MATILDE
OU
DAS MATERIALIDADES DA LITERATURA
Entrou no escritório, fechando a porta atrás de
si.
Dirigiu-se à secretária, estrategicamente colocada
junto a uma das duas janelas, sentou-se e, com o olhar, varreu todo o espaço.
Deu um leve suspiro, de satisfação. Sentia-se ali muito bem.
Romualdo Benevides não era um escritor famoso, mas
tinha uma vasta obra publicada, e era reconhecido em todos os meios literários.
Recebera alguns prémios, que guardava numa das estantes do escritório. Além dos
romances escrevia também muitos artigos para vários jornais com quem
colaborava. Tinha o tempo bastante preenchido.
Adquirira o hábito de ir imprimindo os seus escritos
e, nas folhas , fazer as correcções que entendia. Não gostava de escrever em
papel - sentia bastante dificuldade em que as ideias afluíssem ao seu
pensamento. Fazia-o no teclado do computador e, à medida que ia
escrevendo, ia revendo. As últimas páginas escritas num dia deixava-as sempre
para ver no dia seguinte. Era, de resto, a primeira coisa que fazia quando, de
manhã, se sentava à secretária.
Naquele dia sentia-se particularmente bem. Foi, pois,
com toda a boa disposição, que pegou nas folhas escritas, endireitando-as com
calma; e, recostando-se na cadeira, preparava-se para começar a ler quando
ouviu uma voz muito suave, dizer:
- Olá, Romualdo. Como te sentes hoje?
Admirado, olhou para a porta, na expectativa de
ver quem tinha entrado. Não estava lá ninguém, e aquela mantinha-se fechada.
Intrigado, olhou em todas as direcções, mas não havia ninguém no aposento além
dele mesmo.
- Certamente foi alguém a falar lá fora e eu fiz
confusão… - pensou.
De novo, a voz:
- Então? Não queres falar comigo? Estás aborrecido?
Pareceu-me que estavas muito bem disposto…
Havia qualquer coisa naquela voz tão suave que lhe
parecia familiar.
Assombrado, atreveu-se a perguntar:
- Mas… quem és tu?
- Quem sou eu? Então não me reconheces? Tu, que me
deste a vida, não sabes quem eu sou?
Completamente aturdido olhou de novo em redor,
confirmando que se encontrava sozinho.
- Uma filha? – pensou. Se eu é que lhe dei vida… só
pode ser minha filha. Mas eu nunca soube que tinha filhos…
Romualdo Benevides era um homem de meia estatura, boa
aparência, que rondava os cinquenta anos. Solteirão inveterado, eram inúmeros os
namoricos que lhe atribuíam – geralmente com fundamento. Mas nunca quisera
nenhum compromisso sério.
Dedicado ao seu trabalho, muito organizado em tudo o
que fazia, vivia sozinho na velha casa que fora de seus pais, há alguns anos
falecidos, e onde ele próprio nascera, fora criado, e sempre vivera, excepto
nos anos que passara em Coimbra, onde fizera o doutoramento em Materialidades
da Literatura.
Apesar de ser uma pessoa com uma mente muito sã e
aberta, naquele momento sentia-se alucinado. Só assim se justificava estar a
ouvir aquela voz – que, insistia, lhe era vagamente familiar – e, para cúmulo,
responder-lhe, estabelecendo assim comunicação com “o invisível”.
Decidido a ver até onde ia a sua loucura, murmurou:
- Se eu te dei vida, significa que sou teu pai…
- Pode-se dizer que sim, em certo sentido.
Resolveu ir mais longe. Tinha de esclarecer aquele
mistério, desse por onde desse.
- Mas onde te meteste, que não te vejo?
- Estou nas tuas mãos. Não me sentes?
A medo, olhou para as folhas de papel que escrevera no
dia anterior. Tremiam. As folhas e as mãos
- Mas eu enlouqueci! – pensou, quando ouviu baterem à
porta do escritório. Depois de ter dito – Entre! – viu assomar a cabeça da
criada, Ludovina.
- Desculpe, senhor Doutor, era só para avisar que a
senhora dona Elisa já chegou.
- Tão cedo? – admirou-se. E só quando a criada
lhe lembrou que já passava do meio dia, o que ele confirmou no relógio de
pêndulo, é que tomou consciência de que passara toda a manhã em “devaneios”,
não corrigira o trabalho do dia anterior, e muito menos escrevera uma única
linha no seu romance.
