quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS XVI


SEGREDOS – CAPÍTULO XVI
 
SEGREDOS – CAPÍTULO XV
“… O Verão estava a chegar ao fim, por isso não era de estranhar que as manhãs fossem frescas – pensava ela enquanto caminhava, tentando afastar aquela má impressão que lhe causara o arrepio à saída de casa.
“Será que alguma coisa vai acontecer neste encontro”? … “

SEGREDOS – CAPÍTULO XVI
Ao entrar no Café Estrela Nanda verificou que o Araújo já lá estava. Isso não lhe agradou, pois poderia ser interpretado por ele como “falta de pontualidade” embora faltassem uns minutos para a hora marcada. Aliás, não tinham combinado uma hora certa, apenas tinham falado em “por volta das dez”, e ainda não eram dez horas.
De qualquer modo, ela voltou a sentir um ligeiro arrepio, sugestionada que estava pelo sonho estranho e o desconforto que sentira ao sair de casa.
Compôs o sorriso que conseguiu arranjar ao dirigir-se ao engenheiro:
- Ah! Já cá está! É imperdoável eu chegar depois de si, morando aqui tão perto…
- Não se penitencie, que não há motivo para isso – respondeu ele, com um largo sorriso. O que aconteceu é que, já que tinha que me levantar cedo – voltou a sorrir - aproveitei para fazer o meu footing, como pode comprovar pelo meu traje…
De facto Araújo estava em fato de treino e não com o habitual “fato e gravata” como Nanda sempre o vira, destoando completamente do elegante tailleur que ela vestia. Começava a arrepender-se de se ter esmerado tanto na aparência. Contudo, Araújo pô-la à vontade:
- Se você não se importasse eu levava-a já para o Centro Comercial e deixava-a na Ourivesaria. E enquanto lia o contrato que redigi, eu dava um saltinho a minha casa, que é muito perto, tomava um duche rápido e depois ia ter consigo. Só não o fiz ainda, e preferi passar já por aqui primeiro, apenas para que você não chegasse cá e ficasse à minha espera. Como vê… o atrasado sou eu – acrescentou com um sorriso.
Nanda começava a sentir-se mais descontraída. E pensava: “Eu e os meus pessimismos!” “Vai correr tudo bem”.
Concordando com a proposta do Araújo ambos se dirigiram ao carro e encaminharam-se para o Centro. Araújo acompanhou-a até à Ourivesaria, abriu a porta e, entrando no escritório, pegou num pequeno molho de chaves que estavam sobre a secretária e entregou-lhas, dizendo:
- Já mandei fazer chaves para si, o que significa que não aceitarei um “não” à proposta que em breve lhe vou apresentar. Deixe-me só ir pôr-me eu apresentável – disse com um largo sorriso. E afastou-se.
A maioria das lojas começava a abrir as portas; Nanda não se sentiu sozinha.
Seguindo a sugestão de Araújo começou a ler o contrato que ele redigira. Eram três folhas dactilografadas onde constavam os direitos e deveres de ambas as partes, empregado e empregador, (estas duas alíneas por preencher), estipulando um período experimental de seis meses. Durante esse tempo qualquer das partes o poderia rescindir, de comum acordo, sem qualquer direito a indemnizações.
Pela parte que concerne às obrigações do empregado Nanda verifica que lhe é atribuída uma grande responsabilidade. Para além de ter de tratar de toda a contabilidade é ainda responsável pelas duas empregadas que serão atendentes de balcão. Irá orientá-las em todos os aspectos: na forma de atender os clientes, organizando-lhes os horários – já que a loja estará aberta desde as dez da manhã até às dez da noite – períodos de férias, etc.
Nanda começa a temer que lhe esteja a ser exigido demasiado, até porque nunca exerceu funções deste género; sempre foi responsável apenas por si mesma e pelo seu próprio desempenho.
Leu e releu tudo, para se inteirar bem do que lhe estava a ser proposto.
Araújo regressou, vestido de fato e gravata como habitualmente. Em tom de brincadeira, comentou:
- Agora já posso estar ao pé de si sem me envergonhar!
Nanda correspondeu ao sorriso, entrando no tom alegre:
- Foi rápido a fazer a toalete. Olhe que eu demoro mais tempo…
- Claro! As senhoras demoram tempos infindos para se arranjarem! Se vão a uma festa, então, começam a preparar-se de véspera… E mesmo assim chegam atrasadas! – riu Araújo.
- Ai que grande mentira! Eu arrumo-me num ápice!
- Posso imaginar – troçou ele. Bom, mas vamos deixar-nos de piropos e passemos aos negócios. Leu todo o “testamento”?
- Sim, li tudo, e confesso que fiquei um pouco apreensiva…
- E porquê?
- Porque parece que está a exigir de mim uma grande responsabilidade… Eu posso responder pelo meu trabalho. Tenho consciência de que sou uma boa profissional, e em todos os empregos onde estive sempre recebi um bom “feedback” acerca do meu desempenho…
- E acha que eu não sei disso? – ripostou Araújo, com um sorriso. Eu tinha as minhas razões para insistir tanto consigo para que viesse trabalhar comigo…
- Calculo que tenha tirado informações a meu respeito, nem outra coisa seria de esperar… Mas, eu nunca estive a orientar o trabalho de ninguém, nem fui responsável pelo cumprimento da parte de terceiros. E isso assusta-me um pouco…
