segunda-feira, 1 de junho de 2020

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XXI


SEGREDOS – CAPÍTULO XX

“…- A madrinha aprova – respondeu Bela, com um grande sorriso. Miguel é um nome muito bonito.
Menos de um mês depois Miguel viu a luz do dia.
Embalada nestas recordações Nanda acabou por adormecer com um sorriso nos lábios…”

SEGREDOS – CAPÍTULO XXI

Depois de uma noite passada a sonhar com os tempos idos da sua juventude, enquanto tomava o seu banho e se preparava para ir trabalhar, os seus pensamentos continuaram os sonhos. Lembrava-se nitidamente da conversa com a Bela…
- Desculpa, mas não posso deixar de te fazer uma pergunta. Sei que é muito indiscreta mas não consigo descansar enquanto não ouvir a tua resposta…
- Para estares com tantos rodeios e com esse ar tão sisudo… vem aí coisa grossa… Pergunta o que tens a perguntar. Como sabes, não há perguntas indiscretas, as respostas é que podem ser – pelo menos sempre ouvi dizer isto – Nanda tentava aliviar a tensão  que sentia na amiga.
- Então, aí vai. Tu casares-te com o Tó Zé foi para mim uma surpresa enorme, pois até há pouco tempo eu sabia-te apaixonada pelo Alessandro…
- Na vida tudo muda, minha querida, especialmente os sentimentos.
- Claro que sim! Mas… entre vós, tu e o teu marido, existe amor?
- O amor pode revestir-se das mais estranhas e diversas formas. O que nos une, a ti e a mim, por exemplo, não é amor?
- Evidentemente que sim! – apressou-se a responder Bela -  Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. Mas… é diferente, nós sempre nos amámos, desde crianças. Tu e o Tó Zé sempre foram grandes amigos, mas apenas isso. Inclusivamente, o teu “grande amor” era o Alessandro.
- Volto a repetir-te que os sentimentos não são imutáveis. Eu aprendi a amar o Tó Zé, transformei a grande amizade que sentia por ele em amor. E ele… tu sabes… sempre foi apaixonado por mim.
- Está tudo muito certo mas… desculpa-me se sou demasiado insistente, faz-me confusão como é que esqueceste o Alessandro com essa facilidade toda. Tu eras tão apaixonada por ele…
- E tu já me ouviste dizer que esqueci o Alessandro? Não, não o esqueci e, provavelmente, nunca o vou esquecer – e pensou para si mesma “como poderia esquecê-lo se tenho um filho dele?”
Apenas decidi arrumá-lo muito bem num cantinho do coração, onde ninguém entra, pois cheguei à conclusão de que nunca mais vou vê-lo, e a minha vida tinha de seguir em frente. Não podia viver de recordações…
- Nisso tens toda a razão – concordou Bela. Por vezes somos forçadas a fazer coisas que, não sendo do nosso total agrado, são o melhor para tranquilidade de todos…
Nanda estranhou o tom em que a amiga falou, assim como o seu semblante. Tinha adoptado um ar meio ausente e com alguma tristeza.
De resto, desde que  Bela regressara, ela achava a amiga diferente, não sabia bem dizer porquê, mas qualquer coisa nela se alterara. Parecia que tinha amadurecido, como se tivessem passado muitos anos. Mas não disse nada disto, pelo contrário, tentou aligeirar a conversa:
- Olha para nós! Com menos de vinte anos e parecemos umas velhas!
- Tens toda a razão! Vamos mudar de assunto. Como tem sido na Faculdade?
- Oh! Muito mau, tenho faltado imenso, por causa da gravidez e consequentes enjoos. Estou convencida que vai ser um ano perdido…
- Sabes uma coisa? – respondeu Bela. Não te preocupes, voltas a ficar a par comigo, já que, para mim, mais de metade das aulas foram ao ar… No próximo ano voltaremos a ser colegas e poderemos matar as saudades do tempo do liceu.
- A ideia até que me agrada… embora as coisas agora sejam totalmente diferentes. Com a chegada do teu afilhado … o trabalho vai redobrar.
- Eu ajudo-te, não te preocupes – Bela juntou às suas palavras um sorriso luminoso.
O ruído da chave a abrir a porta da rua interrompeu os pensamentos de Nanda. Era a empregada, que ia todos os dias tratar do Tejo, levando-o a passear de manhã e à tarde. Além disso ia lá um dia completo, por semana, para as limpezas e tratamento das roupas.
“Agora, com o ordenado que tenho, não se justificava ter de me sacrificar e levantar-me cedíssimo para passear o Tejo, e à noite fazê-lo já com as luzes acesas. Também mereço umas certas mordomias, depois de tantas horas na loja “ – pensava, enquanto se dirigia ao centro comercial para cumprir mais um dia de trabalho.
Na ourivesaria tudo corria bem. O engenheiro Araújo mostrava-se muito satisfeito com os resultados obtidos. Passava por lá de vez em quando, examinava as contas, e mostrava o seu reconhecimento pelo bom trabalho das funcionárias, agradecendo-lhes. Quanto a Nanda, muitas vezes convidava-a para almoçar. Era sempre ela que tinha de lembrar que “os horários são para cumprir”, porque ele adorava conversar com ela, e esquecia-se das horas.
- Tem razão, já estamos aqui há bastante tempo, e o seu patrão pode descontar-lhe no ordenado os minutos de atraso – brincava ele.
- Ele talvez não faça isso – Nanda entrava na brincadeira. Mas sujeito-me a apanhar um bom raspanete da gerente…
