sábado, 1 de junho de 2019

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS X


SEGREDOS – CAPÍTULO X



SEGREDOS – CAPÍTULO X

CAPÍTULO IX
“…Mas enfim, ela lá terá tido as suas razões para guardar segredo.
E… quem é que não guarda algum segredo da sua vida qua não revela a ninguém? Infelizmente sei-o bem, por experiência própria…”
Ruminando estes pensamentos acercou-se do prédio onde morava. O Tejo, pressentindo-a, começou logo a raspar o chão por detrás da porta… “

CAPÍTULO X
Nanda teve alguma dificuldade em abrir a porta tal era a ansiedade do Tejo do lado de dentro. Quando por fim conseguiu entrar quase era derrubada por ele. À manifestação de alegria juntava-se a necessidade de ir aliviar a bexiga; Nanda não perdeu tempo – foi de imediato buscar a trela e saiu rapidamente.
Tejo conhece perfeitamente o caminho para o parque. A pressa de lá chegar leva-o a quase arrastar Nanda, tal é a força que exerce sobre a trela. Não há como resistir. O melhor é deixar-se levar…
A verdade é que o pobre cão estava tão aflito que, mal se apanhou na rua, alçou a perna no arbusto mais próximo, não tendo já capacidade vesical para aguentar até à árvore que normalmente regava com os seus fluídos urinários. Agora, aliviado do mais urgente, continua com pressa de chegar ao parque. Ele lá sabe porquê… O seu faro não o engana, e emite-lhe sinais a longa distância.
Arrastada pelo animal, Nanda acabou por quase chocar com a vizinha do 1º.esquerdo, Adelaide, também ela dona de um canídeo, mas do sexo oposto.
A Diana era uma cadelinha que vivia apaixonada pelo Tejo, o qual correspondia, com fidelidade canina, a esse amor.
Feitos os cumprimentos, das donas e principalmente dos seus estimados animais, estes, com encostos de focinhos e outras expressões de afecto, preparavam-se para ir mais longe nas suas manifestações, mas foram severamente interrompidos pelas respectivas donas que, de momento, não estavam com disposição para lhes permitir grandes efusões.
Puxando-os com força pelas trelas conseguiram que se afastassem. Os pobres animais, contrariados, tiveram que obedecer, mas ficaram mirando-se um ao outro, com um ar muito desconsolado e infeliz.
Conversando animadamente Nanda e Adelaide tentam pôr a conversa em dia, pois, apesar de viverem no mesmo prédio há muitos anos, não se encontram com muita frequência.
Adelaide trabalha como recepcionista num consultório médico, das 13 às 21 horas, o que a faz regressar bastante tarde, com a maioria dos vizinhos já recolhidos em suas casas.
Dá-se bem com toda a vizinhança. É uma mulher muito simpática e gentil por natureza, e talvez o facto de ser bombeira voluntária, a faça ser ainda mais atenciosas com toda a gente.
Gosta muito de Nanda e não perde nenhuma oportunidade de conversar com ela. Por isso ficou muito contente quando a viu aparecer no parque “conduzida” pelo Tejo…
Caminhando lado a lado, cada uma com o seu animal firmemente preso pela trela, começam por falar do netinho da Nanda, que esta espera ter junto de si muito em breve.
Afastam-se para o lado para darem passagem a um grupo de crianças pequenas, em idade pré escolar, que seguem duas a duas, precedidas por uma educadora, que leva, segura pela mão, uma mais pequenina. A fila de meninos e meninas termina com a presença de uma outra adulta, que, na retaguarda, presta atenção para que nenhuma se desvie. Parecem um bando de pardais, nos seus bibes coloridos, chapelinhos a condizer, falando alto e rindo alegremente.
Nanda olha-os, extasiada, e comenta:
- Adoro crianças! Não me importaria nada de trabalhar numa Escola Infantil…
- São realmente encantadoras. Eu também gosto muito. – responde Adelaide - Mas não estou a ver a Nanda, com a sua formação escolar, enfiada numa escolinha… Penso que depois de algum tempo sentiria a falta de algo mais desafiante…
- Pois fique sabendo que, quando fiz a Faculdade, ainda hesitei entre “Gestão e Administração”, que foi o que segui, e o “Ensino”. Sempre tive esta paixão, desde muito nova.
- Não fazia a mínima ideia… Sempre a vi como uma mulher de negócios – comentou Adelaide com um sorriso.
- Na vida temos que fazer opções… e eu, para o bem e para o mal, decidi-me pela parte dos negócios. Mas pode haver alguma coisa mais importante do que ver desabrochar a mente de uma criança? – respondeu Nanda, com um ar de encantamento.
- Bem, visto por esse prisma… até parece bastante aliciante… - Adelaide olha para Nanda como se a visse pela primeira vez.
- Pode acreditar que é. Uma criança é um projecto de vida, no qual o professor pode ter - e tem! - uma importância enorme!
