdade? Pode dar-se o caso de que o sírio nos esteja conquistando nas horas quietas da noite?
Isto não deve acontecer.
Porque Roma precisa prevalecer contra os pesadelos de nossas esposas.

Gibran Khalil Gibran

*cadeira de marfim reservada outrora a certos magistrados romanos.

**hicsos - foram um povo asiático que invadiu a região oriental do Delta do Nilo durante a décima segunda dinastia do Egito, iniciando o Segundo Período Intermediário da história do Antigo Egito.
Inf. Wikipedia




GIBRAN KAHLIL GIBRAN foi um ilustre poeta libanês, filósofo e artista.
Nasceu em 6 de Dezembro de 1883 em Bsharri, nas montanhas do Líbano, a uma pequena distância dos cedros milenares.
Sua fama e sua influência se derramaram por todo o mundo.
Suas reflexões e sua poesia foram traduzidas para mais de vinte idiomas, e seus desenhos e pinturas são expostos em grandes cidades do mundo.
Faleceu em 10 de Abril de 1931 no Hospital São Vicente, em Nova York, no decorrer de uma crise pulmonar que o deixara inconsciente.

domingo, 17 de abril de 2011

DOMINGO DE RAMOS




O Domingo de Ramos é o domingo imediatamente anterior ao Domingo de Páscoa, e dá início à Semana Santa.
Deve o seu nome à memória litúrgica da entrada solene de Jesus em Jerusalém. Montado num jumentinho, em sinal de humildade,




Ele dirigia-se àquela cidade para ali celebrar a Páscoa.

À chegada, Jesus é aclamado pelo povo, que, agitando folhas de palmeira, e cantando “Hossana ao Filho de Davi!", o aplaude como “Aquele que vem em nome do Senhor”, e o recebe como um rei.
Será este mesmo povo que, na sexta feira santa, irá pedir a Pilatos a sua crucificação.
Assim é a inconstância, a volubilidade do Homem de pouca fé.

A Missa de Domingo de Ramos foi chamada, em tempos, de “Missa seca” porque nela não havia comunhão – consagração do pão e do vinho.

Uma das tradições mais populares em Portugal consiste na “benção dos ramos” ou dos “palmitos” – prática generalizada entre os povos católicos.
Por vezes os ramos, feitos com folhas de palmeira, raminhos de pliveira, alecrim e rosmaninho, e flores como camélias e outras, atados com fitas de cor, são benzidos de véspera, e levados, no dia seguinte, para a missa; outros são benzidos antes de começar a Missa de Ramos.




(Bênção dos ramos - Igreja de S.Francisco-Armação de Pera-Algarve)

Esses ramos são depois guardados em casa durante todo o ano; nalgumas aldeias e vilas ainda se conserva o costume de dependurar os ramos à cabeceira da cama para “proteger dos maus ares”. É também costume colocá-los na sala, junto de uma imagem religiosa ou crucifixo, para receber o “Compasso” durante a visita pascal.
Na Beira Baixa, há um costume muito peculiar: junto com os ramos leva-se à igreja um pão, para ser benzido antes da missa. A crença popular atribuia-lhe poderes divinos e profiláticos.
Ainda hoje, mais ou menos por todo o país, se mantém o costume de queimar algumas folhas do “ramo bento” para afastar as trovoadas. Com o mesmo intuito colocam-se raminhos de oliveira sobre as janelas e portas, e dá-se aos animais um pedacinho do “pão bento”.
As palmas e os ramos que ficam nas igrejas são queimados neste dia e as suas cinzas, guardadas na sacristia, servem para impor o Sinal da Cruz na fronte dos fieis na Missa de Cinzas do ano seguinte.

São comuns as procissões do Domingo de Ramos, em que os fiéis levam consigo ramos de oliveira ou palmeira.
Consta que esta procissão terá surgido depois de um grupo de cristãos da Etéria ter feito uma peregrinação a Jerusalém e, no regresso, ter procedido, na sua região, da mesma forma que o havia feito nos lugares santos, lembrando os momentos da Semana Santa.
O costume foi-se alargando gradualmente a outros lugares e, no final da Idade Média, foi incorporado aos rituais da Semana Santa.

