quarta-feira, 1 de maio de 2019

LIVRO EM CONSTRUÇÃO - SEGREDOS IX


SEGREDOS – CAPÍTULO IX

 
“- Realmente, não se compreende que uma pessoa, com formação superior, especialmente na área de gestão financeira, tenha tanta dificuldade em arranjar trabalho…
Foi ao ouvir isto que eu pensei:
- Ora aí está a pessoa que eu procuro! “

SEGREDOS – CAPÍTULO IX

“Como eu não disse nada, ele continuou:
- O que se passa é que eu regressei há pouco do estrangeiro onde tenho vivido. E, como tive a sorte de a vida me correr bem, consegui fazer umas economias que pensei aplicar na terra onde fui criado, ou seja, esta onde nos encontramos.
Tenho feito várias diligências no sentido de abrir um negócio. Para isso, obviamente, vou precisar de pessoas que colaborem comigo. Uma, pelo menos, terá que ser bem qualificada para poder ficar à frente do negócio sempre que eu tiver que me ausentar, o que, em princípio, acontecerá, pelo menos, uma vez por mês.
- E o Sr. Engenheiro já tem alguma coisa em vista? Algum negócio… quero eu dizer…
-Antes de mais nada, por favor, acabe com esse tratamento de Sr. Engenheiro… - disse ele rapidamente.
- Mas… - eu ia justificar-me, mas ele interrompeu:
- A não ser que exija que eu a trate por Sr.ª Doutora… o que, noutras circunstâncias, seria perfeitamente justo até porque, tanto quanto me apercebi, as suas qualificações são maiores do que as minhas…
- Isso eu não sei… Mas não, de modo algum, não gosto que me tratem por doutora. Eu até me esqueço que tenho um canudo – respondi com um meio sorriso, involuntário.
- Eu compreendo-a, mas olhe que às vezes é bom não o esquecer. Infelizmente há pessoas com quem contactamos que têm tendência para abusar, e é preciso pô-las no seu lugar – dizia isto com um ar meio ausente, como se estivesse a lembrar-se de algo acontecido. Depois continuou, com toda a naturalidade:
- Então… esse pormenor da “doutora” e do “engenheiro” já está ultrapassado. Tratamo-nos por você, e apenas pelo nome. Concorda?
- Não vejo inconveniente…
- Sendo assim, Nanda, - posso trata-la assim ou prefere Fernanda?
- Nanda está perfeito. São tão poucas as pessoas me tratam por Fernanda que até me esqueço que é esse o meu nome… - respondi eu, meio a sorrir.
- Então… Nanda, podemos falar de negócios? – agora o seu tom era cem por cento profissional.
- Podemos, sim, embora eu tenha que analisar muito bem a sua proposta – que o senhor ainda não fez – e só depois disso lhe darei uma resposta – respondi eu, na defensiva.
- Ai, ai, ai… “o senhor”? Então não combinámos tratarmo-nos pelo nome? Trate-me por Araújo. O meu nome é Fernando Manuel Carvalho Araújo, mas gosto que me tratem simplesmente por Araújo.
- Tudo bem, Araújo. Posso então saber qual é a sua proposta? – perguntei, também em tom completamente profissional.
- Bom, Nanda, por enquanto não posso adiantar muito. Eu quis contactá-la já apenas para a pôr de sobreaviso, não fosse aparecer-lhe alguma oportunidade de trabalho, e eu perder a sua colaboração. O que posso dizer para já – e peço-lhe que não faça uso desta informação, pois, como sabe, o segredo é a alma do negócio – acrescentou com um meio sorriso – eu estou em negociações com o dono da ourivesaria do Centro Comercial, a “Orvalho de Ouro”, no sentido de ele me vender tudo, isto é, o espaço (a loja é dele) e o recheio. A dificuldade de acerto está em que ele é também dono da outra ourivesaria, a “Orvalho de Prata”, e não quer desfazer-se de uma separadamente da outra…
Como a Nanda pode calcular desse modo o investimento seria enorme, e eu tenho um certo receio de que não compense… Está em jogo um valor bastante avultado… e em negócios é preciso ter os pés bem assentes na terra…
- Tem toda a razão, é preciso ponderar bem e não se atirar de olhos fechados – respondi.
- No meio de tudo isto a certeza que eu tenho é que, se a Nanda aceitar trabalhar comigo, terá uma remuneração condigna. Mas como eu não faço caridade – acrescentou, meio a sorrir - as suas responsabilidades também serão grandes… Eu pago bem mas exijo… - frisou
Eu apenas respondi:
- Parece-me justo. Nem eu me sentiria bem a receber o que não merecesse…
- Eu tinha razão quando pensei em apostar em si. Algo me dizia que a Nanda era a pessoa certa para tomar conta do meu empreendimento.
De qualquer modo, se o negócio da ourivesaria não se concretizar, já tenho outra coisa debaixo de olho…
E rematou:
- Por agora ficamos assim. A Nanda vai pensando na hipótese de que lhe falei, vai amadurecendo a ideia, e logo que eu tenha algo de concreto – que espero não demore muitos dias – voltamos a contactar. “
- E pronto. Cumprimentou-me e foi-se embora. Ah! – acrescentou Nanda com um sorriso – e pagou os cafés…
Bela, fazendo o gesto de bater palmas, aplaudiu, em silêncio, muito séria. Depois disse, tentando disfarçar o tom manifestamente ciumento:
- Aplausos para a doutora Fernanda, que conseguiu conquistar um desconhecido!
- Porque é que eu vejo nas tuas palavras um mal disfarçado ciúme? – perguntou Nanda, em jeito de comentário.
- Ciúmes, eu? Estás a precisar de pôr óculos! – Bela falava num tom meio desabrido – O que me espanta é como uma mulher com quase cinquenta anos (e acentuou o “cinquenta), mãe de filhos e agora com um neto, com tanta experiência de vida, ainda vai em cantigas…
- Oh minha menina (Bela tremia cada vez que a amiga se lhe dirigia tratando-a por “minha menina”, pois isso só acontecia quando ela estava verdadeiramente zangada) em primeiro lugar eu não tenho cinquenta anos – e ninguém me dá os quarenta e sete que tenho, essa é que é a verdade. Depois… tu não estavas lá, não conheces o Araújo, não assististe à conversa… portanto, não vejo com que fundamente falas em “cantigas”…
Bela emudeceu. Acabava de receber uma reprimenda da sua melhor amiga, e o pior é que o raspanete era mais que justo. Nanda agira com toda a correcção – nada havia a censurar no que lhe contara da conversa com o engenheiro. Sentia-se aborrecida consigo mesma por ter dito aquelas barbaridades. Tinha que reconhecer que fora apenas o ciúme que a levara a falar assim. A verdade é que, no fundo, nunca perdera a esperança de que Nanda fosse trabalhar na empresa do seu pai, e assim passassem a maior parte do tempo juntas. E agora esse sonho começava a esfumar-se e perder-se no horizonte.
Bela não tinha muitas amigas, e nenhuma se comparava a Nanda, desde sempre a sua melhor amiga. Juntas na escola primária, assim tinham continuado no liceu e depois na universidade.
Tinham muitos pontos em comum. Ambas eram filhas únicas; gostavam imensos das mães, mas… adoravam os pais. Preferiam a praia ao campo; o seu ideal de lazer era passado à beira mar. Nas férias, enquanto os pais de Bela não iam para a quinta, passavam as tardes deitadas na areia, a bronzearam os belos corpos juvenis, dando mergulhos de vez em quando para se refrescarem. Até tinham tirado o mesmo curso, de tal modo os seus gostos eram comuns. Só no trabalho é que sempre tinham estado separadas.
Logo que se formaram Bela foi trabalhar para a empresa do pai, não tendo conseguido convencer a sua amiga a seguir-lhe o exemplo. Nanda recusou.
Naquela altura até compreendeu e não insistiu. Quando acabaram o curso a amiga já estava casada e tinha um bebé de três anos, o Miguel. Casara quase em segredo com o Tó Zé, uma decisão repentina que ela não entendera muito bem… É certo que eles eram grandes amigos mas Bela nunca sentira que entre eles houvesse mais do que amizade – pelo menos por parte da Nanda.
Tó Zé e Nanda conheciam-se quase desde que tinham nascido, viviam na mesma rua, brincavam juntos, foram colegas na Primária, e aí separaram-se. Ele não era muito dado a estudos; preferiu seguir um curso profissional, qualquer coisa relacionada com química, o que o levou a afastar-se um pouco da amiga de ambos, Bela. Contudo continuou a conviver com Nanda, com quem falava praticamente todos os dias. 
Apesar disso aquele casamento inesperado surpreendera-a bastante. É certo que às vezes Nanda lhe contava que o Tó Zé lhe dissera que a amava, que nunca iria encontrar ninguém que gostasse dela como ele… e coisas desse género. Mas ela levava tudo isso à conta de brincadeira, não lhe atribuindo qualquer importância. Até porque ele dizia essas coisas mas nunca tivera qualquer gesto tentando uma maior aproximação.
Afinal… um dia, por telefone, Nanda comunicara-lhe a sua decisão de se casar com o Tó Zé. E, apesar do seu espanto perante tal notícia e pedido de justificações, Bela não obteve da amiga qualquer resposta que a elucidasse. Apenas soube que tudo estava decidido e que o casamento se realizaria dentro de poucos dias.