Colocou as folhas em cima da secretária, com todo o
cuidado, como se de um ser vivo se tratasse. Levantando-se quase com reverência,
dirigiu-se à porta e dali à sala, onde dona Elisa o aguardava.
- Bom dia, minha Tia! Peço imensa desculpa de não
estar aqui a aguardá-la, como é habitual, mas distraí-me completamente e nem
dei pelo tempo passar – dizendo isto dava um caloroso abraço à senhora,
elegantemente vestida, que o aguardava.
- Meu querido sobrinho – disse, retribuindo o abraço -
não precisas de te desculpar. De resto, foram apenas uns minutinhos. A verdade
é que nunca te vi tão entusiasmado com um romance como com este que agora estás
escrevendo.
- Tem toda a razão, Tia. Este novo livro está a
prender-me como nenhum outro.
Entrando na sala a criada interrompeu a conversa:
- Posso servir, senhor doutor?
- Claro que sim, Ludovina. Sirva, por favor.
Terminado o almoço passaram para a saleta onde
Ludovina lhes serviu o café e um licor. Deram então início à habitual conversa.
Os laços que os uniam eram muito fortes. Filho único de um irmão de dona Elisa,
quando este falecera juntamente com a mulher num acidente de automóvel, tia e
sobrinho ampararam-se mutuamente, conseguindo assim ultrapassar a
profunda dor da perda.
Ambos apreciavam muito estas conversas de
terça-feira. Levantando-se para se retirar, dona Elisa recomentou, pela
milionésima vez:
- Romualdo, meu querido, vou mais uma vez insistir –
tens de arranjar uma secretária. Tu trabalhas demais, sempre enfiado naquele
escritório. Precisas de uma pessoa que te ajude.
- Obrigado por me lembrar, minha querida Tia. Mas
tenho uma surpresa para si: já pus um anúncio e, dentro de muito pouco tempo,
devo começar a entrevistar candidatas.
Logo que a tia Elisa se retirou, Romualdo entrou no
escritório, dirigindo-se de imediato à secretária. Olhou, meio receoso, para as
folhas que de manhã não corrigira e que se encontravam, muito direitas, à
esquerda do teclado.
Tinha de continuar a trabalhar. Pressentia que aquele
era “o romance da sua vida”. A história estava toda na sua cabeça, era só
passá-la para o papel. Mas não podia ser de qualquer maneira, não. Os
personagens exigiam-lhe respeito. E como eram exigentes! Parecia que os ouvia
reclamar cada vez que aligeirava o tom.
Primeiro como que a medo, depois com ar decidido,
segurou as folhas, preparando-se para corrigir qualquer falha que pudesse
detectar. Nada aconteceu. Começou a ler, fazendo pequenas correcções. Uma a uma
percorreu todas as folhas, sem qualquer incidente.
Pensou:
- Esperavas que acontecesse o quê? Decididamente, de
manhã estavas com alucinações. Alguma coisa que comeste ao pequeno almoço….
Tens de falar com a Ludovina e perguntar-lhe quais os temperos que pôs nos ovos
mexidos. Pensando bem… tenho a impressão de que o sabor não era o habitual.
Alguma erva que comprou na feira provocou-me aquele estado de demência…
Pondo as folhas de parte, começou a escrever. As
palavras surgiam escritas antes que ele tivesse tempo de teclar, a uma
velocidade vertiginosa. Mal pensava num vocábulo e ele aparecia logo escrito.
Quase não conseguia pensar.
Aturdido, parou. As teclas estacaram, de repente.
- Mas o que é isto? O que é que me está a acontecer?
Será que eu estou a sonhar? Ah! A Ludovina, hoje, fez de novo ovos mexidos para
o pequeno almoço! Ou foi ontem? Mas hoje eu já comi, tenho a certeza. Hoje é
hoje, não é ontem. E eram ovos. Não estou a sonhar.
Começou a sentir-se assustado.
– Será melhor falar com um médico? Mas qual? O
indicado é um psiquiatra. Mas eu não estou maluco! Tem de haver uma explicação
para tudo isto!
Levantou-se, foi até à janela, abriu-a, deixando
entrar o ar fresco. Respirou fundo.
