terça-feira, 1 de janeiro de 2019

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS VI

SEGREDOS - CAPÍTULO VI

… Depois de pedir uma “Salada César com Frango ”Nanda reparou que o homem que estivera no bar se levantara e saíra do restaurante. Na rua dirigiu-se a um carro de gama alta, entrou e rapidamente pôs-se em marcha.
Nanda pensou: “Aquela cara não me é estranha…” E, dirigindo-se ao empregado:
- Conhece aquele senhor que acabou de sair do bar? …

SEGREDOS – CAPÍTULO VI

- Conheço sim, D. Nanda. É o engenheiro Carvalho Araújo. A senhora não o conhece?
De repente Nanda lembrou-se. Claro! Era isso mesmo. O tal Carvalho Araújo do cartão, que a abordara junto ao Centro de Saúde. Sim, era ele mesmo. Disfarçando, Nanda esboçou um sorriso e perguntou:
- E por que havia de o conhecer?
- Como a senhora é doutora em finanças… pensei…
Nanda deu uma gargalhada.
- Não, nem sou doutora em finanças nem o conheço.
- Peço muita desculpa, mas eu acho que ouvi dizer que a senhora era doutora em finanças…
- Não, António, eu apenas tenho um curso superior de contabilidade, que é muito diferente.
- A senhora desculpe, mas para mim é tudo a mesma coisa. Nenhum empresário consegue governar as suas finanças se não perceber de contabilidade… é ou não é?
Nanda sorriu de novo. Até que o empregado não deixava de ter razão… E sabia raciocinar…
- Na verdade, se o seu patrão não tiver a contabilidade em ordem… lá se vão as finanças, e chega ao fim do mês sem dinheiro para pagar o seu ordenado.
- P’ra longe vá o agoiro, D. Nanda. Eu tenho família para sustentar. Mas olhe, ao engenheiro é que não deve faltar dinheiro para sustentar a família…
- Ai sim? E porque é que você diz isso?
- Dizem que ele quer investir por aqui.
- Investir como? – Nanda estava verdadeiramente interessada, mas esforçava-se por não o denotar.
- O que dizem é que ele esteve muitos anos no estrangeiro e ganhou lá muito dinheiro. E agora parece que o quer aplicar cá na terra, porque os avós eram de cá e ele foi criado por eles. – António falava com toda a precisão, como se estivesse perfeitamente por dentro do assunto.
- Pois muito me conta, António. Para ser criado pelos avós, se calhar ele era órfão…
- Era, sim senhora, e foi por isso mesmo que os avós o criaram. Os pais morreram num acidente, e ele ficou só com os velhotes e um tio, irmão do pai, que vivia no estrangeiro. E foi esse tio que depois o levou para lá para fora e o pôs a estudar.
- Então ele deve estar cá há pouco tempo. Não tenho ideia de o ter visto por aí…
- Sim, ele veio ainda não tem três meses. Está instalado na casa de um primo, e todos os dias vem cá tomar café. É muito simpático, e interessa-se pelas pessoas que aqui moram, está sempre a fazer perguntas…
- E você retribui com outras perguntas, não é, António? Por isso sabe tanto a respeito dele… - comentou Nanda, com um sorriso brincalhão.
- Faz parte do ofício, D. Nanda. Um bom empregado deve estar sempre bem informado acerca dos clientes…
- Que é como quem diz: dever ser um perfeito “cusca” – interrompeu-o Nanda, bem-humorada.
Como o restaurante se encontrava vazio àquela hora o empregado manteve-se junto à mesa da cliente enquanto ela comia. Terminado o almoço Nanda despediu-se e saiu.
Durante toda a conversa com o António tentara mostrar uma curiosidade desprendida, mas registara todas as informações que ele lhe prestara.
“Então o tal Carvalho Araújo é engenheiro, abastado, e tem, talvez, intenções de abrir um negócio…” – pensava Nanda ao encaminhar-se para casa.
“Agora parece que começa a fazer sentido a conversa dele quando se me dirigiu com a tal história de que o que tem para me dizer pode ser bom para mim… No Centro de emprego ele percebeu que eu estou desempregada…
A verdade é que vinha mesmo a calhar um emprego, mas uma coisa de jeito, não outro ‘negócio de farturas’ – Nanda riu-se, para si mesma.
