- Gosto tanto de ti! Não. Não me afastes, eu sei que tu
também gostas de mim. Deixa-me fazer-te feliz…”
SEGREDOS
– CAPÍTULO VIII
Nanda
deixara-se de pruridos e não escondia o esforço enorme que fazia para o afastar
de si. Aquela respiração ofegante junto ao seu rosto era uma verdadeira
tortura. Só o horror que sentia lhe dava ainda forças para continuar a lutar.
A sua cabeça
estava num torvelinho, recusando aceitar o que lhe estava a acontecer.
Sentindo as
forças a fraquejar tentou convencê-lo a parar dizendo, arfante, com a voz
entrecortada:
- Se não me larga já, vou contar tudo à Bela.
- Não, tu não vais fazer isso porque tu gostas muito
dela. E de mim também gostas, eu sei muito bem… Porque tentas resistir a uma
coisa que pode ser tão boa para nós?
O som da
chave dando volta à fechadura da porta salvou Nanda daquela situação que
começava a tornar-se insustentável.
O homem
largou-a imediatamente e desapareceu no corredor. Nanda deixou-se cair no sofá
com a cabeça entre os joelhos. Tremia dos pés à cabeça.
A criada, que
acabara de entrar com uns sacos de compras nas mãos, olhou para ela com espanto
e preocupação.
- A menina não se sente bem? Está tão abatida…
Nanda
levantou a cabeça, respondendo:
- Não me sinto nada bem, não. Estou muito nauseada…
Reparando
mais atentamente, a criada comentou:
- Credo, menina, está tão pálida! Parece um defunto…
Vou-lhe fazer um chazinho, a ver se melhora, enquanto espera pela menina
Belinha.
- Obrigada, não é preciso. Eu vou para casa deitar-me um
bocado. Comi qualquer coisa que me fez mal, com certeza. Por favor avise a
Bela… Eu depois telefono-lhe.
E fazendo um
último apelo às suas fracas forças, voou em direcção à porta. Na rua
encostou-se à parede e não conseguiu conter os vómitos.
Fazendo um
esforço enorme para se acalmar dirigiu-se rapidamente para sua casa. Sabia que
àquela hora não encontraria lá ninguém, e o que mais desejava naquele momento
era ficar sozinha. Atirou-se para cima da cama e aí deixou que as lágrimas lhe
inundassem o rosto ao mesmo tempo que soluçava convulsivamente. Não se
apercebeu de quantas horas passaram. Deixou-se vencer pelo cansaço e adormeceu.
Anoitecia quando a mãe, que se dedicava ao voluntariado visitando pessoas que
viviam sozinhas, chegou a casa. Por qualquer motivo inexplicável dirigiu-se ao
quarto da filha, encontrando-a estendida sobre a cama. Como Nanda não respondeu
ao seu chamamento, aproximou-se, preocupada, pondo-lhe a mão, suavemente, no
rosto, para a acordar. Sentiu que a sua menina estava a arder em febre. Imediatamente
fez dois telefonemas – para o marido e para o médico amigo, a quem recorria
sempre em caso de aflição. Poucos minutos depois chegou o pai, numa ânsia
enorme, pois a sua mulher não entrara em pormenores. Sentando-se na cama da
filha, aninhou-a de encontro a si, como se fora um bebé. Tal gesto foi o
bastante para que Nanda retomasse o choro, agora bem mansinho, deixando as
lágrimas correrem-lhe pelo rosto, em silêncio. A mãe entrou no quarto
acompanhada do médico que imediatamente começou a observá-la, ignorando as suas
lágrimas, atento ao seu estado físico. Para além do pulso acelerado nada mais
notou. Receitou antipirético e calmante, e não a questionou sobre o motivo do
choro. Na sala aconselhou a mãe a não insistir muito no sentido de saber o
motivo do desgosto.
- É preciso
dar-lhe espaço e tempo para se recompor do que quer que tenha acontecido. Penso
que esta febre se deve mais ao seu estado emocional do que a qualquer problema
físico. Vejamos como ela se sente amanhã.
Nos dias que
se seguiram Nanda não saiu do quarto. A febre baixou mas continuava muito
deprimida, chorando frequentemente. Não conseguia abstrair-se do que lhe tinha
acontecido. Dava voltas e voltas à cabeça tentando encontrar uma justificação
para a atitude daquele homem que ela tanto estimava, o pai da sua melhor amiga.