- Eu ando é muito stressado com este livro. Preciso
acalmar-me e, de certeza, estas fantasias desaparecem.
Fechou a janela e voltou para a secretária. Viu que já
tinha bastantes páginas escritas e imprimiu-as. Endireitou-as e recostou-se na
cadeira para as corrigir.
Sentia-se receoso e, ao mesmo tempo, expectante. Uma
folha, duas folhas, e à terceira, de novo ouviu a voz. Não se assustou, pelo
contrário, era como se já soubesse que “a voz” iria fazer-se ouvir.
- Olá! Boa tarde – disse
ela, alegremente. Já estava a sentir a tua falta. Foste-te embora sem sequer te
despedires – acrescentou em tom lastimoso.
- Boa tarde – respondeu Romualdo, quase que
involuntariamente. Sentia que uma força qualquer o impelia a estabelecer
ligação com aquela voz tão suave, que continuava a parecer-lhe familiar. –
Tenho de te fazer uma pergunta – continuou.
- Podes perguntar tudo o que quiseres, mas o mais
certo é saberes as respostas às tuas perguntas – respondeu com um risinho.
- O que eu quero saber é quem és tu, como te chamas….
Tu começaste por me chamar Romualdo, mas eu não sei o teu nome…
- Como assim? Eu sou a Matilde! Foste tu que me
criaste e me baptizaste.
- Matilde? A heroína do meu livro? Bem me parecia que
reconhecia a tua voz…
- Caro que tinhas de reconhecer, foste tu que ma
deste… Mas sabes? Eu resolvi falar contigo porque não estou a gostar muito do
papel que me estás a fazer representar. As minhas atitudes anteriores eram
muito mais sensatas. Agora estás a querer que eu seja uma cabeça de vento?
- Não é bem assim… só estou a pôr-te um pouco mais
moderna. As meninas muito bem comportadas, como tu eras, já estão fora de moda…
- Pois deixa-me que te diga: se insistires nesse
caminho… eu fujo, e nunca mais me vês!
Romualdo sobressaltou-se.
- Como poderei continuar e terminar o meu romance se a
personagem principal desaparece?
Olhou ansioso para a folha com quem estivera falando,
que se mantinha estática.
- Ainda estás aí, Matilde? – perguntou, a medo.
Não obteve qualquer resposta. A folha, que enquanto
falavam se agitava levemente, mantinha-se firme, sem dar qualquer sinal.
O coração disparara-lhe no peito, acelerado.
- Não me digam que ela se foi mesmo embora! – pensou,
angustiado. Não, isso não pode acontecer. Como vou continuar a minha escrita se
ela desaparecer? O meu romance já vai muito adiantado para eu agora estar a
criar uma nova personagem . - Matilde! Por favor, não desapareças!
E olhava para a folha, ansioso, esperando qualquer
reacção. Mas tal não aconteceu. Ela manteve-se inerte.
Sem saber o que fazer, continuou a virar as páginas,
dando-lhes uma rápida vista de olhos, até que houve uma que o fez parar e olhar
com mais atenção. Aí estava de novo Matilde, agora conversando com um vizinho
que pretendia conquistar. Leu e releu, atentamente, até que a folha começou a
agitar-se ligeiramente.
- Matilde, estás aí, não estás? Eu sei que sim! Por
favor, fala comigo!
Desta vez a voz não se fez rogada.
- Estou aqui, sim, e já viste que ridícula? Toda
dengosa, fazendo olhinhos para o vizinho, que nem sequer me interessa, a não
ser para fazer ciúmes ao meu noivo…. Achas isso bonito? Eu não era assim. Estás
a transformar-me numa depravada. Não gosto da nova Matilde em que me estás a
tornar.
- Desculpa, não pensei que te desagradasse tanto –
respondeu ele, em tom pesaroso. Eu volto a pôr-te como tu eras, prometo. Só
preciso que me digas que não te vais embora.
Rapidamente rasgou as folhas impressas e, num
frenesim, atacou as teclas refazendo completamente a história, na parte que
dizia respeito à heroína.
Depois de imprimir a nova versão, pôs-se a olhar para
as letras. O que viu agradou-lhe.
Desta vez não foi preciso chamar por Matilde pois ela
de imediato se fez ouvir:
- Então, não achas que assim está muito melhor?
- Sim, mas o que interessa é que te agrade.
