domingo, 1 de dezembro de 2019

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XV


SEGREDOS – CAPÍTULO XV


 SEGREDOS – CAPÍTULO XIV
“…Como se fosse preciso… Linda e elegante como a Nanda é, não precisa desses sonos… e qualquer trapinho lhe fica bem.
- Concordo com a Amélia – acrescentou Carla.
- Vocês são muito simpáticas, agradeço muito, mas prefiro tomar as minhas providências. Vamos, Tejo! 
Nanda abriu a porta da sua casa e despediu-se com um “até amanhã” …

SEGREDOS – CAPÍTULO XV
Depois de Nanda se retirar Carla e Amélia ainda ficaram uns momentos a conversar até que acabaram por se despedir.
Amélia, ao subir as escadas para sua casa, ia pensando:
“Ainda bem que a Nanda puxou a conversa da dança no varão. Afinal, a Carla acolheu a ideia muito melhor do que eu poderia imaginar; e eu sinto um alívio enorme em não ter de manter este segredo que tanto me incomoda. Não é que me pese a consciência, pois nunca fiz nada menos digno naquele bar. Mas não gosto de segredos; sempre me orientei pela ideia de que a vida deve ser como um livro aberto, sem nada a esconder”.
Quando chegou ao patamar pareceu-lhe ver uma sombra a tentar esconder-se. Sorriu, pois quase tinha a certeza de que, mais uma vez, o vizinho de cima, António, estava à sua espreita.
Relembrando a conversa de Nanda, com um sorriso no rosto entrou em casa e foi tratar do seu jantar.
Até que a ideia da amiga não lhe desagradava de todo. Bem vistas as coisas… porque não? O António, embora não fosse nenhum jovem, não era ainda um velho.
- Terá mais uns oito ou dez anos do que eu - murmurou para si mesma.
É viúvo e tem, ao que consta, uma boa situação financeira. Foi sargento no tempo da Guerra Colonial, e por lá andou. Tanto quanto se sabe foi um herói, o que lhe valeu algumas medalhas que tem num expositor – diz quem já foi a sua casa.
Frequenta uma universidade sénior, porque é de opinião que “o saber não ocupa lugar”; ao mesmo tempo isto permite-lhe preencher as longas horas em que nada tem para fazer. Em casa entretém-se a ouvir música, a ler, e a tratar das sardinheiras que tem na varanda e que, ao regar, propositadamente faz extravasar a água dos vasos, que cai na varanda da vizinha de baixo, Amélia, só para a arreliar.
Gosta de cantar e tem uma bela voz de barítono. Coloca na aparelhagem os discos de áreas de ópera que ele acompanha, enchendo o prédio de música e encantando os vizinhos, excepto Amélia, que se farta de refilar, mas que, no fundo gosta de o ouvir
Tem dois gatos – os quais preenchem parte do seu tempo - que gostam muito de se lhe sentar no colo. De dia não se dá por eles, mas de noite divertem-se em grandes correrias, o que é motivo para Amélia se queixar do barulho que não a deixa descansar.
No fundo, todas as suas reclamações são apenas pretextos para chamar a atenção de António. A verdade é que, não o confessando nem sequer o querendo reconhecer, sente uma forte atracção por ele.
Ruminando estes pensamentos jantou, vestiu o pijama, e murmurou para si mesma: “Já que hoje não tenho alunas vou mas é deitar-me, que amanhã, com a ida aos Bombeiros, tenho um dia cheio de trabalho”.