Sim, que o Luís não deve tardar muito a vir para cima, se o Tó Zé cumprir o prometido, e mais dia, menos dia estou com um netinho nos braços… - inconscientemente sorriu, embevecida, ao imaginar-se em tal situação.”
Ao chegar a casa encontrou no hall de entrada a vizinha do rés-do-chão esquerdo, a professora Carla.
Cumprimentaram-se amavelmente. Simpatizam bastante uma com a outra, o que as leva a conversar sempre que se encontram.
- Bom dia, Nanda. Como está? Calculo que muito feliz com a notícia de ser avó…
- Ah! A Carla já sabe…
- E há alguém aqui no prédio que não saiba? – riu Carla. Aliás, eu acho que não é só no prédio mas sim no bairro todo… - sorria com simpatia.
Mas… entre um bocadinho para conversarmos – enquanto falava ia abrindo a porta da sua casa. Há tanto tempo que não o fazemos, e eu gosto tanto de falar consigo. Como sabe… não tenho por cá muitos amigos, e as pessoas aqui do prédio, embora me falem todas muito bem, não passa disso…
- Eu penso que é apenas porque a Carla está cá há pouco tempo. Há pouco mais de um ano… se não me engano. Todos os moradores daqui se conhecem há muitos anos, vivem cá praticamente desde que o prédio foi construído. E como somos apenas seis condóminos… é quase como se fôssemos uma família apenas. Vai ver que com o tempo acaba por se sentir “em casa” – Nanda pretendia assim animar a sua amiga.
Mas voltando ao assunto de eu ser avó e toda a gente saber – acrescentou com um sorriso - acho que tem razão. A notícia espalhou-se bem depressa. Tenho cá na minha ideia que para isso terá contribuído muito o Chico das Farturas – respondeu Nanda, rindo; e acrescentou logo de seguida: Bem, eu também não fiz propriamente segredo…
- As boas notícias são para se saberem. Para mal basta o que vemos na televisão – respondeu Carla.
- É isso mesmo, na TV só se ouvem desgraças. E por falar em desgraças… Quando vinha para casa vi ali na esquina a Alberta com um fulano qualquer. Coitada, faz-me uma pena! O marmanjo que estava com ela já não é o mesmo da semana passada. Aproveitam-se da deficiência da pobrezinha, os desavergonhados! Nem sei quantos já se divertiram à custa dela… Quando os vejo naquela esfregação toda só me dá vontade de os insultar. – Nanda falava toda empolgada.
- É uma tristeza, sim. Mas… não é nada fácil resolver aquele problema. Como a Nanda sabe muito bem, os portadores da síndrome de Down têm a líbido muito exacerbada, o que, no caso das mulheres, muitas vezes as leva a ir coleccionando homens atrás de homens, em sexo ocasional, sem qualquer controle. O comportamento da Alberta reflecte exactamente isso. Ela é um exemplo perfeito dessa característica.
- É verdade. Mas sabe, Carla? O que mais me incomoda é que essas pessoas são sempre extremamente carinhosas, gentis, simpáticas, afáveis…E é isso, precisamente, que as torna alvos fáceis para os desalmados que delas abusam.
Por sorte, é muito raro estas mulheres engravidarem, não porque sejam estéreis, como os homens, mas porque têm uma ovulação muito irregular, o que dificulta, quase impossibilita, a gravidez.
- Sem dúvida isso é uma bênção, pois seria difícil essas mulheres cuidarem dos filhos. Haveria, então, mais um encargo para as suas famílias – acrescentou Carla.
Nanda fez um sinal de concordância e continuou:
- Sempre que vejo a Alberta lembro-me de uma rapariga que havia na terra dos meus avós, lá na Beira, que também sofria de Trissomia 21, e a sua maneira de se comportar era igual à da Alberta.
- Ah! Então os seus avós eram da Beira?! Que coincidência engraçada! Os meus também eram beirões – disse Carla.
- Se formos esmiuçar bem ainda descobrimos que os nossos avós eram primos – respondeu Nanda. E ambas riram da ideia.
Carla retomou a palavra:
- Mas conte-me: a Nanda ia lá quando eles eram vivos?