- Não há qualquer razão para sustos. Tenho a certeza de que você se vai sair muito bem. No fundo, as suas funções aqui serão como governar a sua casa. Quero que se sinta como se fosse a dona deste negócio. Até porque não tenciono passar cá muito tempo. A princípio até posso vir todos os dias, para lhe dar um certo apoio, ver se sente alguma dificuldade, se posso ajudar nalguma coisa. Mas… eu disse-lhe, tenho negócios no estrangeiro que me obrigarão a estar ausente muitas vezes. Para além do mais eu avisei-a de que “pago bem mas sou muito exigente” … lembra-se?
- Sim, lembro-me, claro.
- Pois então… falta-nos falar exactamente desse ponto – a remuneração. Veja se concorda com este número – e estendeu-lhe um papel com um valor escrito.
Nanda segurou no papel, leu uma vez e outra, engoliu em seco, e quase não acreditava nos seus olhos. Não conseguiu pronunciar uma palavra.
Araújo olhava-a, esperando uma reacção, que tardava…
- Claro que essa é a minha proposta… disse, com certa preocupação. Mas se você entender pode apresentar uma contraproposta… Não vai ser por causa da sua remuneração que não vamos fechar o nosso contracto.
- Não, não é isso, eu fiquei um pouco surpresa, apenas – gaguejou Nanda. Acho que você tinha razão quando disse que “a um bom pagamento corresponderia uma boa prestação de serviços” – não foi por estas palavras mas era isto que queria dizer…
- Efectivamente, assim é. Considero uma remuneração justa para o muito que estou a exigir de si, mas, como lhe disse, podemos considerar um acerto… - contrapôs Araújo.
- Não, não me parece necessário qualquer acerto, até porque temos um período experimental de seis meses, não é isso? – respondeu Nanda, já mais recomposta.
- Exactamente. Como você sabe, os períodos experimentais não costumam ser tão prolongados, mas a minha ideia é esta: se o negócio correr bem, e estivermos satisfeitos um com o outro, continuaremos, e você passará a efectiva; se correr mal… trespasso a Orvalho de Prata, e cada um segue o seu rumo, sem direito a indemnizações, de parte a parte…
- Parece-me justo – respondeu Nanda.
- Vamos então formalizar esta papelada. Preciso de uns dados seus, como nome completo, morada, identificação…
- Com certeza.
Depois de tudo em ordem despediram-se, concordando que inaugurariam a ourivesaria no próximo sábado. Araújo ofereceu-se para levá-la a casa, mas ela recusou: “A distância não era assim tão grande, e aproveitava para fazer o que ele fizera logo pela manhã – o seu footing”. “Amanhã lá estaria, como combinado, para tratar dos preparativos para a inauguração”.
À saída Nanda sentia-se leve como uma pluma. Parecia que os seus pés nem tocavam o chão, era como se estivesse a voar…
Afinal, depois de tantos maus presságios – via, agora, que tudo não passara de imaginação sua – o dia começara duma forma excepcional. Ainda lhe custava a creditar na proposta de vencimento que Araújo lhe fizera. Estava a léguas de distância de tudo que ela pudesse imaginar. “É certo que vou ter uma responsabilidade enorme. O ouro não está, propriamente, ao preço da chuva, e numa ourivesaria, grande como a Orvalho de Prata, movimentam-se milhões. Estou a prever passar muitas noites sem dormir, com a preocupação… Mas vai valer a pena!”
Telefonou a Bela para combinar almoçarem juntas e contar-lhe as últimas novidades.
Apetecia-lhe cantar, mas lembrou-se que estava na rua e, sorrindo, entoou para si mesma a sua canção preferida – a primeira que dançara com Alessandro, no bar da praia, no seu 18º. Aniversário…
E, irresistivelmente, o seu pensamento voou… Aquela última noite…
***
"… Depois do telefonema puseram-se a caminho do apartamento de Alessandro…"
Aquela noite jamais se apagou da memória de Nanda. Amaram-se até à exaustão, com um frenesim incontrolável. Ambos tinham a sensação de que esta era a última vez em que estariam juntos, e por isso não podiam perder um só segundo. Entre espasmos de prazer e lágrimas doloridas, faziam juras de amor eterno.
Sentiam-se únicos à face da Terra. A vida parara no tempo. Todos os relógios do mundo tinham suspendido a sua contagem.
Os corpos fundiam-se, em comunhão total. Murmuravam palavras inflamadas, que lhes provocavam arrepios de prazer.
Desejavam que a noite jamais acabasse, que desaparecesse tudo em redor, que ficassem assim, abraçados, para toda a eternidade, quais estátuas de sal, petrificadas.
Mas o tempo não parava, por mais que eles o desejassem. Os alvores matinais encontraram-nos acordados, desesperados pelo aproximar da separação que os aguardava.
Entre lágrimas e suspiros abraçavam-se uma e outra vez, querendo fugir ao inevitável.
Mas a realidade acabou por mostrar-lhes que era chegada a hora de Alessandro ir para o aeroporto. Nanda queria acompanhá-lo, mas ele conseguiu dissuadi-la, preferindo que se despedissem ali mesmo, sem testemunhas.
A custo, separaram-se. A pedido de Alessandro Nanda saiu, como se fossem encontrar-se mais tarde, talvez para almoçar…
Foi a última vez que se viram. O contacto, por carta, manteve-se por largos meses, mas mesmo esse elo acabou por se quebrar. Nanda ficou com uma recordação para toda a vida.

Maria Caiano Azevedo