SEGREDOS –
CAPÍTULO XX
“…- A madrinha aprova – respondeu Bela, com um
grande sorriso. Miguel é um nome muito bonito.
Menos de um mês depois
Miguel viu a luz do dia.
Embalada nestas
recordações Nanda acabou por adormecer com um sorriso nos lábios…”
SEGREDOS –
CAPÍTULO XXI
Depois de uma
noite passada a sonhar com os tempos idos da sua juventude, enquanto tomava o
seu banho e se preparava para ir trabalhar, os seus pensamentos continuaram os
sonhos. Lembrava-se nitidamente da conversa com a Bela…
- Desculpa, mas
não posso deixar de te fazer uma pergunta. Sei que é muito indiscreta mas não
consigo descansar enquanto não ouvir a tua resposta…
- Para estares
com tantos rodeios e com esse ar tão sisudo… vem aí coisa grossa… Pergunta o
que tens a perguntar. Como sabes, não há perguntas indiscretas, as respostas é
que podem ser – pelo menos sempre ouvi dizer isto – Nanda
tentava aliviar a tensão que sentia na
amiga.
- Então, aí
vai. Tu casares-te com o Tó Zé foi para mim uma surpresa enorme, pois até há
pouco tempo eu sabia-te apaixonada pelo Alessandro…
- Na vida tudo
muda, minha querida, especialmente os sentimentos.
- Claro que
sim! Mas… entre vós, tu e o teu marido, existe amor?
- O amor pode
revestir-se das mais estranhas e diversas formas. O que nos une, a ti e a mim,
por exemplo, não é amor?
- Evidentemente
que sim! – apressou-se a responder Bela - Não tenho a mínima dúvida a esse respeito.
Mas… é diferente, nós sempre nos amámos, desde crianças. Tu e o Tó Zé sempre
foram grandes amigos, mas apenas isso. Inclusivamente, o teu “grande amor” era
o Alessandro.
- Volto a
repetir-te que os sentimentos não são imutáveis. Eu aprendi a amar o Tó Zé,
transformei a grande amizade que sentia por ele em amor. E ele… tu sabes…
sempre foi apaixonado por mim.
- Está tudo
muito certo mas… desculpa-me se sou demasiado insistente, faz-me confusão como
é que esqueceste o Alessandro com essa facilidade toda. Tu eras tão apaixonada
por ele…
- E tu já me
ouviste dizer que esqueci o Alessandro? Não, não o esqueci e, provavelmente,
nunca o vou esquecer – e pensou para si mesma “como
poderia esquecê-lo se tenho um filho dele?”
Apenas decidi
arrumá-lo muito bem num cantinho do coração, onde ninguém entra, pois cheguei à
conclusão de que nunca mais vou vê-lo, e a minha vida tinha de seguir em
frente. Não podia viver de recordações…
- Nisso tens
toda a razão – concordou Bela. Por vezes somos forçadas a fazer coisas que, não
sendo do nosso total agrado, são o melhor para tranquilidade de todos…
Nanda estranhou
o tom em que a amiga falou, assim como o seu semblante. Tinha adoptado um ar
meio ausente e com alguma tristeza.
De resto, desde
que Bela regressara, ela achava a amiga
diferente, não sabia bem dizer porquê, mas qualquer coisa nela se alterara.
Parecia que tinha amadurecido, como se tivessem passado muitos anos. Mas não
disse nada disto, pelo contrário, tentou aligeirar a conversa:
- Olha para
nós! Com menos de vinte anos e parecemos umas velhas!
- Tens toda a
razão! Vamos mudar de assunto. Como tem sido na Faculdade?
- Oh! Muito
mau, tenho faltado imenso, por causa da gravidez e consequentes enjoos. Estou
convencida que vai ser um ano perdido…
- Sabes uma
coisa? – respondeu Bela. Não te preocupes, voltas a ficar a par comigo, já que,
para mim, mais de metade das aulas foram ao ar… No próximo ano voltaremos a ser
colegas e poderemos matar as saudades do tempo do liceu.
- A ideia até
que me agrada… embora as coisas agora sejam totalmente diferentes. Com a
chegada do teu afilhado … o trabalho vai redobrar.
- Eu ajudo-te,
não te preocupes – Bela juntou às suas palavras um
sorriso luminoso.
O ruído da
chave a abrir a porta da rua interrompeu os pensamentos de Nanda. Era a
empregada, que ia todos os dias tratar do Tejo, levando-o a passear de manhã e
à tarde. Além disso ia lá um dia completo, por semana, para as limpezas e
tratamento das roupas.
“Agora, com o
ordenado que tenho, não se justificava ter de me sacrificar e levantar-me
cedíssimo para passear o Tejo, e à noite fazê-lo já com as luzes acesas. Também
mereço umas certas mordomias, depois de tantas horas na loja “ – pensava,
enquanto se dirigia ao centro comercial para cumprir mais um dia de trabalho.
Na ourivesaria
tudo corria bem. O engenheiro Araújo mostrava-se muito satisfeito com os
resultados obtidos. Passava por lá de vez em quando, examinava as contas, e
mostrava o seu reconhecimento pelo bom trabalho das funcionárias,
agradecendo-lhes. Quanto a Nanda, muitas vezes convidava-a para almoçar. Era
sempre ela que tinha de lembrar que “os horários são para cumprir”, porque ele adorava
conversar com ela, e esquecia-se das horas.
- Tem razão, já
estamos aqui há bastante tempo, e o seu patrão pode descontar-lhe no ordenado
os minutos de atraso – brincava ele.