- Ah! Sim, ia lá todos os anos. No Verão passava uma semana na província – o meu pai não podia ter mais férias nessa altura; só depois, no Outono ou no Inverno. No Natal íamos sempre por dez dias.
- Mas isso devia ser uma maravilha! Os meus avós mudaram-se para cá quando eu era pequenina. Só tenho lembranças muito vagas da época em que íamos lá… Mas a Nanda deve lembrar-se bem…
- Claro que me lembro! Quando penso nisso até parece que sinto o aroma da canela e da casca de limão que dominava a casa da minha avó… - Nanda sorriu, àquela doce lembrança.
- Estou a ver que o que a Nanda recorda melhor são as doçarias… - brincou Carla.
- Não, não, isso não é verdade. Falei nisso porque era a primeira impressão à chegada lá. A minha avó já tinha tudo preparado para fazer os “Bolinhos de Jerimu”. Depois a minha mãe ajudava-a a fritar os bolinhos, que tinham que esperar uma semana, depois de feitos, para os comermos. Elas diziam que assim eles eram muito melhores. Eu e o meu pai tínhamos uma opinião diferente… achávamos que acabadinhos de fazer deviam ser uma delícia… mas nunca os provámos assim; as matriarcas não se podiam contrariar – Nanda falava num tom saudoso.
- É interessante que eu tenha tão poucas memórias desse tempo e me lembre perfeitamente dos “Bolinhos de jerimu” – lembrou Carla. A verdade é que, mesmo depois de estar cá, a minha avó os continuou a fazer…
- Afinal não sou só eu a lembrar-me das doçarias… - sorriu Nanda. Mas tenho muitas outras recordações, igualmente agradáveis, daqueles Natais. No dia seguinte à nossa chegada lá, logo após o pequeno-almoço, o meu pai e eu íamos a um pinhal que pertencia aos meus avós para colhermos musgo. Àquela hora da manhã estava muito frio; por entre os troncos dos pinheiros havia uma neblina cerrada, misteriosa, que me fazia imaginar que, por detrás daquelas árvores, dezenas ou até centenas de duendes nos espreitavam. Eu quase podia vê-los a brincar às escondidas, correndo de arbusto em arbusto, em alegre galhofa. Isso tornava-me um pouco receosa. Mas a presença do meu pai era quanto bastava para me sossegar. Com a minha mão presa na dele nada de mal me podia acontecer…
Levávamos um cestinho e uma faca velha, meio rombuda. Quando encontrávamos alguma pedra com o precioso fungo, o meu pai enfiava a faca cuidadosamente por debaixo da planta, e eu amparava aquele delicado tapete verde com o maior cuidado, porque o musgo parte-se com muita facilidade. Depois colocávamo-lo dentro do cestinho e quando já tínhamos quantidade suficiente íamos para casa. Ali chegados corríamos para a lareira, completamente enregelados, mas felizes… Nanda falava com um ar sonhador e saudoso. Carla ouvia-a atentamente, bebendo as suas palavras, como se quisesse gravar na memória tudo o que a sua amiga lhe contava.
- Estou a ouvi-la e a imaginar a alegria que tudo isso devia ser para uma criança – sim, porque a Nanda era uma criança, na altura, imagino eu… comentou Carla.
- Sim, quando eu comecei a acompanhar o meu pai ao pinhal tinha os meus 8 ou 10 anos… Anteriormente, quando eu era mais novinha, ele ia sozinho, e eu esperava-o ansiosamente, em casa. É que aquele era o primeiro passo para a construção do presépio…
- Que era, com certeza, um dos pontos altos das Festas… – adiantou Carla.
- Sim, sem dúvida! Para mim era um verdadeiro êxtase colocar no presépio, que o meu pai armava, construindo morros e vales com pedras que punha por baixo do musgo, todas aquelas figurinhas que eu considerava mágicas…
Havia também um outro ritual que me encantava. O do tição de Natal…
- Nunca ouvi falar nisso. De que se trata? – perguntou Carla, curiosa.