O ambiente entre ambos continuava muito bom, não exactamente como entre patrão e empregada, mas como se de dois amigos se tratasse. Nanda sentia-se grata, não só porque o ordenado que auferia era muitíssimo bom, mas também porque Araújo estava sempre a pô-la à vontade para se ausentar da loja quando precisasse. Por seu lado, ele também lhe era reconhecido pela dedicação com que ela se entregava às suas tarefas, tratando dos assuntos da ourivesaria como se esta lhe pertencesse.
Terminado o dia de trabalho, passou pelo café Estrela, perto de sua casa, e comeu uma torrada acompanhando-a com um chá de camomila; não se sentia com coragem para ir, ainda, fazer jantar.
Ao entrar em casa encontrou, preparando-se para subir a escada, o seu vizinho do segundo andar direito, Carlos Manuel. É um homem de 27 anos, altíssimo - deve ter pouco menos de dois metros de altura – negro, com o cabelo completamente rapado, muito boa figura, duma simpatia enorme.
Ao aperceber-se da entrada de Nanda voltou-se para a cumprimentar.
- Boa noite, D. Nanda. Como está a senhora?
Seria difícil imaginar que de um homenzarrão como Carlos saísse uma voz tão suave.
Apresenta-se impecavelmente vestido com calças e blusão pretos e uma t-shirt branca, pois vem a chegar do trabalho, um restaurante onde exerce as funções de cozinheiro chefe.
Nanda gosta muito dele. Responde com um sorriso:
- Tudo bem, Carlos. E consigo, como vão as coisas?
- Oh, sempre igual. Entre Bombeiros e “sem abrigo” o tempo passa veloz. Às vezes vejo-me aflito para conseguir cozinhar – responde, sorridente, em ar de brincadeira.
- Isso é que não pode ser… Os seus cozinhados fazem muita falta, pois são deliciosos.
- Eu falei por brincadeira, mas sabe, D. Nanda? Às vezes custa-me fazer comida tão requintada, para, no fim, só ser acessível a pessoas com um nível económico bem confortável. Depois, ver aqueles “sem abrigo” passando tantas necessidades… é confrangedor.
- Acredito que lhe custe, sofre com a dor dos outros… Mas não podemos remediar essa situação, não está nas nossas mãos, e o que o Carlos faz, dando-lhes todo o apoio possível, é muito louvável, e demonstra o seu bom coração.
- Oh, D. Nanda, o que eu faço não é nada comparado com as dificuldades deles.
- Não é nada… é o que você diz, mas  não é verdade. Isso a juntar ao facto de ser bombeiro voluntário faz de si uma boa pessoa. Mas, como não quero envergonhá-lo – sei que não gosta que lhe ponham as virtudes a nu – vou mudar de assunto. Há muito tempo que não ouço as suas canções…
Carlos gosta muito de cantar. Como só vai para o restaurante por volta das onze horas, muitas vezes ouve-se no prédio a sua linda voz tendo como fundo música apenas instrumental, que ele acompanha, com todo o entusiasmo. Isto provoca alguma animosidade e uma certa inveja em António, seu vizinho do lado, que também gosta muito de cantar, o que faz muitas vezes, com a sua bela voz de barítono. Mas não tem qualquer razão para invejar Carlos que, embora cante num grupo coral, não tem a voz potente e educada de António.
Ao ouvir Nanda referir-se às suas “cantorias” – como ele próprio se refere às suas canções – ele deu uma gargalhada.
- Ultimamente não tenho estado muito tempo em casa. Arranjei aí um trabalhito para fazer de manhã, por isso saio de casa muito cedo. Mas olhe, tenho de recomeçar com as minhas festas, tão habituais neste prédio. Estou a pensar numa festinha no próximo sábado, e fica já o convite feito. Conto consigo! Vou também convidar a Amélia, como de costume, e, desta vez, vou acrescentar uma pessoa – o António, o meu vizinho da frente.
- Ai meu Deus! A Amélia e o António juntos? – exclamou Nanda, com assombro, e baixando a voz. Não sei, não… Aproximar a palha do fogo, pode causar incêndio – ambos riram, coniventes.
No prédio todos conheciam as querelas entre Amélia e António, o que os fazia rir, pois não os levavam a sério. Demais sabiam eles que aquelas escaramuças escondiam uma atracção que só mesmo eles não queriam admitir publicamente.
Carlos despediu-se com a recomendação “não marque nada para o próximo sábado, D. Nanda, olhe que não faço a festa sem a sua presença”, o que provocou nela um sorriso bem disposto.
O Tejo recebeu-a com efusivos ganidos de satisfação, como era habitual. Tinha uma verdadeira adoração pela sua dona, que lhe retribuía com muito amor.
Nanda encaminhou-se para o quarto. Só então se apercebeu verdadeiramente do cansaço que tinha. “Parece-me que os anos estão a começar a fazer sentir os seus efeitos. Acho que vou ter de me convencer que já não tenho vinte anos e preciso ir doseando o esforço. Afinal, tendo um Araújo por patrão – sorriu involuntariamente – posso bem meter uma folgazinha de vez em quando. É mesmo isso que vou começar a fazer”.
Entretanto já trocara de roupa e, pronta para se deitar, olhou enternecida, como todas as noites fazia, para a foto dos seus dois filhos, bebés, que tinha sobre a cómoda.
Pensou no neto, no seu filho Miguel, nos tempos idos de recém casada, em Alessandro, e adormeceu tranquilamente.

Maria Caiano Azevedo