SEGREDOS –
CAPÍTULO XXI
“… Entretanto já trocara de
roupa e, pronta para se deitar, olhou enternecida, como todas as noites fazia,
para a foto dos seus dois filhos, bebés, que tinha sobre a cómoda.
Pensou no neto, no seu filho
Miguel, nos tempos idos de recém casada, e adormeceu. …”
SEGREDOS –
CAPÍTULO XXII
A noite foi
agitada. Dormiu mal e pouco, e custou-lhe levantar-se. Só pensava “é só mais
um bocadinho…” e ia retardando a hora de sair da cama.
O despertador
não parava de tocar. Só lhe apetecia atirá-lo contra a parede. Mas para o fazer
teria de movimentar o braço, e nem para isso sentia forças. “Não quero ir
trabalhar hoje”- pensou. “Apetece-me ficar em casa, ir para a cozinha fazer um
belo petisco, que não faço há tanto tempo, ouvir música, levar o Tejo a passear
– também não faço isso há tanto tempo! – apanhar o vento fresco da manhã no
rosto, sentir o sol a beijar-me a pele…”
“Mas porque é
que aquela imbecil, nos princípios do século passado, teve a ideia de reivindicar os direitos da
mulher, a igualdade… essas tretas todas que nos obrigam a sair da cama quando a
vontade é ficar aqui no quentinho? As nossas avós – as avós talvez não… mais as
bisavós… -é que tinham sorte! Quais direitos da Mulher quais quê? Passavam o
dia a bordar, a trocar receitas de cozinhados com as amigas, a
ler bons livros, tratando das flores, educando os filhos… enfim, umas fadas do
lar.
E as atenções
que recebiam dos homens? “Faça favor de passar, minha senhora” – diziam,
segurando a porta, ou então, afastando a
cadeira para elas se sentarem. Ofereciam flores e faziam serenatas à janela.
Que românticos,
aqueles tempos!... “
De repente deu
um salto na cama, olhou para o relógio e começou a barafustar. “Mas o que é
que se passa comigo? A pensar disparates a estas horas da manhã? É certo que
dormi muito mal de noite, mas isso não serve de desculpa para ficar na cama a
pensar na morte da bezerra! Ora esta! Estou a ficar velha, é o que é. Preciso
arranjar um namorado urgentemente, a ver se rejuvenesço…” – e sorriu à
ideia.
À medida que se
ia preparando para sair ia recuperando o habitual bom humor.
Estava a tomar
o iogurte magro com granola quando a empregada chegou, sinal de que começava a
estar atrasada. Depois de um cumprimento rápido saiu em passo acelerado, pois
detestava chegar atrasada.
À saída
encontrou no hall de entrada a sua amiga Carla, a vizinha da frente, que ia ao
centro comercial fazer umas compras. Seguiram juntas.
- Então, Carla,
está preparada para a festa do Carlos? – perguntou Nanda.
- A festa do
Carlos? Não sei a que se refere…
- O Carlos vai
dar uma festinha no próximo sábado, e convida sempre todos os vizinhos… A Carla
nunca lá foi?
- Não, nunca.
Mas não foi por falta de convite – respondeu Carla,
rapidamente. As duas últimas festas que ele deu e para as quais me convidou,
não pude ir porque, por azar, o meu marido teve de fazer serão. Como a Nanda
sabe ele trabalha muito, não só na empresa mas também porque dá uma ajudinha, a
nível informático, lá na Polícia. E agora que estão a informatizar tudo… não
tem mãos a medir.
- Bem, eu
espero que desta vez consiga ir… Mesmo que tenha de ir sozinha, é melhor que
nada. Os gémeos já estão crescidinhos, pode levá-los, e, se lhes der o sono,
pode pôr as cadeirinhas no quarto do Carlos. Tenho a certeza de que ele não se
importa. E a Carla aproveita para se distrair um pouco…
- É tentador…
Vou fazer os possíveis por ir.
Chegadas ao
centro comercial separam-se. Nanda segue para a Ourivesaria e Carla para as suas
compras. Estas excedem a lista que trazia daquilo que precisava, o que acontece
frequentemente. Vendo que não é fácil transportar, a pé, todos os sacos, acaba
por apanhar um táxi.
Ao entrar em casa encontra o vizinho do
segundo andar esquerdo, Carlos Manuel, que se apressa a ajudá-la com os sacos,
saudando-a com um largo sorriso:
- Boa tarde, doutora Carla. Como está a senhora e os seus meninos?
Carla responde-lhe também com um sorriso:
- Eu estou bem, obrigada. E os meninos, traquinas como sempre… E
você, bem-disposto, como é habitual…
- É verdade, doutora, é muito raro eu estar mal disposto. A vida
tem de ser levada assim, não podemos deixar-nos ir abaixo, nem ter pensamentos
negativos. Precisamos de ter muita energia positiva para dar apoio a quem tanto
precisa de nós.
