sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

DIA DE NATAL

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Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
De falar e de ouvir com mavioso tom,
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
De lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
De perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
De meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
Como se de anjos fosse,
Numa toada doce,
De violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
A voz do locutor
Anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
E as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta - em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziantes,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
E fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
Com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
Cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
As belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
Ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
Como se o Céu olhasse para nós… e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
E compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
A sua comoção é tanta, tanta, tanta,
Que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
Na noite incerta
Para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
Salta da cama,
Corre à cozinha em pijama.
Ah!!!!!!

Na branda macieza
Da matutina luz
Aguarda-o a surpresa
Do Menino Jesus.

Jesus,
O doce Jesus,
O mesmo que nasceu na manjedoura,
Veio pôr no sapatinho
Do Pedrinho
Uma metralhadora.

Que alegria
Reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
Fuzilava tudo com devastadoras rajadas
E obrigava as criadas
A caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
Fingiam
Que caíam
Crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,


Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
De Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão, in 'Antologia Poética'

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

CONTO DE NATAL DO FUTURO


NATAL DE 2085
O calendário indica-nos que o ano de 2085 estás prestes a terminar.

Embora cada um deles pudesse, individualmente, ver o seu canal preferido, controlável por ondas cerebrais captadas nos auscultadores, bisavô e bisneto estavam, naquele momento, assistindo ao mesmo programa, no mesmo écran.
A sala é muito agradável, com todos os requisitos modernos, desde carpetes com auto-limpeza, o que lhes permite terem sempre os tapetes impecavelmente limpos, até à lareira que esfria ao toque, o que evita acidentes indesejáveis, como queimaduras.
Os sofás de módulos facilitam a sua arrumação e permitem-lhes estar lado a lado, como agora, ou afastados, se assim o desejarem, como, por exemplo, quando estão a ver programas diferentes.
Quando o programa terminou, Ícaro, o bisneto, disse para o bisavô, Marco:
- Então, Bi, este ano não vais ver os festejos da reserva? Olha que hoje é dia 24 de
  Dezembro…
- E e eu podia lá faltar, meu querido? É o único evento a que nunca dexei de assistir
  desde a sua   inauguração e ao qual tenciono não faltar enquanto tiver forças para me
  deslocar.
  E tu, Ícaro, queres acompanhar-me?
- Claro que sim, Bi. Eu também nunca deixei de ir desde que me levaste lá a primeira
  vez…
- Então vai-te preparar porque temos que nos pôr a caminho. Olha, e não te esqueças
  de avisar a tua prima, a Ísis, porque ela disse-me que também queria ir…
- Ok, Bi. Vou já dizer-lhe para preparar a mochila e, claro, “não esquecer os abafos
  porque à noite arrefece” – acrescentou, brincalhão, imitando a voz do bisavô.
Apesar dos seus cento e cinco anos a memória de Marco continua perfeita, embora de vez em quando vá tendo alguns esquecimentos – “onde terei posto os óculos? “, “o que vinha aqui fazer?”, “será que já tomei os medicamentos” e coisas deste género. Mas recorda muito bem o que se passou quando era jovem, e todas as transformações que a Natureza foi sofrendo ao longo dos anos.
Quando tinha 30/31 anos, recorda ele, o planeta começou a aquecer desmesuradamente. Lembra-se bem das notícias que ouvia de que, nos últimos 17 ou 18 meses, não podia precisar, tinham sido batidos, todos os meses, os recordes máximos de temperatura média global.
As alterações climatéricas continuaram a ocorrer a um ritmo assustador, mas não foram tomadas medidas eficazes para evitar uma catástrofe.
Cimeiras e acordos realizados resultaram em fracassos sucessivos, pois os países desrespeitavam todas as decisões aí tomadas, contribuindo para o aumento consecutivo da poluição atmosférica.
As guerras infindáveis tinham contribuído também, em grande parte, para a desertificação do Planeta.
A falta de políticas ambientais levou a que o Planeta Terra se tornasse no lugar inóspito e quase sem vida que Marco, com desgosto, descortinava para além das largas janelas da sua sala.
