O COLO DA MÃE
Abrindo as portadas dispunha-se a apreciar a vista lá de
fora, donde emanava um agradável cheiro a flor de laranjeira. Mas os seus olhos
eram irresistivelmente atraídos para a cómoda antiga, em raiz de nogueira, uma
madeira rara, que, na sua cor castanho avelã, se destacava na parede branca.
O médico
tinha-lhe recomendado repouso absoluto, sob pena de sofrer alguma lesão grave
se insistisse no ritmo acelerado em que se transformara a sua vida. Com uma
carteira de clientes enorme não tinha tempo para descansar. Para além disso, a
recente morte do pai deixara-o profundamente abalado. Não lhe saíam da cabeça
as últimas palavras que ele proferira, com dificuldade, mas revelando a
urgência de quem está prestes a partir.
- Meu filho, escuta-me com atenção. Há na tua vida um
segredo muito importante… Procura uma cómoda antiga… lá na nossa terra…
Um forte
ataque de tosse interrompeu a confidência. Alguns minutos depois o pai iniciou
a Grande Viagem, sem mais explicações.
Decidiu
seguir o conselho do médico – até porque aquela forte dormência o assustara a
valer.
A sua
ida para aquela aldeia não era inocente, pelo contrário, tinha um propósito
muito firme – descobrir algo sobre o passado que o seu pai, com quem mantivera
relações frias e distantes ao longo da vida, nunca lhe contara. Só quando
sentira o fim aproximar-se, finalmente o resolvera fazer.
Tomou
conhecimento de que perto da aldeia onde passara a sua meninice havia uma casa,
outrora apalaçada, que recebia hóspedes, poucos, e só com recomendação. Não lhe
foi difícil obtê-la, e por isso ali se encontrava.
A D.
Augusta informara-o de que o jantar era servido a partir das sete e meia. Tinha
tempo para um passeio.
Pôs
pelos ombros um blusão leve, pois lembrava-se que na serra o tempo arrefecia
mal o sol começava a descer.
Atravessando
o laranjal, onde o aroma era intenso, continuou por um estreito caminho ladeado
de árvores de fruto até um pequeno portão em ripas de madeira que se encontrava
apenas encostado. Ultrapassando-o seguiu por uma estrada de gravilha, no meio
de um pinhal, donde descortinava uma paisagem deveras encantadora.
Caminhando
lentamente, embrenhado nos seus pensamentos, nem se apercebeu da distância
percorrida. Encontrava-se, agora, no início doutra aldeia serrana.
Cumprimentando algumas pessoas com quem se cruzava, sem dúvida moradores locais,
acabou por avistar os extensos muros brancos de uma enorme propriedade. A cada
passo que dava maior era a sensação de que pisava terreno conhecido. Aos poucos
surgiam, em pequenos flashes, cenas
da sua infância. Quase podia ver que por detrás daqueles muros brancos havia
uma casa senhorial onde ele brincara muitas vezes.
Metendo
conversa com uma velhota que estava sentada à porta de casa fazendo festas ao
cão, perguntou-lhe
a quem
pertencia aquela propriedade. A mulher respondeu:
- O senhor está a falar da Quinta do Freixo? Há muitos anos
que a casa está fechada, e os terrenos arrendados. Ali moraram, desde sempre,
os fidalgos. A última pessoa que lá viveu, que também já morreu há muito tempo,
não sei o nome dela; só sei que era conhecida pela “fidalga da Quinta do
Freixo”. Agora os herdeiros vêm aí às vezes, mas é raro. Falam com o caseiro,
fazem as contas e lá vão eles à sua vida!
Agradecendo
à simpática velhota toda a informação, o Sr. Dr. sentiu, de repente, uma
vontade urgente de regressar. Fazendo o caminho inverso, desta vez em passo
acelerado, em pouco tempo chegou ao seu quarto.
Sentando-se
de novo na cadeira junto à janela, pôs-se a observar, atentamente, a cómoda que
tanto o atraíra à chegada. Com o pensamento “transportou-a” para a Quinta do
Freixo onde – agora tinha a certeza – passara muitos dias da sua meninice. As
recordações começavam a fluir em catadupa. “Aquela” cómoda estava no quarto de
hóspedes, onde a sua mãe por vezes dormia. O seu pai era motorista do fidalgo
e, quando havia festas que envolviam grandes jantaradas, ele tinha de ir levar
alguns convidados a suas casas, às vezes até ao Porto; e a sua mãe ficava no
solar até mais tarde para ajudar a arrumar as louças e a prataria – que a
senhora fidalga não confiava nas criadas para fazerem esse trabalho, pois
podiam partir alguma peça. Era nessas noites que a sua mãe dormia no tal quarto
de hóspedes.