Soube, depois, que fora uma cerimónia simples, apenas no Cartório, com a presença dos pais e testemunhas. Ela própria, a sua melhor amiga, não tinha estado presente. É certo que, na altura, encontrava-se com os pais na quinta, onde eles passavam sempre dois meses, de meados de Agosto a meados de Outubro. E de nada valeu Bela insistir para que Nanda aguardasse o seu regresso à cidade. Ela mostrava-se decidida a casar-se o mais rapidamente possível, como se disso dependesse a salvação do mundo.
Já passaram muitos anos, mas ainda me lembro que, da única vez que lhe perguntei o porquê daquele casamento, Nanda me respondeu: Por favor não me faças perguntas a que não posso responder-te”
Agora Bela olhava para a amiga que mostrava um rosto fechado, verdadeiramente aborrecida com as suas palavras. Raramente se zangavam, e eram sempre arrufos “de pouca dura” (1). Mas desta vez Bela ultrapassara os limites e Nanda não parecia disposta a perdoar facilmente.
- Sinto-me tão mal com o que te disse… Sei que é difícil perdoares-me… mas, por favor, não fiques zangada comigo. Sabes que não o suporto… - havia lágrimas na voz de Bela.
Nanda também não se sentia bem por ter levado tanto a peito o que a amiga dissera. Ela própria não entendia o porquê do seu desagrado. Afinal… a sua amiga não dissera nada assim tão grave. Sentia-se mesquinha, e isso incomodava-a. A verdade é que andava com os nervos à flor da pele. Eram coisas a mais a acontecerem ao mesmo tempo. Mas não podia deixar que isso interferisse na sua amizade. Respirou fundo e, com um sorriso contristado, respondeu:
- Vamos passar uma borracha sobre tudo isto. Eu também reagi exageradamente. No fundo eu sei que não falaste por mal…
Apertaram as mãos por cima da mesa e, mais sorridentes, sentiram-se, de repente, esfomeadas.
- Vamos a um restaurante ou comemos aqui mesmo? – perguntou Bela
- Sabes que para mim uma salada é suficiente. E eles aqui têm-nas muito boas… - respondeu Nanda.
- Tu e as saladas… Sempre a preocupação com a linha… Como se precisasses, com esse teu corpinho escultural – Bela falava com carinho e admiração.
- Se não fosse a minha preocupação onde é que já ia este corpinho escultural!, como tu dizes – riu Nanda.
- Digo eu e diz qualquer pessoa que olhe para ti com olhos de ver. Garanto-te que ninguém adivinha que já foste mãe duas vezes… -insistiu Bela.
- Nem que tenho quase cinquenta anos? – Nanda brincou com a anterior frase da amiga, mostrando assim que não estava nada ressentida.
- Não me faças envergonhar mais… Como pude ser tão parva e injusta contigo? – Bela mostrava-se verdadeiramente contrita.
- Vamos pedir e comer em paz? – propôs Nanda.
- Boa ideia! – Bela chama o empregado e encomendam o almoço.
Enquanto comem vão conversando amenamente. Por fim é chegado o momento de se separarem. Despedem-se com um abraço apertado, como é habitual entre elas. No abraço de hoje sentem que não há entre elas o menor ressentimento pelo que aconteceu, o que constitui para ambas um enorme alívio. Amigas há tanto tempo só muito raramente tiveram discussões com verdadeiro azedume, como hoje.
- Ainda vou passar pelo escritório para assinar uns documentos que deixei com a minha secretária – informa Bela, à laia de despedida.
- E eu tenho o meu secretário Tejo à minha espera para ir dar um passeio – respondeu Nanda, rindo.
Afastaram-se seguindo direcções opostas.
Bela, rememorando o que acontecera nessa manhã e pensando como fora desagradável com a sua amiga, sentia-se mal consigo mesma.
“Conhecemo-nos há tanto tempo que cenas destas são inconcebíveis. A minha reacção não tem desculpa. A Nanda é para mim como uma irmã, a irmã que tanto desejei e nunca tive. A vida dela é para mim como um livro aberto. Bem… totalmente aberto não será… Até hoje ela não me contou o que a levou a casar-se com o Tó Zé, demais a mais com aquela urgência toda. A mim ninguém me convence que ali havia amor, pelo menos da parte da Nanda; já ele sempre viveu apaixonado por ela, desce criança. Mas isso não justifica um casamento.
É certo que ela engravidou logo a seguir… mas até isso me pareceu estranho. Era tão nova… Cheguei a pensar que já tinham tido “alguma coisa” antes do casamento… Isso explicaria toda aquela pressa… Mas se fosse isso ela não me contava? Sempre achei tudo muito misterioso.
É a única coisa em que sinto que Nanda não foi totalmente franca comigo. Mas a verdade é que isso nunca interferiu na nossa amizade.
Enfim… quem é que não guarda algum segredo da sua vida qua não revela a ninguém?”
Embrenhada nestes pensamentos, sem se aperceber, tinha chegado à porta da empresa.