No jardim do condomínio onde vivem há relva artificial fazendo desenhos exóticos, perfeitamente simétricos.
Vêem-se alguns vasos com plantas naturais que, diariamente,  são mudados, trocados por outros mantidos em estufas, já que a poluição atmosférica é tão elevada que não permite que as delicadas plantas verdadeiras possam ficar expostas ao ar por mais de vinte e quatro horas.
É também em estufas que são criados os poucos alimentos naturais a que só os mais favorecidos têm acesso. A restante população alimenta-se de produtos sintéticos, produzidos  em laboratórios.
Enquanto espera pelos bisnetos Marco senta-se, pega no comando interactivo e dirije-o para as cortinas. Estas têm espessura dinâmica para permitir a alteração do nível de iluminação, assim como a exibição de imagens. Escurece a sala, e faz projectar nos cortimados fotos de tempos passados, de quando era jovem, de praias de areia branca e resplandecente, e do mar no seu constante movimento.
Com grande algazarra Ísis e Ícaro entram na sala interrompendo-lhe os nostálgicos pensamentos. Trazem às costas as suas mochilas e vêm radiantes.
- Lembraram-se de trazer os vossos cartões? Não estejam à espera de que eu pague
  as vossas despesas… - disse Marco, olhando para os bisnetos, enternecido.
- Claro que sim, Bi. Nós não somos como tu, que te esqueces de onde pões os óculos – 
  respondem alegremente.
Descem o supersónico elevador e vinte segundos depois encontram-se no rés do chão. Caminham rapidamente para o aeromobil que Marco já comandara para sair da garagem e os aguardava à porta de casa.
Chegados à reserva introduzem os cartões no local próprio para abrir o enorme portão.
Respiram fundo, felizes, preparados para viver os momentos mais emocionantes de que têm memória.
A reserva é uma vasta área, semelhante a uma vila dos anos passados. Ruas alcatroadas onde circulam veículos que, aos bisnetos, parecem pré-históricos, mas que não têm mais de cem anos. As ruas encontram-se todas iluminadas. Ouve-se no ar uma suave música natalícia.
Marco respira fundo, emocionado como sempre que aqui vem. Ísis e Ícaro olham para tudo com espanto – têm apenas nove anos, Ísis, e oito anos, Ícaro, e já não se lembram bem do que viram no ano anterior.
Vão caminhando lentamente, apreciando as luzinhas que, brilhando, envolvem as casas, donde se escapam os odores dos cozinhados que lá dentro se estão preparando para mais logo. De quando em quando deparam-se com pequenas árvores de Natal, artificiais, às portas de algumas casas, enfeitadas com bolas brilhantes e vários enfeites, como pequenos pais natais nos seus trenós, passarinhos em ninhos, laços e pingentes de vidro, e por cima flocos de neve artificial.
Pelas ruas veêm-se vários turistas, que se distinguem dos habitantes da reserva pelas suas vestes modernas e de mochilas às costas. Todos tencionam ali pernoitar.
A noite vai descendo e Marco, Ísis e Ícaro vão-se encaminhando para o grande largo onde se encontra a sala comunitária.
Passados alguns momentos abre-se a grande porta da sala, onde os turistas se apressam a entrar, depois de terem passado os cartões na máquina que lhes fornece o talão que lhes vai permitir tomar parte no repasto.
Ao centro da sala pode ver-se uma enorme árvores natural, profusamente iluminada com miríades de luzinhas de todas as cores, e todos os enfeites que os moradores da reserva foram acumulando ao longo dos anos.
Durante o ano esta árvore é mantida dentro duma enorme estufa, onde se cultivam também árvores de fruto. Além desta, há outras estufas para o cultivo de vegetais de que se alimentam os moradores da reserva. Estes são autosuficientes; vivem dos produtos que cultivam nas estufas, ovos das galinhas que criam nos quintais, e carne de animais domésticos. Peixe não é ali consumido há largos anos pois o rio, a que eles podem ter acesso, tem a água de tal modo poluída que nenhum ser vivo ali sobrevive.
Ao fundo da sala uma lareira com troncos ardentes confere-lhe um ambiente extremamente acolhedor.
Junto à árvore de Natal encontra-se uma mesa oval onde irão acomodar-se o pároco e os maiorais da reserva. Dos lados da sala há mesas redondas às quais se vão sentar os comensais que costumam ser cerca de quinhentos – quatrocentos habitantes da reserva e aproximadamente cem turistas.
Marco, Isis e Ícaro sentam-se à mesa cujo número está indicado no talão retirado à entrada. Em breve juntam-se-lhes mais sete pessoas, perfazendo um total de dez.
Enquanto esperam pelo grande momento do jantar de Natal entretêm-se petiscando pinhões e figos secos, nozes e passas, e apreciando a música natalícia que se escoa pelos altifalantes.
A dado momento entram na sala, que está praticamente cheia, o pároco e o chefe da reserva, seguidos das outras pessoas que vão ocupar a mesa oval. Depois de uma saudação dirigida aos presentes sentam-se à mesa.
Logo de seguida começa a ser servido o jantar.