Pensando
em tudo isto não conseguia despregar os olhos da cómoda. Cada vez sentia mais a
certeza de que aquela era a “cómoda” de que o pai lhe falara. Precisava de a
abrir. Ali estavam guardados pormenores acerca do seu passado – cada vez lhe
restavam menos dúvidas.
Levantou-se
e acercou-se dela, examinando-a com a maior atenção. Tentou abrir as gavetas
mas depressa se convenceu que não seria possível, a não ser que usasse alguma
ferramenta; mas corria o risco de a danificar…
A D.
Augusta dissera-lhe que não sabia das chaves, portanto não valia a pena
pedir-lhas.
De
repente surgiu-lhe uma ideia:
- Já
sei, vou propor à senhora que ma venda, e depois, em casa, chamo um carpinteiro
para a abrir com todo o cuidado. Claro que tenho de contar com o espanto dela;
vai, por certo, ficar surpreendida… E também tenho de pensar na hipótese de ela
não querer vender…
Uma
pequena mancha na perna do móvel, junto ao chão, despertou-lhe a atenção.
Baixou-se para a examinar mas os seus olhos já não tinham a acuidade visual de
outrora. Intrigado pôs-se de joelhos, baixando a cabeça quase até ao soalho.
Foi quando os seus olhos foram atraídos para qualquer coisa que sobressaía do
fundo da gaveta. Estendeu a mão e, com uma leve pressão, soltou o que verificou
tratar-se de um envelope amarelecido pelo tempo.
Com a
maior excitação abriu-o retirando de dentro um documento. Tratava-se de uma
certidão de nascimento onde constava o seu nome, seguido dos nomes dos pais:
“Idalina
de Jesus Silva” e “Don Francisco Sebastião de Saldanha, Conde de Alpedrinha”.
Abriu a
boca de espanto!
Então
ele, um brilhante advogado que tivera de vencer, “a pulso”, as maiores
dificuldades para atingir o seu actual estatuto, era herdeiro da Quinta do
Freixo!
E aquela
cómoda era o espírito da sua Mãe!
Sem
saber bem o que fazia, abraçou-a, depositou um beijo no seu tampo de mármore, e
exclamou, em altos brados:
- D. Augusta! Eu quero esta cómoda!
Baixinho,
murmurou: Preciso do colo da minha mãe.
1º. Prémio - “PROSA”
USFCR /ARPE – JOGOS FLORAIS IV - TORRES VEDRAS
Guardo religiosamente uma cómoda na casa de Coimbra.
ResponderEliminarEra do meu avô.
Ai de quem lhe mexa!
Beijinhos
Tenho no hall de entrada da minha casa uma cómoda igual a aqui apresentada, e ainda um espelho por cima pendurado na parede.
ResponderEliminar.
Cordiais cumprimentos
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Bonita comoda.
ResponderEliminarA antiga pprtuguesa
Gostei do texto
Lindo teu conto e a cômoda...Recordações legais! Que SETEMBRO seja lindo! beijos, tudo de bom,chica
ResponderEliminarNesse início de setembro ler esse conto transportou-me à juventude quando assisti ao filme italiano que no Brasil tinha o título de "Quando Setembro Vier". Há muito não lia um conto tão bonito e tão cheio de situações comuns que nos desperta vontade de ter, de novo, um colo de mãe e uma cômoda compondo nosso cenário de agora!