Considerava-o quase como um segundo pai; sentia por ele uma enorme ternura pois
que o conhecia desde que era criança e andava na escola primária. Com seis anos
apenas, coleguinha de Bela, que se tornara a sua melhor amiga, andavam sempre
juntas, ora na casa de uma ora na casa da outra.
Sempre
embrenhada nestes pensamentos quase não comia, apesar de a Mãe lhe fazer os
petiscos de que ela mais gostava. Passava todo o tempo no quarto, de onde
apenas saía para ir tomar banho, o que fazia duas e três vezes por dia. Sentia
uma necessidade premente de se lavar, como se quisesse, assim, libertar-se do
cheiro do homem que a atacara, e que a perseguia o tempo todo.
Bela
telefonava várias vezes ao dia, preocupadíssima. Como Nanda se recusava a falar
fosse com quem fosse, D. Lucinda, sua mãe, inventou uma doença contagiosa que
proibia visitas. Bela teve que se conformar e não “voar” para junto da sua
amiga.
O médico, que
passava lá em casa todos os dias, aventurou…
- Eu não
encontro nenhum mal físico na Nanda. Toda esta tristeza não será motivada por
alguma zanga com o namorado?
- A minha
filha não tem namorado. É muito nova para isso – respondeu D. Lucinda com mal
disfarçada aspereza.
- Os jovens
têm os seus segredos que por vezes não partilham nem com amigos, e muito
menos com os pais… - insistiu o médico.
- A minha
filha não é assim – afirmou D. Lucinda, peremptória.
- Desculpe,
mas eu não consigo entender o que se passa… Nem vejo qualquer vantagem em eu
vir cá todos os dias… Ela está medicada com antidepressivo, vitaminas…
suplementos alimentares. Para além disto não vejo mais o que se possa fazer, a
não ser esperar que o tempo cure o que quer que a aflige… Só me resta
aconselhar o acompanhamento psicológico…
- Muito
obrigada, doutor, mas a minha filha é muito sã de espírito. O acompanhamento dos
Pais vai ser suficiente para ela se recompor – respondeu D. Lucinda, em tom que
não admitia réplica...]
***
- Nanda, Nanda! Que se passa? – ouviu, ao
longe, a voz de Bela.
Nanda soltou
um profundo suspiro.
- Desculpa, minha querida, distraí-me
completamente…
- Pregaste-me um susto enorme. Parecia que
estavas catatónica… Pálida, com o olhar ausente, sem pestanejar… certamente nem
me ouvias…
- Desculpa, mais uma vez. De facto não estava a ouvir-te,
mas apenas porque o meu pensamento estava longe.
- Não estava longe… estava a léguas de distância! Por
favor, não voltes a ausentar-te assim… Não imaginas como fiquei assustada… -
na voz de Bela ainda se percebia a aflição por que passara.
- Pronto, querida, já passou, já voltei… -
e acrescentou, sorrindo: Não me estás a
ver? Foi uma coisa passageira… Senti um zumbido forte nos ouvidos e, de seguida
fiquei meio tonta… Deve ter sido uma quebra de tensão… Tenho que passar no
posto médico… Nanda tentava sossegar a amiga, com uma mentirinha piedosa.
Bela não
conseguiu conter-se e, debruçando-se sobre a mesa, estendeu-lhe os braços,
enlaçando-a.
Nanda ainda
pensou, rapidamente:
“Ninguém conhece esta passagem da minha vida
que tanto me marcou, especialmente por se tratar do pai da minha melhor amiga,
que eu estimava e admirava… É um segredo que guardei para mim mesma ao
longo de todos estes anos. Não o confidenciei nunca a ninguém. Enfim, todos nós
temos segredos, suponho eu…”
Bela
interrompeu-lhe o pensamento perguntando:
- Já te sentes capaz de falar? É que estou ansiosa por
saber a novidade que tens para me contar…
- Vou já satisfazer a tua curiosidade. Eu
estava dizendo que tu sabes como ando preocupada por não arranjar trabalho…
- Sim, claro que sei. Eu até…
- Por favor não me interrompas – apressou-se Nanda a pedir. Não queria desviar-se de
novo do assunto.
- Tudo bem, conta lá então. Não digo mais
nada!
Nanda sorriu e acrescentou:
- Só
para veres como anda a minha cabeça… imagina que até comecei a pensar na
hipótese de ir trabalhar com o Tó, aquele traste!
- Bem, na verdade
isso mostra que a tua cabeça anda à razão de juros. Espero bem que tenha sido
apenas um pensamento passageiro, e que não leves isso a sério…
- Não, claro que não;
nem que o Tó fosse o último homem no mundo eu quereria estar perto dele!
