domingo, 26 de junho de 2011

O QUE É UM MENINO?/O QUE É UMA MENINA?

O QUE É UM MENINO?

Os meninos vêm em tamanhos, pesos e cores variados.
Eles estão em toda parte: em cima, em baixo, lá dentro, lá fora, pulando, correndo…
As mães naturalmente os adoram, as meninas os detestam, os irmãos mais velhos também, os estranhos os ignoram e o céu os protege

Um menino é a verdade de cara suja, a sabedoria de cabelos desgrenhados e a esperança com uma rã no bolso.
Os meninos tem um apetite de cavalo, a digestão de um avestruz, a energia de uma bomba atómica, a curiosidade de um gato, os pulmões de um político, a imaginação de Julio Verne, e quando fazem algo, têm cinco polegares em cada mão.
Adoram: sorvetes, canivetes, serras, novidades, histórias em quadradrinhos, o filho do vizinho, o campo, a água (menos a do banho), os animais, o pai, comboios, domingos de manhã e carros de bombeiros.

Detestam: visitas, rezas, escola, livros sem figura, salas de música, gravatas, o barbeiro, meninas, casacos, adultos e a hora de dormir.

Não há quem se levante tão cedo, nem quem se sente à mesa tão tarde.

Não há ninguém como eles para meter num só bolso: um canivete enferrujado, uma fruta pela metade, um pedaço de cordão, um saco de pano vazio, dois bombons, seis moedas, um pedaço de algo desconhecido, e um autêntico anel supersónico, de plástico e com um compartimento secreto.

Um menino é uma criatura mágica.
Você pode fechar-lhe a porta do armário, mas não a do seu coração; pode expulsá-lo do escritório, mas não da sua mente.

Todo o poder do mundo a ele se rende.

Ele é nosso amo e chefe, ele, que é só um monte de ruídos com a cara suja.

Porém, quando você chega a casa à noite, com as suas esperanças e ambições destruídas, ele pode tudo remediar, com seu sorridente...
- Olá Papá!
- Olá Mamã!



O QUE É UMA MENINA?

Desde o início sabemos: As meninas nascem cheias de fitas, laços e mimos. Ninguém se engana com elas.

Com poucos dias de vida adere à mãe e começa a manobrá-la. Entre os 2 e os 3 anos faz gato-sapato do pai.

Dos 4 aos 5 em diante aciona: padrinhos, tios, avós e amigos da casa, com a maior naturalidade.

Enquanto for menina (e daí pela vida fora) jurará de pés juntos que não pretende manobrar ninguém. E é verdade.

A partir dos 3 anos está habilitada a tomar conta de uma boneca como uma pequena mãezinha.

Aos 5 fará comidinhas e agitará vassouras duas vezes maiores do que ela.

Aos 6 pode atuar como ama de irmãos mais pequenos e aos 7 estará dirigindo a casa, estrelando ovos para o pai, ralhando com as empregadas.


Para os meninos, as meninas são trambolhos, quando se metem nos “brinquedos de homens”; mas quando não há companheiros são parceiras ideais na maquinação de travessuras, nas grandes expedições de territórios, nos encargos de ordenanças.

Como  as rolinhas, as meninas formam bandos que estão sempre juntos.



A despeito das predileções, fofocas e discriminações que agitam essas pequenas colméias, elas não se desmancham nunca, pois são feitas para isso mesmo.

Um dia a menina vai vestir o vestido de baile da mamã, calçar os seus sapatos de salto alto, pintar o rosto de rouge e batom, perfumar-se com o frasco inteiro de Chanel nº 5.

Outro dia a menina desfará todo o guarda-roupa para polvilhar de talco os lençóis, as colchas, as fronhas, os guardanapos, as toalhas de banho, de rosto, de mesa e, por, fim também a irmãzinha mais pequena.

Nessa última operação o talco poderá vir a ser eventualmente substituído por creme hidratante, mel de abelhas e até mesmo por molho de macarronada.

As meninas gostam de vestidos e sapatos novos. Principalmente de sapatos. Adoram colares, anéis e pulseiras, dos quais se livram logo que a mãe não esteja olhando.

Entram em salões de festas como princesas caminhando para o altar, e quinze minutos depois transformam-se miraculosamente em gatas-borralheiras.

Nas casas onde há meninas, as mães vestem-se e cuidam-se melhor, a fim de não serem passadas para trás.

Os meninos não se comportam melhor (pelo contrário), mas aprendem a dar flores de presente.

Os pais se tornam mais meigos e gentis, para não perderem a sua posição de principe e a sua imagem de rei.

Uma menina é uma flor, uma mensagem de pureza, uma beleza gratuita e permanente, um gesto sempre inesperado de bondade e de carinho.

Uma menina nunca dará a ninguém a dureza necessária à vida, mas estará sempre irradiando uma advertência de encanto, de alegria de que – apesar de tudo – vale a pena.