- Ele talvez
não faça isso – Nanda entrava na brincadeira. Mas sujeito-me a
apanhar um bom raspanete da gerente…
O ambiente
entre ambos continuava muito bom, não exactamente como entre patrão e
empregada, mas como se de dois amigos se tratasse. Nanda sentia-se grata, não
só porque o ordenado que auferia era muitíssimo bom, mas também porque Araújo
estava sempre a pô-la à vontade para se ausentar da loja quando precisasse. Por
seu lado, ele também lhe era reconhecido pela dedicação com que ela se
entregava às suas tarefas, tratando dos assuntos da ourivesaria como se esta
lhe pertencesse.
Terminado o dia
de trabalho, passou pelo café Estrela, perto de sua casa, e comeu uma torrada acompanhando-a
com um chá de camomila; não se sentia com coragem para ir, ainda, fazer jantar.
Ao entrar em
casa encontrou, preparando-se para subir a escada, o seu vizinho do segundo
andar direito, Carlos
Manuel. É um homem de 27 anos, altíssimo - deve ter
pouco menos de dois metros de altura – negro, com
o cabelo completamente rapado, muito boa figura, duma
simpatia enorme.
Ao aperceber-se da entrada
de Nanda voltou-se para a cumprimentar.
- Boa noite, D. Nanda. Como
está a senhora?
Seria difícil
imaginar que de um homenzarrão como Carlos saísse uma voz tão suave.
Apresenta-se
impecavelmente vestido com calças e blusão pretos e uma t-shirt branca, pois
vem a chegar do trabalho, um restaurante onde exerce as funções de cozinheiro
chefe.
Nanda gosta muito dele.
Responde com um sorriso:
- Tudo bem, Carlos. E
consigo, como vão as coisas?
- Oh, sempre igual. Entre
Bombeiros e “sem abrigo” o tempo passa veloz. Às vezes vejo-me aflito para
conseguir cozinhar
– responde, sorridente, em ar de brincadeira.
- Isso é que não pode ser…
Os seus cozinhados fazem muita falta, pois são deliciosos.
- Eu falei por brincadeira,
mas sabe, D. Nanda? Às vezes custa-me fazer comida tão requintada, para, no
fim, só ser acessível a pessoas com um nível económico bem confortável. Depois,
ver aqueles “sem abrigo” passando tantas necessidades… é confrangedor.
- Acredito que lhe custe,
sofre com a dor dos outros… Mas não podemos remediar essa situação, não está
nas nossas mãos, e o que o Carlos faz, dando-lhes todo o apoio possível, é
muito louvável, e demonstra o seu bom coração.
- Oh, D. Nanda, o que eu
faço não é nada comparado com as dificuldades deles.
- Não é nada… é o que você
diz, mas não é verdade. Isso a juntar ao
facto de ser bombeiro voluntário faz de si uma boa pessoa. Mas, como não quero
envergonhá-lo – sei que não gosta que lhe ponham as virtudes a nu – vou mudar
de assunto. Há muito tempo que não ouço as suas canções…
Carlos gosta muito de
cantar. Como só vai para o restaurante por volta das onze horas, muitas vezes
ouve-se no prédio a sua linda voz tendo como fundo música apenas instrumental, que
ele acompanha, com todo o entusiasmo. Isto provoca alguma animosidade e uma
certa inveja em António, seu vizinho do lado, que também gosta muito de cantar,
o que faz muitas vezes, com a sua bela voz de barítono. Mas não tem qualquer
razão para invejar Carlos que, embora cante num grupo coral, não tem a voz
potente e educada de António.
Ao ouvir Nanda referir-se às
suas “cantorias” – como ele próprio se refere às suas canções – ele deu uma
gargalhada.
- Ultimamente não tenho
estado muito tempo em casa. Arranjei aí um trabalhito para fazer de manhã, por
isso saio de casa muito cedo. Mas olhe, tenho de recomeçar com as minhas festas,
tão habituais neste prédio. Estou a pensar numa festinha no próximo sábado, e
fica já o convite feito. Conto consigo! Vou também convidar a Amélia, como de
costume, e, desta vez, vou acrescentar uma pessoa – o António, o meu vizinho da
frente.
- Ai meu Deus! A Amélia e o
António juntos?
– exclamou Nanda, com assombro, e baixando a voz. Não sei, não… Aproximar a
palha do fogo, pode causar incêndio – ambos riram, coniventes.
No prédio todos conheciam as
querelas entre Amélia e António, o que os fazia rir, pois não os levavam a
sério. Demais sabiam eles que aquelas escaramuças escondiam uma atracção que só
mesmo eles não queriam admitir publicamente.
Carlos despediu-se com a
recomendação “não marque nada para o próximo sábado, D. Nanda, olhe que não faço
a festa sem a sua presença”, o que provocou nela um sorriso bem disposto.
O Tejo recebeu-a com
efusivos ganidos de satisfação, como era habitual. Tinha uma verdadeira
adoração pela sua dona, que lhe retribuía com muito amor.
Nanda encaminhou-se para o
quarto. Só então se apercebeu verdadeiramente do cansaço que tinha. “Parece-me
que os anos estão a começar a fazer sentir os seus efeitos. Acho que vou ter de
me convencer que já não tenho vinte anos e preciso ir doseando o esforço. Afinal,
tendo um Araújo por patrão – sorriu involuntariamente – posso bem meter uma
folgazinha de vez em quando. É mesmo isso que vou começar a fazer”.
Entretanto já trocara de
roupa e, pronta para se deitar, olhou enternecida, como todas as noites fazia,
para a foto dos seus dois filhos, bebés, que tinha sobre a cómoda.
Pensou no neto, no seu filho
Miguel, nos tempos idos de recém casada, em Alessandro, e adormeceu
tranquilamente.
Maria Caiano Azevedo