- Sim, sem dúvida. Embora eu seja uma leiga no assunto, penso que ao professor cabe a tarefa de moldar esse projecto… - adiantou Adelaide.
- Não concordo, minha amiga. Isso seria muito fácil. Já Bernard Shaw, que faleceu em 1950, com 94 anos de idade, deixou escrito: - O mais vil deformador é aquele, que tenta moldar o carácter de uma criança.   
Uma criança é um ser muito importante, ainda em desenvolvimento. Cabe ao professor, não moldar o projecto que a criança representa, mas sim fornecer, a cada uma, todos os meios necessários para que ela própria consiga moldar-se a si mesma, e construir o seu caminho.
- Nanda, minha amiga, isso não me parece nada fácil…
- Não, não é fácil, mas para que a criança possa vir a ser uma pessoa livre, com capacidade para escolher o que quer fazer na vida, que saiba dizer sim e dizer não… é preciso que o professor lhe forneça as ferramentas necessárias. Porque não há duas crianças iguais, não há um molde que sirva a todas… - Nanda falava com um ar sonhador.
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa: a Nanda sabe que eu gosto muito de falar consigo, e nunca perco uma oportunidade de o fazer. Mas… hoje, particularmente, estou a adorar ouvi-la. Está a fazer-me ver as coisas duma maneira nova, que me agrada muito. Até parece que estou sentadinha na escola lá da minha aldeia onde passei a infância, e onde a professora era uma senhora que respeitávamos muito – Adelaide ostentava um sorriso de satisfação.
- Fico muito contente por ouvir isso, Adelaide. Antigamente havia pelos professores um respeito muito grande. Hoje as coisas são muito diferentes.
No tempo da minha Mãe, por exemplo – segundo ela me contava – as crianças só iam para a escola quando tinham sete anos. Muito excepcionalmente poderiam ir – se o professor concordasse – quando tinham seis anos, se completassem os sete até ao dia 31 de Dezembro. Aos poucos foi-se encurtando a idade; quando eu fui para a escola primária já o fiz com seis anos; presentemente os encarregados de educação podem requerer a matrícula no primeiro ano, para as crianças que completem os seis anos até ao fim do ano, ou seja, podem entrar para a escola com cinco anos.
Isto parece-me um absurdo. Quando é que as crianças têm tempo para ser crianças? Aliás, elas vão para os infantários quase que acabadas de nascer…
Eu percebo que a vida que se vive actualmente exige que os dois pais trabalhem para sustentar a casa. Isso reverte em desfavor dos filhos que não podem ter, da parte dos pais, o acompanhamento que tão necessário é, especialmente durante o período de formação das crianças. Essa tarefa, tão importante, e que deveria ser exercida pelos pais – volto a frisar – é relegada para os professores. Estes, por sua vez, não têm, normalmente, condições para ensinar, educar, e formar. Turmas com um número exagerado de alunos, horários demasiado carregados – tanto para alunos como professores – resultam em completa exaustão para os professores e saturação para os alunos. E, claro, o aproveitamento escolar não é, muitas vezes, o mais desejável.
 Nanda foi interrompida por Adelaide:
- É fantástico o ar sonhador com que a Nanda fala…
- Talvez porque, enquanto lhe enchi a cabeça com tanta conversa – respondeu, sorridente – eu estava a imaginar-me no papel de professora. E, para além de um profissional competente, independentemente da matéria que ensina, o professor tem que ser um sonhador.
- Um sonhador? – estranhou Adelaide
- Sim, A educação sem sonho nunca será satisfatória para nenhum dos intervenientes. A escola, logo de início, é invadida pelos sonhos das crianças, os alunos. E o professor que não saiba acompanhá-los nesses sonhos… jamais será um verdadeiro professor…
Embaladas pela conversa nem se aperceberam que já tinham percorrido a distância entre o parque e a casa onde moravam.  
Despedindo-se, Adelaide subiu para o 1º.andar e Nanda entrou no rés-do-chão, de novo puxada pelo Tejo, desta vez ansioso por matar a sede.
Ainda no hall de entrada pareceu-lhe ouvir a voz do vizinho do 2º.andar esquerdo, o Joaquim, um viúvo dos seus 60 anos, que adora implicar com Adelaide, e até parece estar sempre de tocaia, esperando que ela apareça.
Nanda sorri pensando, como sempre, que ali anda paixão encoberta…
Seguindo o exemplo do Tejo também ela vai saciar a sede e, cansada do longo passeio, sentou-se no sofá da sala, rememorando a conversa que tivera com Adelaide. Como consequência lógica, lembrou-se de Alessandro e das vezes que com trocara impressões sobre o mesmo assunto. Mas isso só aconteceu algum tempo depois de se conhecerem…