Nos casos de catástrofe, perseguição, fúria, violência e morte, basta a presença de uma menina e seu sorriso ou seu pranto, para nos restituir aceitação, humildade, o senso íntimo da necessidade e da importância de viver, a crença na permanência e na força do amor.

Autor: Yan Marten

domingo, 19 de junho de 2011

OS MÁRMORES DA AMAN


Para quem já visitou e se impressionou com a suntuosidade da entrada da Academia...


AMAN - Academia Militar das Agulhas Negras

No início de 1943, tempo de II Guerra Mundial, a construção da AMAN havia parado por falta de verbas; funcionava no Rio a velha Escola Militar de Realengo, instituição que formou muitos militares conhecidos no século passado, como Castello Branco e os outros generais presidentes.

Naquela época uma das diversões do cadete era montar nos dias de folga. Oito amigos nos fins de semana costumavam cavalgar. Oito companheiros inseparáveis saíam sempre juntos, um ajudava ao outro nos estudos, nas dificuldades. Irmãos por escolha, por opção. Em algumas noites eles costumavam sorrateiramente cavalgar até uma boate de mulheres que havia em Botafogo. Naquela época prostitutas namoravam.

Os oitos cadetes vestiam-se apenas com pelerine (capa militar azul marinho sem mangas), botas e o quepe à Príncipe Danilo. O mulherio se assanhava quando eles apareciam. Havia um detalhe: por baixo das pelerines eles nada vestiam, todos nus; faziam farras tremendas no cabaré de Botafogo. Os cadetes cavalgavam nus, dançavam nus, apenas cobertos pela pelerine. Certamente iam nus para os quartos das prostitutas apaixonadas. Era alto risco, se fossem apanhados pela Patrulha Militar pegariam cadeia ou até expulsão.

Certa noite depois de dançar com as mulheres, depois de se deitarem com as "namoradas", os oito amigos montaram nos cavalos escondidos no mato e, com um grito de comando, dispararam pela estrada de barro retornando a Realengo. Quando passavam por uma rua, por volta das 23 horas, viram numa esquina escura quatro homens assaltando, batendo num senhor que pedia clemência, que não lhe matassem.
Os cadetes, os oitos cavaleiros, não precisaram combinar, puxaram as rédeas e os cavalos dirigiram-se para o local do assalto; com destemor e muita garra desmontaram dos cavalos ainda a galope e agarraram os bandidos. Dois socorreram o cidadão que já devia ter mais de 50 anos, os outros prenderam os marginais. Entregaram os facínoras numa delegacia próxima, e o velho ferido foi deixado num hospital.

Na segunda-feira durante a formatura matinal, o comandante da Escola pediu à tropa para que os cadetes que tinham salvado a vida de um cidadão se apresentassem, porque o filho desse senhor estava ali para agradecer. Os oito amigos não se revelaram, com receio de pegar cadeia. Só depois do comandante muito insistir, e fazer a promessa de não haver punição, os cadetes se apresentaram.

Foram levados à presença do velho no hospital. Era nada mais nada menos que Henrique Lage, um dos homens mais ricos do Brasil, dono de empresas, inclusive o Loyde Nacional, companhia de navios que fazia a costa brasileira. O rico senhor agradeceu aos cadetes e perguntou qual a precisão de cada um; que eles dissessem o que queriam, casa ou carro, ou o que fosse.
Os oito amigos pediram para pensar. Reuniram-se, discutiram muito. No outro dia foram ao ricaço. Nada queriam para eles, pediam que ele ajudasse a terminar a construção da Academia Militar das Agulhas Negras que estava paralisada.
O velho deu a ordem, mandou buscar o mais fino mármore de Carrara na Itália para o revestimento, mandou comprar todo o piso da Academia em granito. Até hoje perdura o luxo e a suntuosidade daquele belíssimo conjunto arquitetônico. A AMAN é considerada a mais bonita Academia Militar do mundo, graças à digna história dos oito cadetes, hoje anônimos militares reformados de nomes esquecidos. Mas o belo gesto, a coragem, o destemor e o amor à sua Escola tornaram-se lenda, sempre lembrada nas reuniões militares.
Autoria
Carlos Roberto Peixoto Lima
Abril – 02 - 2010

domingo, 12 de junho de 2011

CENAS DA VIDA REAL

A CARROÇA E O BURRO

 

O sr. Simões passava lá por casa com frequência. Amigo de muitos anos aparecia sempre que lhe apetecia, sem a mínima cerimónia.
Eu era uma jovem adolescente mas recordo-me muito bem do ar feliz com que, quase todos os dias, ia cumprimentar a minha família e contar a “última anedota”.
Por vezes essas historietas não eram, propriamente, de salão… Nesses casos, segurando o papá por um braço, levava-o para um canto da sala, onde falavam em voz baixa. Em breve se ouviam sonoras gargalhadas. Já sabíamos que essas eram das “cabeludas”, impróprias para os nossos ouvidos. (quando eu era uma jovenzinha as coisas eram diferentes do que são hoje…)

Para além de ser uma pessoa muito alegre, sempre com um sorriso nos lábios, o sr. Simões gostava muito de animais, o que, aos nossos olhos, o tornava ainda mais atraente.