O Domingo de Ramos teve outros nomes, como, por exemplo, os nomes latinos de “Pascha Floridum”; “Pascha Florum” ou “Dies Floridus”, sendo que todos eles têm o mesmo significado: Páscoa das Flores ou, como é o caso do último, Dia das Flores. Isto porque, como ainda hoje acontece em algumas localidades, palmas e ramos de árvores enfeitados com flores são abençoados durante a Procissão dos Ramos.

Outro nome, usado na Idade Média foi “Dominica Hossana” por causa das antífonas (resposta, em geral cantada em canto gregoriano a um salmo ou a outra parte da liturgia) que eram cantadas durante a Bênção de Ramos e mesmo durante a procissão dos ramos. As antífonas tinham o refrão “Hossana ao filho de Davi”.

Chamava-se ainda de “Dies indulgentiae” pois neste dia, no tempo em que na Igreja havia a prática da penitência pública, eram anunciados os nomes dos pecadores públicos que seriam reconciliados com a Igreja na Páscoa.

O sentido da festa do Domingo de Ramos tratar tanto da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém, e depois recordar sua Paixão, é que essas duas datas estão intrinsecamente unidas. A Igreja recorda que o mesmo Cristo que foi aclamado como Rei pela multidão no Domingo, é crucificado sob o pedido da mesma multidão na Sexta. Assim, o Domingo de Ramos é um resumo dos acontecimentos da Semana Santa, e também sua solene abertura. (Inf. Wikipedia)

A seguir veja o vídeo que escolhi para este dia

domingo, 10 de abril de 2011

FUGA DO PARAÍSO

Há dois ou três anos, encontrando-me de férias em Espanha, ao folhear uma revista espanhola do hotel, li uma reportagem que achei extraordinária.


Ainda tentei comprar uma revista igual mas não consegui encontrar. Decidi então tomar apontamentos, o mais detalhadamente possível, e trouxe-os comigo. Esqueci por completo o assunto.
Há dias, ao mexer numas papeladas, encontrei-os. Procurei e descobri fotos na Net, para documentar, e compus a história. Partilho-a convosco.


Em 20 de Março de 1991 largava de uma base aérea cubana o comandante Orestes Lorenzo




num “caça MIG-23”, o avião mais moderno da Força Aérea Cubana.
A toda a velocidade e a baixa altitude atravessou, em menos de 10 minutos, os 150 quilómetros que separam Cuba dos Estados Unidos.

Como voava quase rente à água nem os radares cubanos nem os norte americanos se aperceberam da sua presença.

Orestes pode aterrar sem problemas na base aeronaval de Boca Chica, na Florida. Ali pediu asilo político e, depois de submetido a interrogatórios, recebeu o estatuto de refugiado político.

A deserção de Orestes Lorenzo foi uma bofetada no regime castrista. O comandante Lorenzo era um dos pilotos de elite da Força Aérea. Veterano da Guerra de Angola, tinha efectuado dois períodos de treinamento na União Soviética.
Foi durante o último destes períodos, já com a “perestroika” de Gorbachov em marcha, que Orestes começou a questionar o regime comunista e a sua vida em Cuba. Na União Soviética começavam a soprar os ventos da Liberdade.
No regresso começou a planear a sua deserção com a esperança de que, uma vez nos Estados Unidos, a sua mulher, Victória, e os seus dois filhos pudessem juntar-se a ele.
Depois da fuga no avião, e na qualidade de refugiado, pediu a saída da sua família da ilha, mas deparou-se com a recusa de Raul Castro, à data Comandante das Forças Armadas.
Castro de maneira nenhuma permitiria a saída de Cuba da família dum militar de elite que havia atraiçoado a confiança que nele tinham depositado, e havia posto a ridículo o regime.


Orestes recorreu à Comissão de Direitos Humanos da ONU, sem qualquer resultado. Coincidindo com a cimeira ibero-americana celebrada em Madrid em 1992, com a presença de Fidel Castro, começou um protesto às portas do Parque del Retiro.
A rainha Sofia




empenhou-se pessoalmente, junto de Fidel, para conseguir a saída de Victória e seus filhos de Cuba. Inclusivamente, o assunto foi a despacho a Mijaíl Gorbachov.
Tudo foi em vão. Raul Castro, por intermédio de seu ajudante pessoal, fez chegar a sua resposta a Victória:
- Diga ao seu marido que, se teve cojones para desviar um avião, que os tenha também para vir buscar-vos pessoalmente.
Orestes chegou a publicar uma “carta aberta” a Fidel Castro no "Wall Street Journal", na qual se propunha apresentar-se em tribunal em Cuba se ele permitisse que a sua mulher e os seus filhos viajassem para os Estados Unidos. Não obteve resposta.