Nanda entrou no seu apartamento e depois de comer uma refeição ligeira, preparou as roupas para o dia seguinte, e pôs-se à vontade para se deitar. Mas, com a excitação que lhe causava a ideia do encontro do dia seguinte com o Araújo, o sono tinha desaparecido. Apesar da hora adiantada, foi para a sala.
Ligou a música em tom baixo, e abriu a porta do bar, do lado direito do aparador. Olhou, procurando a bebida que iria beber. Não lhe apetecia muito um licor – àquela hora não queria uma bebida doce. Optou por Whisky. Serviu-se, foi à cozinha buscar gelo, e, à média luz, recostou-se no sofá.
De olhos fechados deliciava-se ouvindo a música suave, tomando um gole de whisky, vagarosamente. Sem opor resistência, como num sonho, deixava-se embalar por aquela quietude.
Lentamente, como que a levitar, encaminhou-se para a janela e olhou lá para fora. Na semi-claridade do amanhecer avistou, na praia, um vulto que lhe pareceu familiar.
Mas… Não! Não podia ser verdade! Aquela figura que caminhava na areia, a princípio apenas difusa, à medida que se aproximava… sim, não havia dúvidas! Era o Luís. Mas porque andaria ele na praia, àquela hora matinal?
Na longínqua linha do horizonte vislumbravam-se já os primeiros rubores da alvorada, anunciando mais um dia de sol e calor.
Na praia, Luís, descalço na areia fria, um ar desalentado, ombros descaídos, no rosto bronzeado as fundas olheiras denunciavam uma longa noite de insónia.
Com visível esforço ia caminhando lentamente quando, inesperadamente, avistou o seu irmão Miguel.
Este, alegremente, aproximou-se em passo rápido para saudar o irmão; mas imobilizou-se ao atentar bem no aspecto de Luís. Com ar de espanto, exclamou:
- Eh! Pá, estás cá com uma cara que mete medo ao susto!
- Não me digas nada, pá. Nem imaginas o que me aconteceu.
- Não, não posso imaginar o que te pôs nesse estado! Viste algum fantasma?
- Bem pior do que isso… mas antes diz-me: o que fazes tu aqui na praia a estas horas, com esse ar tão feliz? Ainda mal nasceu o dia…
- Eu conto, sim, mas depois. Primeiro quero saber de ti.
Nanda abria a boca de espanto. Como era possível? O seu filho Miguel vivia na Bélgica, com a Farida: o Luís ainda ontem estava no Alentejo, acabara de ser pai… A que propósito estavam os dois ali na praia, conversando como se se tivessem visto na véspera?
Resolveu continuar a prestar atenção à conversa dos dois irmãos.
- Tudo bem, então eu falo primeiro – respondeu Luís.
Ontem, para festejar o nascimento do meu filho (a mãe contou-te… penso eu) fui com uns amigos beber umas granjolas. A certa altura o Xico (lembras-te dele…) propôs que passássemos para bebidas mais fortes. A ocasião até justificava… e todos concordaram.
Já estávamos bem bebidos quando entra no bar um grupo de mulheres, todas em grande risota. Depois de ligeira hesitação, cochicharam e dirigiram-se para a nossa mesa. Imagina quem fazia parte do grupo… A Bela!
- O quê? A Bela, amiga da mãe?
- Claro! Conheces mais alguma Bela?
- Não. Mas continua!
Neste ponto Nanda sentiu-se desfalecer. Bela, a sua melhor amiga, num bar “daqueles”? Não podia ser. O seu filho Luís devia estar completamente bêbado e tinha-a confundido com uma galdéria qualquer!...
Com esta ideia recuperou a calma e continuou ouvindo a conversa. Luís dizia:
- Sentaram-se ao pé de nós e pediram bebidas iguais às nossas. Não sei quanto tempo depois disseram que se iam embora, e ali mesmo se formaram casais… A mim calhou-me a Bela.
- O quê? Estás a brincar!...
- Antes estivesse… Mas não estou, aconteceu mesmo. Fui com a Bela para casa dela. Levou-me para o quarto e… enfim, podes imaginar o que se seguiu. Tu conheces a Bela…
- Conheço, conheço…
- Sabes que ela consegue ser espantosa! Mete-te no coração e tu nem te atreves a reagir…
- Lá isso é verdade…
-Pois então! Quando dei com aqueles olhos líquidos, que prometiam delírios, a fixarem-me intensamente, quando me senti docemente envolvido nos seus braços, a Bela desprendeu-se, foi até à porta do quarto, abriu-a, e, em altos brados, exclamou:
- SURPRESA!
Foi mesmo uma surpresa, uma enorme surpresa!
Afastando-se para o lado apresentou-me uma mulher horrenda!
Não era ainda velha, mas feia como a noite dos trovões! Um olho abaixo e outro acima, mirando cada um para seu lado, a boca torta, desdentada, ostentando um sorriso alvar. Só lhe faltavam os pêlos no nariz para ser uma autêntica bruxa, saída de um conto de Andersen.
- E qual foi a tua reacção?
- A princípio fiquei sem acção. Mas quando vi o riso de escárnio e gozo na cara da Bela… atirei-me – literalmente – pela janela, meti-me no carro, e vim para aqui. Sabes como o mar é para mim um calmante…
- Razão tens tu para estar com esse aspecto horrível…
- Digo-te, foi a pior experiência da minha vida. Mas diz-me tu agora: com esse ar tão feliz…onde passaste a noite?
- Eu? Eu… passei a noite com a Bela.