- Pois, mas para eu ficar completamente feliz… gostava
que me levasses contigo quando fores fazer a tua corrida, logo à tarde.
Ele deu uma gargalhada.
- E tu achas que consegues acompanhar a minha
pedalada? Duvido…
- Põe-me à prova. Até logo.
E não emitiu nem mais um som.
À tarde terminou o trabalho mais cedo, de tal modo
estava ansioso por levar a sua heroína a passear. Meteu as folhas onde figurava
o nome dela num dossier e saiu.
Caminhava devagar pois não queria cansá-la. Quando
chegaram ao jardim, Matilde, que até ali se mantivera em silêncio, exclamou,
extasiada:
- Que bonito! Nunca me falaste nestas coisas tão
lindas, com tantas cores! E como são perfumadas!
- São flores. De facto, nunca te falei nelas porque
não veio a propósito. O meu romance não é nenhum livro de botânica – riu-se,
alto, feliz.
Duas senhoras que passavam olharam para ele de lado,
meio desconfiadas. Caiu em si.
- As pessoas vão pensar que sou doido, a falar
sozinho. Isto não pode ser assim. Não vou andar aqui a passear sem poder
comunicar com ela. Já sei. Vou experimentar só pensar. Afinal, deve ser o que
ela faz comigo, porque parece que as outras pessoas não a ouvem.
As horas voaram. Conversaram de tudo o que a
espantava. Ele, pacientemente, respondia a todas as suas perguntas. Começava a
anoitecer quando ele lhe disse que tinham de regressar – eram quase horas de
jantar.
Ludovina já o estava esperando.
- O senhor doutor distraiu-se com as horas – comentou
ela, com um sorriso.
- Pois foi, está um tempo tão bonito que apetece
caminhar horas a fio! Mas pode servir o jantar. Desculpe tê-la atrasado. Vou só
lavar as mãos.
Foi rapidamente ao escritório pousar o dossier,
pensando:
- Até amanhã. Dorme bem.
E sorriu feliz, convicto de que ela o ouvira.
Dormiu um sono tranquilo e acordou bem disposto. Não
tardou muito a entrar no escritório, mais cedo do que habitualmente.
- Vou já agarrar-me ao trabalho. Ontem acabei por
adiantar muito pouco a escrita.
Sentou-se ao computador e começou a teclar a toda a
velocidade. Sentia que o dia lhe ia correr muito bem; conseguiria adiantar
bastante o seu romance. E, sem se aperceber, passaram duas horas. No escritório
reinaria um silêncio absoluto não fosse o som do teclado deslizando sob os seus
dedos. Estava completamente imerso no que escrevia.
Interrompeu os seus pensamentos um leve toque na
porta, que se entreabriu, deixando ver a cabeça da Ludovina.
- Desculpe, senhor doutor, mas está aqui uma menina
que vem para a entrevista do emprego…
- Ah, sim, sim, está na hora.
A jovem manteve-se à entrada da porta, nitidamente à
espera de ser convidada a entrar. Romualdo, levantando-se, olhou na sua
direcção e ficou estupefacto. Sem conseguir pronunciar uma palavra, olhava-a,
apenas. A jovem era uma cópia perfeita da heroína do seu romance. Com os
longos cabelos loiros caídos pelas costas, os olhos azuis esplendorosos, e
um meio sorriso que lhe provocava uma covinha na bochecha esquerda… parecia
saída do romance do escritor.
Manteve-se imóvel por uns momentos. Vendo que Romualdo
não tinha qualquer reacção, atreveu-se a perguntar:
- Posso entrar?
A voz! Era exactamente a mesma voz! Mas como era
possível? Forçando-se a reagir, respondeu :
- Claro! Entre, entre! Desculpe, eu estava
completamente alheado. Sente-se aqui à minha frente, por favor. Vou começar por
preencher esta pequena ficha com alguns dados seus. Diga-me o seu nome…
- Matilde, senhor.
Romualdo Benevides nunca publicou este seu romance.
Mandou fazer apenas um exemplar, encadernado em pele, que guardava,
religiosamente fechado à chave, numa das estantes do seu escritório. Às vezes
retirava-o do seu lugar e segurava-o entre as mãos como se de uma relíquia se
tratasse, afagando-o suavemente, com um sorriso misterioso.
FIM
Maria
Caiano Azevedo