ResponderEliminarTinha a certeza, querida Amiga, que ias arranjar maneira de continuares por aqui, encantando os teus amigos com os teus " rabiscos", como chamas à tua bela escrita. E aqui está a prova disso, um conto maravilhoso que me levou aos tempos de infância onde, na minha aldeia, eram comuns comodas iguais a essa. E o colo da mãe? Como tenho saudades da minha, Mariazita!!! Esse colinho tentamos nós dar, agora, aos nossos filhos, mas , por vezes, sentimos necessidade de ser acarinhadas num colo acolhedor que só uma mãe sabe dar, não é mesm? Adorei, Amiga! Obrigada e espero que estejas bem de saúde, assim como os teus filhos e netos. Beijinhos
ResponderEliminarEmilia
Querida amiga Mariazita adoro contos e possuo vários livros da especialidade e eu próprio comecei a fazer jornalismo com alguns contos da minha autoria, mais em jeito fenomenal. Mas propensão contista tens mesmo tu e não causa estranheza o conto ser premiado. Sem ver outros concorrentes, digo que foi feita justiça, visto o conto ser excelente para quem tem o privilégio de o ler. Beijos de amizade.
ResponderEliminarGostei moitísimo do conto. Você escrive tam bem que eu sento que estoy a ler aos grandes de Pirtugal.
ResponderEliminarMuitos parabéms pelo bem merecido premio.
Um prazer!
Bo começo de setembro.
Bejs
Parabéns, Mariazita, pelo conto. Prendeu-me desde o princípio e tem elementos que vão fazer a história ficar na memória.
ResponderEliminarBeijos! :))
Não admira o 1º prémio. É um excelente conto. Parabéns.
ResponderEliminarAbraço, saúde e bom Setembro
Boa noite, Mariazita!
ResponderEliminarVim conhecer o blog e dou de cara com esse conto maravilhoso. Parabéns!
Dá gosto ler um conto com uma escrita assim tão bem conduzida.
Obrigada pela partilha!
Bjs
Marli
Meu Blog
ResponderEliminarQuerida Mariazita
Ao lermos este Conto percorremos os caminhos da memória,
dos locais da infância, idade que fica gravada de
forma indelével. Os afectos fazem-se presentes
em especial momentos e objectos que nos fazem lembrar
a ternura da nossa Mãe.
O 1º Prémio foi bem merecido, dando-nos conta de
que és uma belíssima escritora que aborda todos os
géneros de escrita, na perfeição.
Muita Saúde junto aos teus.
Beijinhos
Olinda
Que bonito conto, gostei tanto de o ler! :) Beijinhos
ResponderEliminar--
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Como é tortuosa a nossa memória, em certas ocasiões. Gostava de saber o que se passou a seguir... Concorreste com este conto onde?
ResponderEliminarMuitos beijinhos e boa rentrée
Ruthia
Olá Mariazita,
ResponderEliminarParabéns pelo excelente conto e pelo prémio que conquistou.
Gostei dessa viagem que faz através do tempo entre belas e deliciosas recordações.
Muita saúde e um feliz mês de Setembro.
Um abraço!
O prêmio foi merecido, pois a narrativa é sedutora. Não como abandonar alinhas sem conhecer os detalhes da história cuja tensão nos acompanha até o ponto final.
ResponderEliminarÉ sempre bom ler-te
Abraços, minha amiga!
Querida amiga, voltaste aos contos, que maravilha!
ResponderEliminarEsse conto está ótimo, acho que eu fiquei mais curiosa para saber da cômoda do que teu protagonista para descobri-la!! rsss
Aguardo por outros mais!
Uma quinta feira feliz, querida amiga.
Beijinhos.
Adorei o conto, fiquei a ler , devorando cada palavra, pois estava curiosa com o desfecho!
ResponderEliminarLinda a cômoda, por certo, um belo móvel! Aprecio muito!
Beijinhos, Mariazita querida,
Valéria
Um excelente conto, do princípio ao fim. No enredo, no suspense até ao final e pela cuidada narrativa.
ResponderEliminarParabéns pelo prémio que recebeste, que é merecido, mesmo não conhecendo a concorrência.
Bom fim de semana, querida amiga Mariazita.
Beijo.
Mariazita, adorei a leitura deste conto, prendeu do começo ao fim pelos cenários tão bem descritos e o desvendar do mistério.
ResponderEliminarAbraço!
passando para desjar um feliz fim de semana bjs saude
ResponderEliminarQue final sensacional amiga, li com curiosidade e as fui criando a medida que lia.
ResponderEliminarVoce é inspirada e inspiradora em contos.
Gostei amiga.
Cuide-se bem e bom domingo de feliz semana.
Beijo de paz amiga.
Minha amiga um conto absolutamente espectacular, com mistério e um grande final, tal como eu gosto.