- Era assim: O meu pai ia ao pinhal – dessa vez eu não o acompanhava, ele ia sozinho – e trazia de lá um tronco de pinheiro bem grosso. Este tronco era aceso na noite de Natal e conservava-se a arder, muito lentamente, sem chama, até ao último dia do ano. Depois da meia-noite era apagado – a essa parte eu já não assistia, invariavelmente estava a dormir… - e guardava-se para acender quando houvesse trovoadas. Os antigos acreditavam que o “Tição de Natal” tinha o poder de afastar as trovoadas e evitar que causassem estragos às pessoas e aos animais.
- Que bonita, essa crença! É difícil para mim imaginar todo esse encantamento, pois não tive a sorte de passar os Natais na província. Como sabe, aqui na cidade é tudo muito mais artificial… compra-se tudo feito, não há a magia de sermos nós mesmos a “fabricar” seja o que for… Sabe, Nanda, ao ouvi-la eu quase sinto inveja de si. – comentou Carla, acrescentando rapidamente: - No bom sentido, é claro
- Eu compreendo-a muito bem, minha amiga. Quando os meus avós faleceram deixámos de ir passar o Natal a casa deles; a minha mãe não conseguia ir lá durante muito tempo. Ver a casa dos pais causava-lhe muita dor. Eles morreram com um intervalo de onze meses, primeiro a minha avó e depois o meu avô. Só bem mais tarde a minha mãe arranjou coragem para ir lá desfazer-se dos prédios que eles tinham deixado. A minha mãe era filha única… tal como eu sou.
- Ah! A Nanda é filha única…
- Sim, não tenho nem nunca tive irmãos…
- Eu desconfiei disso pela maneira como falava do seu pai. Fez sobressair a ternura que ele tinha por si, muito próprio de menina única – murmurou Carla.
- O meu pai tinha uma verdadeira paixão por mim. E era correspondido. Com a minha mãe era diferente. Não que ela não gostasse de mim, nada disso! Só que ela era mais rígida, mais exigente, queria fazer de mim uma pessoa perfeita. E eu nunca fui perfeita… - acrescentou, com um meio sorriso.
De uma coisa, porém, não me posso queixar – de falta de amor. Os meus pais sempre me mimaram muito. Embora não fossem abastados – como eram, por exemplo, os pais da minha amiga Bela, esses sim, bastante ricos – nunca senti necessidade do que quer que fosse. A minha mãe tinha o maior cuidado para que nada me faltasse, e, à sua maneira, sempre me dispensou muito carinho. Era muito exigente com os estudos, não admitia sequer a ideia de que eu não tirasse um curso superior… O meu pai, como a Carla já se apercebeu, era o meu herói. E eu era a sua princesa – que o lugar de rainha cabia à minha mãe, que não o dispensava – Nanda riu com gosto.
- Os pais sempre desejam que os filhos sejam os melhores em tudo – disse Carla. Mas os filhos nem sempre correspondem.
- Essa é uma grande verdade, minha amiga. Só quando nasceram os meus filhos é que entendi muitas coisas, nomeadamente as exigências da minha mãe. Eu sei que a decepcionei muito, não correspondi às suas expectativas, não fui a pessoa que ela esperava que eu fosse – havia amargura na voz de Nanda. Mas eu tinha que viver a minha vida, não podia ser ela a vivê-la por mim…
Lançando um olhar ao relógio acrescentou:
- Já está a fazer-se tarde. Tenho que pôr pés a caminho…
Carla sorriu:
- O caminho não é longo… é só atravessar o hall. Nanda, muito obrigada por estes momentos. Nem imagina como me soube bem falar consigo. Temos que repetir.
Mas, de facto está a fazer-se tarde, também tenho que ir buscar os gémeos ao colégio…
- Ah! Mas que indelicadeza a minha! Com o entusiasmo da conversa esqueci-me de perguntar pelos meninos… Eles estão bem?
- Sim, estão. A semana passada o Tiago pregou-me um susto, tive que o levar ao hospital, mas não foi nada de grave. Não vejo é a hora de poderem ser operados…
- Pois… sabemos como é a saúde em Portugal… respondeu Nanda, levantando-se. Eu vou também tratar do “meu bebé” Tejo, antes que aconteça alguma fatalidade líquida lá em casa…

Maria Caiano Azevedo

FELIZ ANO NOVO
FELIZ 2019
Dediquemos os 365 dias que agora começam a:
Comemorar a VIDA
Espalhar o AMOR
Semear a ESPERANÇA