Desde que tenho recordações de vida, sempre existiram cães e gatos lá em casa. Lembro-me bem de uma gatinha que me ofereceram quando eu tinha seis ou sete anos. Era cinzenta e tinha as pontas das orelhinhas brancas de neve., assim como o peito. Quando a recebi fiquei encantada, e disse:
- Olhe, mamã, ela tem o peitinho branco como as freiras.
Eu tinha visto recentemente algumas freiras com o hábito cinzento e um “escapulário” branco.
Os meus pais acharam tanta graça à minha inocente saída que muitos anos depois ainda falavam da “gata que tinha peitinho de freira”.

Voltemos ao senhor Simões.
Era um homem casado, feliz no casamento; mas uma nuvem ensombrava a sua felicidade: o casal nunca tinha conseguido ter filhos.
Tinham um gato que adoravam, o Fifi. Penso que para esse animal transferiram todo o amor que poderiam ter dado aos filhos, se os tivessem.
O Fifi já tinha alguns anos, oito ou dez, e todos os anos, no dia do seu aniversário, o sr. Simões cumpria um ritual:
Comprava um bolo tipo queque ou bolo-de-arroz onde colocava uma vela. A mulher segurava o bolo com a vela acesa em frente ao focinho do gato; o sr. Simões segurava o gato com o braço e, de repente, apertava-lhe o rabo. Imediatamente o Fifi fazia Ffffffffffff, e apagava a vela. Então os dois, o sr. Simões e a mulher, cantavam os parabéns, e comiam o bolo, repartido pelos três.

Esta história sempre nos pareceu inverosímil, mas a verdade é que todos os anos, no mesmo dia – do aniversário do gato – o sr. Simões nos dizia que ia comprar o bolo e a vela para festejar os anos do Fifi.

O sr. Simões era um homem de negócios, o que o levava a ter que se ausentar uma vez por outra. Deslocava-se para outras cidades, nunca se demorava muitos dias, e regressava sempre com histórias novas para contar.
Num desses regressos, passando lá por casa, ostentava um ar de quem não acreditava no que lhe acontecera. E contou o motivo da sua incredulidade:
- Vocês nem vão acreditar na conversa da minha mulher.

Rodeamo-lo, todos na expectativa do que iria dali sair.

- Vocês sabem que eu farto-me de convidar a minha mulher para ir comigo quando vou à capital; e sabem também que ela nunca aceitou. Pois agora, quando regressei, para lhe fazer pirraça, contei-lhe que fui jantar com uns amigos que estavam acompanhados das respectivas esposas, e em seguida fomos ao teatro, ver uma peça esplêndida.
Ela ouviu-me em silêncio, sem manifestar o menor desgosto por não me ter acompanhado.
Como eu vi que dali não haveria qualquer reacção resolvi mudar de táctica, fazer com que ela lamentasse não ter ido comigo.
- Tu nem sabes o desgosto que me dás por nunca quereres ir comigo. Está certo que nunca vou directo a Lisboa. Tenho sempre que fazer aquele circuito de visitas que tu detestas… mas podias muito bem ir depois ter comigo à capital. Mas não! Preferes ficar sempre aqui encafuada. És mesmo uma carroça!

Sabem o que ela me respondeu?

- E como é que tu querias que a carroça fosse ter contigo se o burro não estava cá???

O sr. Simões não tinha achado graça nenhuma. Saíra porta fora, amuado, e ainda não tinha adquirido o seu habitual ar prazenteiro.

Quisemos mostrar solidariedade, pondo um ar contrito.
Contivemo-nos enquanto pudemos, mas em breve soou uma estrondosa gargalhada.

domingo, 5 de junho de 2011

CARTA DO ZÉ AGRICULTOR PARA O LUÍS DA CIDADE


Há uns anos (dois ou três) recebi dum amigo brasileiro um texto que achei deveras interessante, e por isso guardei-o.
Trata-se de uma carta escrita por “um” Zé ao seu amigo Luis.
Embora não sendo atuaL… penso que não perdeu atualidade.
Ora vejam:

Prezado Luís, quanto tempo.

Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.

Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né, Luis?

Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós, da agricultura familiar, estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro duma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né, Luís?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra, né, Luís? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.
Na Capital também é assim né, Luis? Tua empregada vai pra uma casa boa toda noite, de carro, tranquila. Você não deixa ela morá nas tal favela, ou beira de rio, porque senão te multam ou o homem vai aí mandar você dar casa boa, e um montão de outras coisa. É tudo igual aí né?
Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luís, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ia mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa grande, né?

Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né, Luís? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.


Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar aí com vocês, Luís. Mais fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sítio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.


Esta carta, apenas adaptada por Barbosa Melo, foi escrita por Luciano Pizzatto, engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBDF – IBAMA 88 – 89, detentor do primeiro Prémio Nacional de Ecologia

Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

Pâmela Gallas Buche
Tecnóloga Ambiental.