ResponderEliminarBeijinhos
Que merecido primeiro lugar, minha amiga! Admirável a forma como nos conduzes, valorizando o suspense até o final deste belo conto! Gostei muito! Meu abraço, boa semana.
ResponderEliminarExcelente conto! Amei do princípio ao fim, parabéns!
ResponderEliminarAbraços fraternos!
Que conto maravilhoso!!! Fiquei absolutamente rendida mesmo até ao final de toda a narrativa!
ResponderEliminarComo sempre, todo o cenário narrativo brilhantemente idealizado! Parabéns, Mariazita!!!
Um prémio merecidíssimo, pois então!
Um beijinho! Continuação de uma boa semana, e de um óptimo mês de Setembro, com saúde... e bom tempo... se bem que o Outono já comece a aproximar-se de mansinho, nestas manhãs, frescas e orvalhadas, que por estes lados, já vamos sentido...
Tudo de bom!
Ana
Que amor! Eu estava com medo de que não acontecesse nada, de que tudo fosse um delírio do pai agonizante. Eu devia ter confiado em você, Mariazita. Peço desculpas e me justifico: já fui jurada em concursos de contos. A maioria dos trabalhos começa com uma história intrigante e acaba com "e tudo foi um sonho". Eu devia saber que você jamais faria isso. Parabéns pelo desfecho perfeito!
ResponderEliminarUn post e un racconto interessante. Complimenti. Ti seguo.
ResponderEliminarUm belissimo conto, Mariazita. Uma narrativa brilhante.
ResponderEliminarGostei muito. Te felicito pelo prémio.
Continuação de boa semana e um feliz Outono!
Beijinhos
Parabéns querida Mariazit! Prémio bem merecido..Adorei ler o espetacular conto.
ResponderEliminarBeijinhos
Passei para te desejar um bom fim de semana, querida amiga Mariazita.
ResponderEliminarBeijo.
Muito boa na narrativa. Um conto surpreendente!
ResponderEliminarBeijinho
ResponderEliminarQuerida Mariazita
Vim reler este Conto.
Lindo! Através dele poderemos relembrar
a nossa infância e pensar como é
cálido tudo aquilo que nos traz à
memória o "Colo da Mãe".
Beijinhos
Olinda
Muito bom, Mariazita!! Eu também abraçaria a cômoda :) Beijus,
ResponderEliminarPassando a deixar um beijinho e votos de um excelente fim de semana, e estimando que tudo esteja bem, aí desse lado!
ResponderEliminarTudo de bom!
Ana
Meu abraço, amiga; boa semana, bom descanso!
ResponderEliminarQuerida Mariazita
ResponderEliminarQue belo conto!
Comovente!
Beijinho
Beatriz
Oi Mariazita
ResponderEliminarMuito bom o conto e quem nunca teve lembranças que remetem ao colo da mamãe _ até mesmo os que a conheceram tão pouco como no meu caso.
Fiquei comovida e encantada com riqueza de detalhes que dão o ritmo gostoso de ler,
Abraços e boa semana, amiga
Querida amiga, passei para lhe desejar um Feliz Aniversário pleno de tudo de bom.
ResponderEliminarUm grande beijinho
Uma cómoda acomoda muita coisa. Roupa, tralha, papéis, segredos - daí serem fechadas à chave - envelopes...
ResponderEliminarEnvelopes fechados, lacrados, brancos ou rotulados...
Mas para quê chave se eles espreitam pelas frinchas curiosos ou a oferecerem-se a curiosos. Apesar do requinte e da nogueira, têm sempre defeito as cómodas que acomodam, vá-se lá saber porquê, incomodam.
Gostei de ler. Parabéns pelo prémio e pelo aniversário que dei conta pelo comentário precedente, que se insinuou nos meus olhos.
Olá, Mariazita!
ResponderEliminarQue conto gostoso de ler, impossível fazer isso sem lembrar que na casa dos meus pais também havia uma cômoda, que eu criança, resolvi entrar dentro de uma das gavetas. Não deu outra, a cômoda virou e o susto foi grande, me valeu umas boas broncas da mãe e depois seu colo amoroso, a fim de me acalmar.
Obrigada por seu conto me trazer uma linda recordação da infância.
Abraços com carinho,
Sônia