- Essa maneira de pensar é muito boa, e o resultado está à vista –
o Carlos tem ocupações muito meritórias, exactamente por pôr em prática essa
linha de pensamento – comentou Carla, com um misto de admiração e respeito.
- Ora, doutora, eu não faço nada que não me tenham feito a mim,
noutras circunstâncias. Mas… deixemos isso de lado. Ainda bem que a encontrei,
pois assim evita-me o constrangimento de lhe ir bater à porta – e o seu rosto abriu-se num sorriso
luminoso.
- Não estou a ver por que isso possa ser constrangedor, mas parece
que assim, cara a cara, as coisas estão
facilitadas…
- É isso, doutora, é que eu queria convidá-la para a festinha que
vou dar no próximo sábado…
- Ah! A Nanda já me falou nisso, e a verdade é que fiquei cheia de
vontade de ir… O problema são os gémeos.
- Mas não seja por isso. Se lhes der o sono podemos pô-los no meu
quarto. Se quiser até pode pô-los na minha cama, que é muito larga, não correm
o risco de cair. Então está combinado, conto consigo! E acrescenta, despedindo-se:
- Bom, tenho de ir andando, que o trabalho espera-me. Gostei de a
ver, doutora.
- Eu também, Carlos. Tenha um bom resto de dia – e Carla entrou na sua casa, não se
esquecendo de agradecer a ajuda que o vizinho lhe prestara com os sacos das
compras.
Os dois dias que faltavam para sábado decorreram da forma
habitual.
Nesse dia, de manhã, Nanda bateu à porta de Carla.
- Bom dia, Carla. Desculpe mas, quando, há dias, falámos na festinha do Carlos,
esqueci-me de referir um pormenor que, com certeza, a minha amiga desconhece…
- Sim? Pois então diga, Nanda. Os gémeos tinham chegado à porta, com as
caritas lambuzadas do pequeno almoço, e olhavam para Nanda com toda a atenção. Já
viu isto? Aparecerem assim à porta com estas caras todas sujas? Não têm
vergonha, seus safadinhos? – repreendeu a mãe.
Nanda, fazendo-lhes uma festa nas cabecitas, respondeu:
- Com caras sujas ou com caras lavadas são sempre lindos! E acrescentou: Mas o motivo que me
trouxe cá, a estas horas da manhã, é um pequeno esclarecimento acerca da festa
do Carlos…
- Pois claro! Diga, diga, Nanda.
- Com certeza a amiga não sabe, mas, para estas festas, nós
costumamos contribuir com qualquer coisa para petiscar… doce ou salgado, tanto
faz. Bebidas é que não, pois dessa parte encarrega-se o Carlos, que tem sempre
bebidas alcoólicas e sem álcool.
- Agradeço-lhe imenso ter-me avisado. Com os gémeos em casa não me
é muito fácil cozinhar, mas vou ali ao Estrela comprar qualquer coisa…
- Pois, mas não esteja com a preocupação de levar coisa muito…
sofisticada… É uma festinha caseira, só com os vizinhos e, normalmente, duas
miúdas amigas do Carlos.
No ar reinava um agradável e
pouco usual cheiro a comida em todo o prédio, em que sobressaía o aroma
a limão e canela, que se sentia vir por debaixo da porta da casa da Nanda. Ela
levava sempre o seu arroz doce, uma especialidade que mais parecia um doce de
ovos.
Por volta das sete da tarde todos os vizinhos se encaminharam para
a casa do Carlos, onde já se encontravam
as duas amigas dele. Amélia foi das primeiras a chegar, logo seguida de Carla e
Nanda, que ajudou a levar os gémeos.
Uma música suave tornava o ambiente muito acolhedor. Dispostas as
comidas na mesa da cozinha, juntaram-se todos na sala.
Jorge e Rui estavam sentados em almofadas, no chão, ao lado um do
outro, mas tão discretos que ninguém diria que tinham um relacionamento e
viviam juntos há tantos anos.
A conversa decorria fluída, e todos participavam dando a sua
opinião. As amigas de Carlos é que se mantinham mais caladas, o que era natural
pois, sendo as mais novas do grupo, preferiam ouvir os mais velhos. Os gémeos
circulavam pela sala, calmamente, confraternizando especialmente com as duas
miúdas, Lara, de 17 anos, e Margarida, de 20. No meio da conversa ouve-se o
toque da campainha.
Carlos, com um rápido e cúmplice olhar para Nanda, foi abrir a
porta.
Como calculavam era António, o vizinho da frente, empunhando uma
caixa com um bolo.
Cumprimentou todos com um ligeiro aceno de cabeça e um sorridente.
“boa noite!”. Notava-se que se esmerara na roupa que vestia, um estilo ligeiro
mas elegante, e ostentava no rosto um sorriso que não lhe era muito usual.
Ao vê-lo, Amélia deu um salto na cadeira. Mas, recompondo-se
rapidamente, exclamou, olhando para Nanda:
- Acho que me esqueci de pôr o gelado no frigorífico! Quando
fôssemos comê-lo estava líquido - E dirigiu-se apressadamente para a cozinha,
tentando esconder o rubor que lhe coloria o rosto.