***
[Depois do “encontrão” que lhes permitiu o primeiro contacto, Alessandro insistira com Nanda para que fosse jantar com ele…
- Por quem me tomas tu? Achas que eu ia aceitar jantar com uma pessoa que acabei de conhecer, que, além do mais, me ia quase matando?
- Mas que exagerada! Apenas te dei um lieve tocco, e tu já falas em mortos e feridos? Mamma mia! - Alessandro falava com o seu forte sotaque italiano, agora com um misto de espanto e indignação.
- Ligeiro encosto? Tu tens cá uma lata! Imagina tu a deitares-me ao chão com o encontrão que me deste… Eu podia ter caído, e esse teu corpanzil em cima desta frágil criatura… esborrachavas-me, tenho a certeza. – Nanda parecia querer esticar a conversa, sem ela própria entender bem porquê. Alguma coisa a fazia reter naquele lugar…
- Mais um exagero teu- Essa tua fragilidade é só aparente, pois pareces-me uma pessoa até muito forte. – respondeu Alessandro, continuando: Mas não respondeste ao meu convite… Aceitas jantar comigo? Se não quiseres jantar… pode ser almoço. Vá lá! Será uma forma de me redimir de qualquer dano que te possa ter causado.
Nanda não respondeu de imediato. Se a razão lhe dizia que não devia aceitar… qualquer coisa a impulsionava a dizer sim. Para desviar o assunto declarou:
- Eu vou encontrar-me com uma amiga, que foi à Universidade, para irmos almoçar. E ela já se aproxima… portanto, adeus!
- Addio no! Per favore! Acabo de ter uma ideia: Porque não almoçamos os três? – sugeriu, rapidamente, Alessandro.
- Mas tu és sempre assim, tão persistente? Não, não podemos almoçar os três. Tenho assuntos particulares a tratar com a minha amiga.
- Claro! Desculpa o meu atrevimento – disse ele, com ar contrito.      Mas não me afasto de ti enquanto não prometeres jantar comigo – acrescentou, adoptando um ar suplicante.
Nanda sentia grande dificuldade em resistir-lhe. Resolutamente arrancou uma folha do bloco de notas que trazia consigo, e escreveu o seu número de telefone. Entregou-lha, dizendo:
- Telefona-me!
E afastou-se rapidamente, sem olhar para trás, mas pensando: “Será que ele vai telefonar?”
Bela aproximava-se em passo ligeiro, pelo que, em poucos minutos, estavam juntas.
- Tenho todas as informações de que precisamos – disse Bela, depois de se terem abraçado e beijado efusivamente, como era habitual nelas.
- E anotaste tudo para eu ver, espero…
- Não, não anotei nada, e já me esqueci de tudo – respondeu Bela, com uma gargalhada.
- Que engraçadinha! Só não levas já um tabefe porque estou muito bem-disposta…
- Na verdade estás muito sorridente. O que te aconteceu? Ganhaste na lotaria? – perguntou Bela.
- Mais ou menos – respondeu Nanda, com um sorriso de orelha a orelha. Conheci um príncipe encantado…
- E isso aconteceu-te enquanto vinhas ao meu encontro? Não sabia que os príncipes encantados andavam por aí “à fartazana”… Onde foi que o encontraste? – perguntou Bela. Quero ir já a esse sítio para ver se encontro algum para mim…
- Ao virar da esquina. Deu-me um encontrão que quase me derrubou… - informou Nanda, sorridente.
- Imagina se em vez de um príncipe fosse um “ gigante encantado” – comentou Bela, com uma gargalhada.
- Não, não era um gigante, mas era bastante alto. Foi a mais linda visão que já tive… Uns olhos azuis do outro mundo – respondeu Nanda, com um ar sonhador.
- Muito me contas… E, pelos vistos, o senhor Cupido andava pelas redondezas…
- És completamente parva! Achas que o “VER-TE E AMAR-TE FOI OBRA DE UM MOMENTO” liga comigo? – perguntou Nanda.
- Realmente… não é costume… Tu até és muito esquisitinha, bem difícil de contentar … Mas, como para tudo há uma primeira vez, quem sabe se a tua “primeira vez” não é esta? - Bela continuava a rir.
- Vai gozando, que logo ajustamos contas – Nanda aderiu à brincadeira.
Conversando alegremente e caminhando num passo estugado, em breve chegaram ao restaurante. Sentaram-se, fizeram o pedido, e começaram logo a falar do assunto que as levara a almoçar juntas.]
***
O toque do telefone interrompeu os seus pensamentos. Contrariada, Nanda levantou-se e viu, no visor, que a chamada era do Tó Zé. Naquele momento teria preferido continuar a recordar o passado tão distante. Já haviam decorrido 30 anos! Mas na sua memória tudo continuava muito nítido, como se o estivesse vivendo de novo…
Clicou no “atender” e ouviu do outro lado a voz inconfundível do seu ex-marido:
- Por onde anda a flor mais linda do meu jardim, que demorou tanto tempo a atender?
Nanda sentiu um friozinho na barriga ao ouvir aquela voz carregada de mel…

Maria Caiano Azevedo