Nanda caminhava apressadamente. Já passava das três horas e o pobre Tejo devia estar aflito para ir dar o seu passeio higiénico. Entretanto veio-lhe à ideia o acontecido no café onde passara a manhã com a sua amiga.
“Que reacção tão intempestiva, a da Bela! Eu sei que o sonho dela era que trabalhássemos juntas, e Deus sabe que era também o que eu mais gostaria. Mas, onde ela trabalha, na empresa do pai, é que nunca! Claro que ela nem sonha qual o motivo que me tem feito sempre recusar os seus convites … E por mim jamais o saberá.
Afinal… conhecemo-nos há tantos anos! - Quarenta? Sim… mais coisa menos coisa… - somos como duas irmãs (que há irmãs que se dão pior do que nós…) e no entanto nunca consegui contar-lhe esse segredo.
A verdade é que eu também tenho vivido há mais de vinte anos, com a sensação de que a Bela guarda um segredo que nunca me quis contar. Aquela ausência tão prolongada… na altura do meu casamento, sempre me deixou desconfiada. E não me convenceu a conversa de que estava a acompanhar a mãe que, por desavenças conjugais, resolvera fazer umas férias no estrangeiro.
Ná! (2) Pareceu-me uma desculpa muito esfarrapada.
Mas enfim, ela lá terá tido as suas razões para guardar segredo.
E… quem é que não guarda algum segredo da sua vida qua não revela a ninguém? Infelizmente sei-o bem, por experiência própria…”
Ruminando estes pensamentos acercou-se do prédio onde morava. O Tejo, pressentindo-a, começou logo a raspar o chão por detrás da porta.
(1) - Que acaba muito depressa.
(2) – Ná = Não

Maria Caiano Azevedo