Nanda sabia que não estava a ser sincera com a sua amiga ao fazer esta
última afirmação.
A verdade é que há muito tempo não estava perto dele, mas notava-lhe a
falta quando passava um dia sem ele lhe telefonar. Sentia um prazer
inexplicável ao ouvir aquela voz que, ao dirigir-se a ela se tornava doce como
mel.
- E se fosse
trabalhar com ele teria que, forçosamente, suportar a sua presença – acrescentou. Mas nem
vale a pena falar nessa hipótese, que está completamente fora de questão.
- Ainda bem que
pensas assim. Mas diz-me, então, qual é essa novidade? Estou cheia de
curiosidade – Bela mostrava-se ansiosa por saber de que se tratava.
-Lembras-te que, da
última vez que fui ao Centro de Saúde, houve um homem que me abordou à saída…?
- Sim, lembro-me
muito bem, tu contaste-me – respondeu Bela
- Pois bem, esse
senhor ontem voltou a interpelar-me…
- Tu foste ao Centro
de Saúde e não me disseste nada? O que se passa? Não te sentes bem? O que te
disse o médico? – interrompeu-a Bela, aflita.
- Calma! Eu não estou doente, nem disse que fui ao Centro de Saúde!
Precisas de te acalmar, estás muito ansiosa… Pronto, vou continuar. O tal
senhor, que agora sei que se chama Carvalho Araújo e é engenheiro, encontrou-me
naquele restaurantezito perto da minha casa, onde vou muitas vezes, tu sabes
qual é…
- Sei, sim, mas foi
lá que o tal homem te abordou? E o que é que ele queria? – Bela mostrava-se
desconfiada.
- Ontem
passei por lá depois do almoço para tomar café. O sujeito aproximou-se da mesa
onde eu estava sentada preparando-me para ligar ao Luís. Delicadamente
perguntou-me se podia sentar-se porque gostaria de falar comigo. Acenei que
sim, e ele acrescentou, antes mesmo de se sentar:
- "Permita que
me apresente: Carvalho Araújo – e fazendo uma ligeira inclinação de cabeça
estendeu-me a mão."
Eu respondi: "Muito
gosto "– ao mesmo tempo que lhe dava a minha mão para o cumprimentar. E acrescentei:
- "Faça o
favor de se sentar."
Frente a frente, ele olhou-me fixamente e começou a
falar.
- "Não sei se
a senhora se recorda de mim… Há uns meses abordei-a quando a senhora vinha a
sair do Centro de Saúde…"
Fiz um gesto de aquiescência e ele continuou.
- "Tenho que
lhe confessar que o que primeiro me atraiu foi a sua figura…"
Devo ter feito algum esgar de descontentamento que o
levou a acrescentar, rapidamente:
-" Não me interprete mal, mas uma pessoa com o
seu bom aspecto, elegantemente vestida e calçada, não se vê todos os dias num
Centro de Saúde… Provavelmente será mais normal frequentar uma clínica
particular…"
Bela interrompeu:
-Desculpa,
querida, mas o fulaninho estava a “dar-te música” (1). Não concordas?
- Pelo que se
seguiu percebi que não. Aliás, naquele momento, ao ouvi-lo referir
“elegantemente vestida e calçada” veio-me logo à ideia o tormento que passei
com aqueles saltos altíssimos que tive a infeliz ideia de calçar nesse dia – Nanda
soltou uma ligeira risada.
- Eu
lembro-me, tu falaste-me nisso. Mas continua – desculpa, estou sempre a
interromper-te – Bela pôs um ar contristado.
- Pois então,
continuando, o engenheiro acrescentou:
- "O meu
interesse por si começou porque, dentro do Centro, eu ouvi-a confidenciar à
pessoa que estava ao seu lado, que estava desempregada e precisava arranjar
trabalho com urgência. Depois a conversa derivou para a dificuldade de arranjar
emprego e a pessoa que falava consigo, imagino que sua conhecida, comentou:
- Realmente,
não se compreende que uma pessoa, com formação superior, especialmente na área
de gestão financeira, tenha tanta dificuldade em arranjar trabalho…
Foi ao ouvir
isto que eu pensei:
- Ora aí está
a pessoa que eu procuro!"
1 – Dar
música = Insinuar-se; Espalhar charme; Mostrar-se encantador, sedutor.
Maria Caiano Azevedo