Aparece em primeiro lugar o bacalhau fumegante, logo seguido de apetitosas batatas, grão de bico, ovos cozidos, feijão verde cortado bem fininho e com um aspecto delicioso, grelos e por fim as tão apetecidas couves. Em travessas mais pequenas é apresentado polvo cozido e ainda pasteis de bacalhau.
Aqui, na reserva, onde residem pessoas oriundas das mais diversas regiões, há sempre o cuidado de manter as tradições de cada um, cozinhando os alimentos que lhes recordam os saudosos tempos do passado.
Em cada mesa estão colocados o azeite, o vinagre, o sal e a pimenta; em jarros, o precioso vinho fabricado lá mesmo na reserva e sumos naturais para os mais pequenos.
Porque se trata de um jantar de família, da grande família que é a população da reserva, embora possam assistir convidados, todos aguardam o sinal para iniciar a refeição, sinal que é dado pelo pároco ao fazer uma breve oração de agradecimento pelos alimentos que têm à sua disposição.
É com grande prazer que o jantar começa, e aqui e ali ouvem-se rasgados elogios especialmente da parte dos convidados, pouco habituados a alimentos naturais.
Logo que todos terminam começam a ser servidos os doces, cujo aroma a canela e limão enche o recinto. São travessas a abarrotar de rabanadas, aletria, arroz doce, formigos e os indispensáveis bolinhos de jerimú. Tudo isto acompanhado por excelente vinho do Porto.
Comendo e conversando, a refeição arrasta-se em alegre convívio.
Cerca das onze horas aparece um grupo coral junto à lareira que começa a entoar canções natalicias, o que contribui ainda mais para dar àquele jantar o verdadeiro espírito de Natal.
Bem perto da meia noite o pároco retira-se e alguns minutos depois ouve-se o sino da igreja, chamando os fiéis para a missa do galo.
Os que desejam assistir à missa, que são a maioria, dirigem-se para a igreja. Marco, Ísis e Ícaro encontram-se entre eles.
No final, ao sair da igreja, Marco encontra um velho conhecido e amigo dos seus tempos de juventude, que vive na reserva. Cumprimentam-se com um forte abraço – já não se viam há um ano – e Marco comenta:
- É impressão minha ou a população não aumentou do ano passado para cá?...
- Não é impressão, é mesmo verdade. Como já te disse a população mantém-se sem
grandes oscilações numéricas porque a natalidade é perfeitamente controlada e respeitada por todos. Nem poderia ser doutra maneira, a reserva tem espaço limitado…
- Já me tinhas dito, sim. E a respeito do bacalhau e do polvo… pelos vistos continuam  
  a conseguir arranjá-lo…
- Conseguimos, mas cada ano que passa se torna mais difícil e mais caro. A reserva
que o conserva congelado há quase cem anos cada vez faz mais restrições porque
o stock está a diminuir, como é lógico, e eles valem-se disso para aumentar os pre-
ços que já são exorbitantes…
Lá chegará o tempo em que teremos que comer galinha no jantar de Natal…
- Que isso não aconteça enquanto eu for vivo, pelo menos – retorquiu Marco.
Baixando a voz para que os bisnetos não o ouçam, Marco pergunta:
- E aquele problema que me relataste o ano passado, acerca dos islâmicos que queriam
  infiltra-se… voltou a acontecer?
- Felizmente não, o que não admira, depois da recepção que demos aos anteriores…
- Ainda bem, não fazem cá falta nenhuma – respondeu Marco.
Continuando o seu caminho dirigem-se à sala comunitária, donde entretanto  foram retiradas as comidas. Com eles estão quase todos os turistas que assistiram ao jantar.
Das mochilas retiram colchões que se enchem automaticamente ao puxar de um cordão; enfiam-se nos sacos cama e deitam-se quase tão confortavelmente como se estivessem em casa, nos seus quartos. Ísis e Ícaro não adormecem facilmente, tal é o seu estado de excitação devido aos últimos acontecimentos.
Levantam-se cedo e depois de tomarem o pequeno almoço num café próximo da sala comunitária, voltam a percorrer as ruas enfeitadas, agora com as luzinhas apagadas, cruzando-se com uma ou outra pessoa, geralmente turistas que, como eles, aproveitam para passear. A felicidade que sentem por ali estarem é tão grande que até o ar lhes parece menos poluído do que fora da reserva. Nem têm necessidade de usar as máscaras que frequentemente utilizam no mundo onde vivem.
Não se apercebem da passagem das horas, mas em breve soa a sineta avisando que a sala comunitária vai abrir e quem quiser pode ali dirigir-se para participar do almoço de Natal.
Todos se dirigem para lá, repetindo o ritual da noite anterior.
Em breve a sala é invadida pelos odores das carnes assadas, galinha, perú e leitão, das batatinhas assadas e da fresca salada variada.
E como não poderia deixar de ser, findos os salgados segue-se a quantidade infindável de doces, como na noite anterior, acrescida de variados pudins.
Marco, Ísis e Ícaro terminam a refeição alegremente, e já a tarde vai avançada quando, com bastante pena, abandonam a reserva e regressam ao seu modermo apartamento, onde não encontram o mais leve vestígio de Natal.

No dia seguinte, ao acordarem, Ísis e Ícaro ficam a pensar se tudo não passou de um lindo sonho…