Como não tive oportunidade de ouvir
as confidências da Nanda (e que, como boa coscuvilheira que sou, logo venho
partilhar convosco…) fui procurar no meu baú e descobri um conto que escrevi há
pouco tempo, e de que gosto particularmente.
Para substituir as ditas
confidências (ou inconfidências, melhor dizendo) submeto-o à vossa apreciação.
Espero não vos defraudar com a
troca.
O AMOR É
ETERNO
Marta
caminhava lentamente em direcção à sala. Parou à entrada, olhando tristemente
para o sofá de dois lugares, agora vazio. Quantas horas felizes ali passara, ao
lado do grande amor da sua vida, que a acompanhara por mais de quarenta anos…
Não pôde
deixar de lembrar o que acontecia neste dia, o do seu aniversário. Quando ali
chegava já encontrava, sobre a sua cadeira, um lindo ramo de rosas vermelhas.
Este ritual cumpriu-se, ano após ano, ao longo da sua vida de casada. Luís, o
marido, estava escondido atrás da porta, mostrando-se apenas quando ela pegava
nas flores. Pé ante pé aproximava-se por detrás, enlaçando-a pela cintura. Ela
voltava-se e, com um terno beijo, agradecia-lhe aquele gesto de carinho. Só
depois de as rosas terem sido depositada s numa linda jarra de cristal,
enchendo a sala com o seu intenso perfume, é que Luís lhe entregava a prenda de
anos. E o cuidado com que ele a escolhia! Sabia adivinhar-lhe os desejos, que
ela nunca revelava; ele parecia ter um sexto sentido que lhe indicava as coisas
que ela mais desejava.
Este era o
seu primeiro aniversário em que o lugar dele no sofá estava vazio. Partira há
cinco meses, deixando um vazio impossível de preencher. Sentia uma saudade
enorme dos serões que ali haviam passado, de mãos dadas, conversando sobre os
acontecimentos do dia, ouvindo música ou vendo televisão.
Cerca das dez
horas cumpria-se o ritual do chá. Ela levantava-se e, sem nada dizer,
dirigia-se à cozinha. Pouco depois sentia-se no ar um agradável aroma a
hortelã, ou erva príncipe, ou limão… por vezes camomila.
Voltava
da cozinha com um tabuleiro onde colocara uma pequena taça com saborosos
biscoitos de canela, ou de manteiga… às vezes de amêndoa… que fizera à tarde, o bule do chá e duas
chávenas de porcelana. A sala ficava impregnada do odor que saía pelo bico do
bule.
Invariavelmente
Luís comentava, fosse qual fosse o chá que ela tivesse feito:
-
Como foi que adivinhaste que era exactamente esse o chá que me estava a
apetecer hoje?
Ela
sorria e, invariavelmente também, respondia, interiormente feliz pela subtileza
com que ele sabia agradecer:
-
Tu sabes que eu tenho um dedo que adivinha…
E
sorriam ambos, felizes.
Não
tiveram filhos. Não sabiam se a dificuldade dela em engravidar se devia a algum
problema seu ou dele. Nunca o quiseram saber. Deixavam o tempo passar, sempre
com a esperança de que um dia acontecesse serem surpreendidos com a vinda de um
bebé. Tal não aconteceu. E à medida que o tempo foi passando aceitaram esse
facto sem amargura ou desconforto. Viviam um para o outro; ele trabalhando num
escritório de advocacia, ela cuidando do lar e do pequeno jardim em frente à
casa onde moravam.
Tinham
amigos com quem conviviam sempre que se proporcionava, embora gostassem muito
de estar os dois sozinhos. Tinham-se dedicado inteiramente um ao outro…
Interrompendo
os seus pensamentos o toque da campainha da porta fê-la estremecer.
Levemente
contrariada dirigiu-se ao hall de entrada. À porta encontravam-se dois
estafetas. Um deles empunhava uma caixa de cartão rectangular, com cerca de 40
centímetros de lado e furos na parte superior; o outro segurava cuidadosamente
um ramo de perfumadas rosas vermelhas.
Marta sentiu
um aperto no coração. Não, não era possível As rosas vermelhas sempre lhe
tinham sido oferecidas pelo marido, ao longo dos seus 43 anos de casada.
Fazendo um
esforço enorme para disfarçar a sua consternação, disse:
- Com certeza
os senhores enganaram-se na morada… Eu não encomendei nada, e não existe
qualquer outra pessoa cá em casa…
- Não, não há
engano, é mesmo esta a direcção – responderam, quase em uníssono, os dois
estafetas.
- Desculpem,
mas isto só pode ser uma brincadeira de mau gosto… - insistiu ela.
- Não, minha
senhora, não é nenhuma brincadeira – respondeu o rapaz que empunhava as rosas,
estendendo-lhas. E continuou:
- Estas rosas
foram encomendadas por um senhor há seis meses, com a indicação expressa de que
deveriam ser entregues neste dia, sem falta. Repare que até tem um cartãozinho
escrito, que o senhor lá deixou, recomendando que o juntássemos às flores…
Marta,
dominando a sua enorme comoção, segurou as flores e abriu o pequeno envelope,
retirando dele um cartão onde, reconhecendo a letra de Luís, pôde ler:
- Com o meu
eterno Amor.
Dificilmente
conseguia controlar-se. Foi a vez do outro estafeta se lhe dirigir:
- Connosco
passou-se exactamente o mesmo, minha senhora. Há seis meses foi à nossa loja um
senhor fazer esta encomenda, com a mesma recomendação: “Que fosse entregue
hoje, sem falta”. E também deixou um cartão…
Marta sentia
que o coração ia explodir-lhe no peito. O que poderia estar dentro daquela
caixa? Começou por ler o cartão, que dizia:
- Com todo o
meu Amor, para te fazer companhia nas longas noites de Inverno.
Tremendo, foi
colocar as rosas na sala, voltando para receber a caixa. Segurando-a com
cuidado percebeu que, no seu interior, alguma coisa se mexia. Abriu-a sem
demora. Lá de dentro saltou uma pequena bola de pêlo branco que imediatamente
correu para a sala, indo sentar-se no sofá, no lugar que sempre fora ocupado
pelo marido.
Marta ficou
paralisada. Mesmo encontrando-se do outro lado da vida, Luís adivinhara o que
ela teria desejado que ele lhe oferecesse naquele aniversário – um cãozinho!
Dirigindo-se
ao sofá sentou-se ao lado da prenda acabada de receber. Fez-lhe uma festinha na
cabeça. O pequeno animal agradeceu lambendo-lhe a mão.
Marta sentiu
o coração apaziguado como há muito tempo não acreditava ser possível…
E
dirigindo-se ao seu novo amigo, murmurou, pensativamente:
- Como
havemos de te chamar? Talvez… Luisinho… Gostas?
Maria Caiano
Azevedo
25/03/20019