O estrondo de um copo a estilhaçar-se no chão fez estremecer e acordar Nanda, sentada no sofá. O Tejo, deitado a seus pés, deu um salto, olhando a dona, espantado.
Nanda, estremunhada, pensou: “Mas que sonho tão disparatado! Terá algum significado? Sonhar com os meus filhos… é natural. Ainda para mais com a vinda do Luís, amanhã, e a promessa do Miguel de vir de férias brevemente… Mas tudo o resto é tão sem nexo! E a que propósito aparece a Bela no meio de toda esta confusão? Oxalá não seja prenúncio de alguma coisa má…
E como fui adormecer aqui no sofá? “
Aquela sensação estranha não a deixava ter sossego. Não conseguia perceber o motivo… mas sentia-se incomodada. Era como se “algo” quisesse avisá-la de algum perigo que a espreitava.
Num impulso pegou no telemóvel e, esquecendo a hora tardia, ligou para Bela.
Esta ficou admiradíssima ao ouvir a voz da amiga.
- Então, querida, que se passa? – perguntou num tom de voz bastante apreensivo.
- Nada de especial, apenas… apeteceu-me falar contigo. Não sei porquê adormeci no sofá e, vê lá tu que sonhei contigo! – disse dum modo que pretendia parecer despreocupado.
- É sempre um prazer falar contigo, tu sabes, mas a estas horas já não esperava fazê-lo. Embora hoje não me tenhas ligado – acrescentou com mágoa na voz.
- Desculpa-me, querida, mas foi um dia bastante exaustivo. Já te contei que o Luís vem amanhã para cima?
- Sim, contaste, e que é o Tó Zé que vai buscá-los. Imagino a tua ansiedade para conheceres o teu netinho…
- É verdade que estou muito ansiosa. Mas as coisas acontecem todas ao mesmo tempo. Amanhã também é o dia em que vou falar com o engenheiro Araújo.
- Ah, pois – respondeu Bela em tom de desagrado.
Se, por um lado estava muito feliz porque a sua amiga tinha, finalmente, conseguido arranjar trabalho, por outro lado custava-lhe conformar-se que ela não quisesse ir trabalhar para a empresa do seu pai.
Nanda, ainda com aquela sensação estranha, perguntou:
- E o teu dia como foi? Fizeste alguma coisa de especial?
- Não, nada de especial, a mesma rotina de sempre.
- Nem sequer saíste à noite para tomar um café?
- Não. Talvez por ter sido um dia sensaborão – e sem sequer me telefonares – não me apeteceu sair. Sentei-me na sala, pus música baixo, liguei a televisão sem som… e pronto, assim passei a noite. Agora estava para me ir deitar quando ouvi o telemóvel e vi que eras tu, senão nem sequer teria atendido. – respondeu Bela.
Despediram-se com os beijinhos habituais. Nanda sentiu-se mais descansada depois de falar com a sua melhor amiga. Não sabia explicar porquê mas o facto de Bela lhe ter dito que não saíra de casa à noite deu-lhe um certo conforto.
A noite não foi muito reparadora. Dormiu sonos curtos e inquietos.
                                                  *
A temperatura baixara bastante durante a noite.
Nanda sentiu um arrepio ao sair de casa para ir ao encontro de Araújo.
“Este arrepio será um mau presságio? “- pensou
Felizmente vestira uma blusa de mangas compridas por debaixo do elegante tailleur de meia estação.
O Verão estava a chegar ao fim, por isso não era de estranhar que as manhãs fossem frescas – pensava ela enquanto caminhava, tentando afastar aquela má impressão que lhe causara o arrepio à saída de casa.
“Será que alguma coisa vai acontecer neste encontro”?
  
Maria Caiano Azevedo