Ante as escassas perspectivas das demarches internacionais, o ex militar cubano começou a entrar em desespero.
Decidiu então que, se não obtinha êxito a bem iria ele mesmo buscar a sua família a Cuba.
Conhecia os aviões russos, mas tinha que treinar-se nos modelos convencionais ocidentais.



Em pouco tempo conseguiu o brevet de piloto desportivo e, com 30.000 dólares emprestados por uma organização humanitária de exilados cubanos, comprou uma velha avioneta bimotor “Cessna 310” em bom estado.
Por intermédio de duas amigas mexicanas que foram a Cuba, fez chegar secretamente à sua família a data, o lugar e a hora exacta onde deviam esperá-lo para o resgate que tinha planeado.
O dia escolhido foi 19 de Dezembro às cinco da tarde.
Largou de um pequeno aeroclube nos arredores de Miami, advertindo que, se não regressasse no prazo de duas horas, o considerassem morto.
Voando a muito baixa altitude (2 metros sobre o oceano) para evitar os radares, a avioneta aproximou-se da ilha ao entardecer e dirigiu-se à estreita estrada em frente à praia El Mamey, muito perto de Varadero, a cerca de 150 quilómetros a Este de Havana.

Imediatamente a sua mulher e filhos, que esperavam na estrada, conforme combinado, escutaram o ronco do motor e viram o aparelho.

O que Lorenzo não tinha previsto, no seu minucioso plano, era que a estrada, àquela hora, estivesse com trânsito. O cenário não podia ser pior: no troço escolhido para a aterragem circulavam um carro, um tractor, um autocarro com turistas, e uma gigantesca pedra encontrava-se no meio da via.
Balançando as asas o piloto quase roçou o tecto do automóvel, tocou em terra e deteve-se a uns 8 metros do autocarro com turistas, petrificados nos seus assentos e com os olhos a ponto de lhes saírem das órbitas.

Quase dois anos depois da separação Lorenzo viu aparecer a sua família correndo em frente ao avião.

Na estrada, Alexandre, o menino mais novo, perdeu um sapato. Para evitar um acidente com as hélices e preparar a descolagem, Orestes inverteu a direcção do avião e abriu a portinhola da cabine. Tudo em menos de um minuto.
Orestes conseguiu descolar, mas dentro do avião o medo paralisava os seus ocupantes.

Victória não despegava os olhos do céu, temendo que aparecessem os caças cubanos. Rezava.
Os meninos estavam assustados, confusos, choravam.
Só quando a avioneta ultrapassou o paralelo 24, limite do espaço aéreo de Cuba, a tensão baixou.
Quase uma hora mais tarde a avioneta aterrava de volta à Florida.




O alvoroço mediático que causou a façanha de Orestes foi tremendo, já que, pela segunda vez, tinha ridicularizado o regime castrista.
Na primeira conferência de imprensa disse:
- Digam a Raul castro que lhe peguei na palavra e fui pessoalmente buscar a minha família.



Presentemente Orestes é um próspero empresário que dirige a sua própria empresa de construção em Miami, algo que em Cuba jamais poderia ter feito.

domingo, 3 de abril de 2011

SAUDOSA ÁFRICA DISTANTE



(Este texto foi publicado há três anos; é, portanto, uma reedição [com ligeiras alterações] )

FALAR PORTUGUÊS

NÓS É QUE OS ENSINÁMOS

Uns dias melhor, outros pior, o tempo vai-se passando, nesta cidade que poderia ser o paraíso.
Há até um simpático impala que diversas vezes vem visitar o meu jardim. Caminha calmamente. Através da janela aberta olha para dentro da sala. Em seguida examina o jardim. Terminada a inspecção retira-se tão tranquilamente como chegou.


