sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
SAUDOSA ÁFRICA DISTANTE - O CHEIRO DE ÁFRICA
O CHEIRO DE ÁFRICA
O meu olhar vagueia pela lonjura da planície.
Rodo, olhando em volta. Descrevo um ângulo de 360 graus. Até onde a vista alcança apenas mato se vislumbra.
Giro de novo. A paisagem mantém-se inalterável. Numa extensão de quilómetros estou rodeada de mato. Salpicado, aqui e ali, de árvores de pequeno porte. São poucas, as árvores, e de aspecto raquítico
A casa, ao estilo bem colonial, tem um alpendre de um dos lados, a todo o comprimento.
Aí se encontram uns cadeirões de braços, em madeira, com almofadas gastas pelo tempo, desbotadas pelo sol, com um ou outro rasgão, como que a dizer: terminou o nosso prazo de validade.
Não primam pela macieza, as almofadas, mas tornam os cadeirões um pouco menos desconfortáveis.
Herdei-as, como tudo o resto, dos antigos moradores.
Detenho-me um momento a pensar – precisam de ser substituídas.
Encosto-me ao varandim, e aspiro o ar fresco da manhã.
Que paz. Que tranquilidade !
E que cheiro! Sobretudo o cheiro…
(Em nenhum lugar do mundo se pode sentir o cheiro de África. É o que melhor retenho na memória. Por vezes ainda consigo senti-lo).
Quem já cheirou África nunca mais esquece.
O sol começa a levantar-se no horizonte. A temperatura depressa subirá; o calor vai apertar.
Mas a casa mantém-se fresca. Já se ouvem os rumores dos criados preparando a mesa para o mata-bicho.
Aqui as mulheres não trabalham para os “brancos”. Mantêm-se nas suas palhotas, cuidam dos filhos, tratam da machamba, vendem no mercado os produtos que cultivam.
Só os homens vêm para nossas casas, por vezes com dormida incluída, visitando a família aos fins de semana. Executam todo o trabalho doméstico, como cozinhar, tratar das roupas, limpar…
À senhora da casa compete ensinar, orientar, fiscalizar… Os tempos de lazer ocupa-os com o que lhe dá prazer – cuidar dos filhos, se os tem, ler, ouvir música…tudo o que possa contribuir para afastar a sensação de isolamento em que vive.
O isolamento, por vezes, custa a suportar, prega as suas partidas.
A alguns quilómetros daqui há um pequeno destacamento, cujo “responsável” é substituído de duas em duas semanas.
Um desses jovens é particularmente sensível à solidão que o oprime. Quando se sente sufocar, sobe a um morro ali existente, e grita a plenos pulmões tudo o que lhe vem à cabeça. Em resposta ouve o eco das suas próprias palavras. E sente-se reconfortado…
Foi a forma que encontrou para aguentar o tempo de espera até ser substituído.
Começo a sentir o perfume do café acabadinho de fazer. Não consigo habituar-me ao tradicional mata-bicho de África – uma refeição de garfo, completíssima. Mantenho-me fiel ao café com leite (em pó – não há outro), e as torradas com manteiga (em lata, importada da África do Sul).
Mais um dia se passou. À noite sentamo-nos no alpendre, nos cadeirões com almofadas rasgadas – precisam mesmo ser substituídas…
Assim nos protegemos do cacimbo que sempre aparece pela noite.
À nossa volta tudo é silêncio, escuridão, tranquilidade.
Mas não estamos tranquilos.
Sabemos que essa paz não reinará para sempre. Na realidade tem apenas dois ou três meses de vida…
Sabemos que estamos a viver sobre um barril de pólvora.
Este é o primeiro de uns quantos apontamentos que aqui apresentaremos, subordinados ao mesmo tema.
Não seguem qualquer ordem cronológica. Não estarão situados no tempo, nem no espaço.
O tempo é relativo. E as memórias afluem sem hora marcada.
publicado por mariazita às 11:31
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De A. João Soares a 22 de Fevereiro de 2008 às 16:04
ResponderEliminarCara Amiga,
Acho este seu texto maravilhoso, Uma preciosidade, demonstrativa de grande poder de observação, análise e um óptimo domínio da língua lusa.
Já lhe disse isto e um pouco mais por e-mail
Fico à espera de mais coisas bonitas. Não me deixe muito tempo de água na boca à espera de outras jóias de literatura, hoje muito rara.
Beijos
João
27 de Fevereiro de 2008 às 13:11
ResponderEliminarMeu caro João
É sempre muito bom ouvir ( ler) palavras como estas!
Este texto foi escrito com o coração de quem viveu esses momentos. São emoções que não se esquecem, nunca!
Espero que goste igualmente dos que irei publicando dentro deste mesmo tema.
Beijinhos
Mariazita
Amiga Mariazita!
ResponderEliminarSerá possível que sejamos conterrâneas Africanas?
Eu nasci e vivi em Moçambique, até quase aos 12 anos.
As palavras que usas são as mesmas:
"mata-bicho" (de garfo - ou seja, bife com batata frita e ovo estrelado)
"Machamba", "palhota"...
E o cheiro de África!!!
E as cores..., também são diferentes...
E as trovoadas?
E as mudanças bruscas do estado do tempo?
Que saudade!!!
Beijinhos
Senti-me por instantes novamente em África, as almofadas rotas, o mata-bicho até as fotos fizeram-me recuar no tempo, já não volta, nunca mais!
ResponderEliminarVou continuar a ler-te e a olhar para ti mesmo que faça trovoada ou cacimbo.
Bj
Querida Mariazita
ResponderEliminarJá estive em África, no Norte, mais propriamente na Tunísia, mas não no meio do mato ou do deserto.
Que Texto! Ao lê-lo, senti uma vontade enorme de ir visitar essa África mais distante, sentir esse cheiro( no Norte, há ruas em que o cheiro é das especiarias), viver essas tradições, as diferenças meteorológicas...enfim, a sua narrativa é sempre um convite à descoberta.
Um beijinho
Beatriz