A festa decorreu animadamente. Depois de saborearem os petiscos na
cozinha, Carlos colocou música de dança, e alguns começaram a mostrar as suas
habilidades, enquanto outros preferiam continuar a conversar.
Amélia e António tinham decidido “dar uma trégua” e conversavam
civilizadamente, sentados lado a lado no sofá. Ambos sorriam um para o outro
com frequência, como pôde constatar Nanda, que os espiava pelo canto do olho.
A determinada altura Jorge e Rui pareciam estar a altercar em
voz baixa. Carlos, apercebendo-se, aproximou-se e perguntou:
- Está tudo bem?
- Bem, bem, não está – apressou-se a responder Jorge. O Rui está a
exagerar na bebida, mas, casmurro como é, não aceita que eu lhe chame a atenção.
Vê lá se tem jeito este disparate. Lembrou-se agora que é mais velho do que eu
e por isso não tenho o direito de lhe estar a pregar sermões. É o álcool a
falar…
- Não vale a pena zangarem-se por
tão pouco. Há tantos anos que vocês vivem juntos e nunca ninguém vos viu uma
zanga… Não é agora que vão começar, com certeza. Não acredito que escolham a
minha festa para o fazerem pela primeira vez…
Tudo isto se passava em tom tão
baixo que, com o som da música, ninguém se tinha apercebido.
- De maneira nenhuma, Carlos.
Desculpa. O Rui tem razão. Tu sabes que eu não sou de beber demais, mas o dia
correu-me tão mal lá no bar que me descontrolei um pouco – Jorge falava
em tom pesaroso.
_ Sem problema –
respondeu Carlos. Respirem fundo que tudo passa… - colocou a mão no ombro
de Jorge, num gesto amistoso.
- Se não te importas… vamos andando – acrescentou
Rui. O Jorge teve um dia muito cansativo e precisa de descansar.
- Tudo bem! Vemo-nos amanhã – nem que
seja só na escada – riu o anfitrião.
- Levantaram-se das almofadas,
fizeram um aceno de despedida a todos os presentes e, com um afável “até amanhã”
retiraram-se e desceram as escadas até ao 1º. Andar esquerdo, onde moram.
Rui meteu a chave na fechadura mas
teve alguma dificuldade em fazê-la funcionar. Resmungou:
- Há muito tempo que esta fechadura devia ter
sido mudada. Parece o portão de uma quinta abandonada. Range por tudo quanto é
sítio.
- Não te ponhas p’r’aí com indirectas. A casa é tanto minha como
tua. Tens a mania que eu é que tenho de tratar de tudo – defendeu-se Jorge.
- Não é nada disso, não sejas parvo. Mas a verdade é que tu passas
muito mais tempo em casa do que eu. “Tás” te a esquecer que tenho de estar às
oito no salão? E olha que, quando lá chego, muitas vezes já tenho senhoras à
minha espera, pois só gostam que seja eu a penteá-las. E não te esqueças que só
saio às sete da tarde… – lamuriou Rui.
- E tu “tás” te a esquecer que eu é que faço tudo cá em casa, é ou
não é? –
Jorge começava a ficar amuado.
- Ouve lá, e se deixássemos os dois de ser parvos? - Rui aproxima-se de Jorge e
abraça-o. Lembras-te que eu te prometi uma surpresa para hoje?
- Lembro, sim, não me esqueci, mas “tava” a ver que já não havia
nada p’ra ninguém – respondeu Jorge, em tom magoado.
- E alguma vez eu faltei às minhas promessas? Senta-te aí no sofá,
põe-te à vontade, relaxa… e aguarda-me – disse Rui, com ar misterioso.
Foi à cozinha, abriu o frigorífico, tirou uma caixa de bombons e
uma garrafa de champanhe. Colocou tudo na mesinha ao lado do sofá e foi ao
louceiro buscar dois flutes.
- Sim senhor! – comentou Jorge. Isto promete…
- Ainda não viste nada – e dizendo isto Rui dirigiu-se ao quarto.
Passados alguns minutos entreabriu a porta, murmurando:
- Fecha os olhos e não os abras enquanto eu não mandar – e entrando na sala pôs o CD a tocar
baixinho. Colocou-se então em frente do companheiro:
- Já podes abrir os olhos e dizer o que achas…
Jorge obedeceu, mas, mudo de espanto, encantado com a visão que
lhe parecia um sonho, não conseguiu pronunciar uma palavra.
Sentiu-se como se estivesse vivendo uma história das “Mil e uma
noites”, com uma sedutora odalisca movendo-se lenta e sensualmente à sua
frente, causando-lhe sensações inconfessáveis...
Levantou-se a custo e abraçando Rui, emocionado, puxou-o por um
braço em direcção ao quarto, murmurando-lhe ao ouvido:
- Vamos comemorar!
Maria Caiano Azevedo