(Foto minha - no meu jardim)

Contudo, temos sempre presente o que se passa lá para o norte, na chamada «zona de intervenção».
Mas, entre um e outro sobressalto, a vida continua, e todos temos deveres a cumprir.
Lá mais para o sul há empregadas domésticas, mulheres que vão trabalhar às casas dos “brancos”
Aqui, não. São homens que fazem esses serviços. A troco de um salário estabelecido e comida, às vezes também dormida, executam as tarefas domésticas que normalmente são atribuídas às mulheres: cozinham, lavam e engomam a roupa, limpam a casa.
São homens, adultos, muitas vezes casados, ou jovens que rondam os vinte anos.
Há casos em que se tem um adulto para cozinhar e tratar das roupas, e um mais jovem para limpar a casa.
Há ainda uns garotos, (normalmente rapazes, embora por vezes apareçam meninas), que muitas vezes nos batem à porta perguntando:
Senhora precisa miúdo?
São meninos pobres que não têm o que comer em suas casas, e bem cedo começam a lutar pela subsistência.
Dá-se-lhes comida, dormida e roupas (geralmente só têm a que trazem no corpo, e em muito mau estado), e, em troca, eles brincam com as nossas crianças, vigiando para que nada de mal lhes aconteça.


São crianças sombras de crianças. Só se vão deitar depois que os meninos vão para a cama, o que, aqui, acontece bastante cedo.
Todos falam português. Os “miúdos”, por vezes não sabem muito, mas é o bastante para se fazerem entender. E como a linguagem das crianças é universal, conseguem estabelecer longas conversas com as nossas crianças, nas suas brincadeiras.
Na minha casa, para além do miúdo, há um cozinheiro e um rapaz, o Albino, que trata da limpeza da casa e serve à mesa.
Não sei bem a idade de um e de outro. Não é nada fácil calcular. (Tratando-se de pessoas bem avançadas na idade, já de carapinha branca, torna-se ainda mais difícil. E se perguntamos a uma dessas pessoas quantos anos tem, a resposta é sempre: - Não sei, senhora. Tenho muitos!)
O Albino aparenta dezoito a vinte anos. É um rapaz já com prática de trabalho, que me foi recomendado por uma amiga.
Cumpridor dos seus deveres, pouco falador, vai desempenhando bem as suas funções.
Embora fale o indispensável de português para se fazer entender, por vezes não compreende muito bem o que se lhe diz.
Há dias estávamos a almoçar e eu pedi-lhe que fosse buscar água ao frigorífico, pois tinha-se esquecido de a pôr na mesa. Dirigiu-se à cozinha, ouvi-o abrir a porta do frigorífico, mas não aparecia com a água. Depois de esperar uns minutos, chamei-o. Apresentou-se sem nada nas mãos. Perguntei-lhe:
- Então???
Respondeu-me:
- Não encontro, senhora.
- Não encontras o quê???
- Não sabe, senhora…
Calculo que fosse bastante difícil encontrar uma coisa que ele próprio não sabia o que era!...

Cenas como esta acontecem de vez em quando. Nós ensinámos-lhes a nossa língua, mas não todas as palavras, com certeza. No entanto há certos vocábulos que toda a gente aprende muito facilmente.
Todos os dias, a meio da manhã, o Albino pede me para ir tratar das suas necessidades fisiológicas.
- Senhora, pode ir no mato?
- Podes sim, vai lá no mato.
E ele vai. E volta.
Um dia o Albino “foi no mato” mas, contra o costume, demorou-se muito tempo. Eu já pensava: encontrou algum conhecido e ficou à conversa. Quando finalmente apareceu, achei que deveria fazer-lhe um reparo:
- Meu Deus, Albino, demoraste tanto tempo para ir no mato!
Resposta pronta:
- Senhora, não pode ir ca**r aqui no pé de casa !
Engoli em seco, e dei a conversa por terminada.

Quando o Albino veio para minha casa eu não sabia praticamente nada a seu respeito, a não ser que era de confiança. E tanto me bastava. Cerca de um mês depois de estar ao meu serviço, um dia resolvi meter conversa com ele, e perguntei-lhe:
- Albino, tu és casado?
- Não, senhora, ainda sou menino.
- E porque não te casas?
- Porque as mulheres da cidade são todas p*t**.

Também desta vez engoli em seco, e encerrei o assunto.
E jurei a mim mesma não voltar a fazer perguntas indiscretas!

Eles apenas repetem as palavras que lhes ensinámos.