quarta-feira, 1 de agosto de 2018

LIVRO EM CONSTRUÇÃO – SEGREDOS II



“…- Não, isso não tenho, mas estou a falar-lhe a sério. Por favor guarde este cartão com o meu nome e telefone-me, se assim o entender, daqui a duas ou três semanas. Talvez tenha boas notícias para si, mas agora não posso dizer-lhe mais nada Meteu-lhe o papel nas mãos, despediu-se e virou-lhe as costas…”

 SEGREDOS – CAPÍTULO II
Nanda ficou segurando o cartão entre os dedos, a olhar para o homem que se afastava, sem ter tido tempo para reagir. O primeiro impulso foi atirar o cartão para o primeiro caixote do lixo que encontrasse, mas acabou por guardá-lo no bolso, ficando a pensar:
- Que estranho tipo de abordagem! Será alguma nova técnica de engate ou estará o homem a falar mesmo a sério? Lá bom aspecto não lhe falta, justiça lhe seja feita!
Mas quando o lobo se veste de cordeiro também parece muito fofinho e inofensivo, e olha lá! Foi o que aconteceu com o Tó Zé… e até mesmo o Dr. Santos Costa, lá da EILA. Era todo simpático, todo jeitoso, e deu no que deu!
E como quem se lixa é sempre o mexilhão… lá ficaste tu, Nanda, sem marido e sem patrão, ou seja, duplamente desempregada.
Sim, porque para o Tó Zé, nos últimos tempos, não passavas de uma empregada!
Servias para lhe lavar as meias e as cuecas, mas para o “bem bom” lá estava a ucraniana.
Como a vida muda! Ao princípio de casados era tudo tão diferente! Mas enfim, cada um é para o que nasce.
Deixa-te de pensamentos sombrios, Nanda, e vai mas é para casa, que estes sapatos estão a moer-te os calcanhares…  
Retomou a caminhada e foi já muito cansada, com os pés doridos e com dificuldade em dar um passo, que chegou à entrada da rua onde morava.
E aí teve outra surpresa: a carrinha do senhor Francisco estava estacionada num lugar que não era habitual. E ainda mais estranho por ser àquela hora, ao fim da manhã.
- Que se passará? – interrogou-se à medida que se aproximava do local de estacionamento. E a admiração passou a espanto quando viu o senhor Francisco, seu vizinho, e mais conhecido por “Chico das Farturas ”- que era exactamente o que estava escrito em letras garrafais nos taipais da carrinha - com a cabeça apoiada sobre o volante.
Nanda bateu com os nós dos dedos na porta da carrinha e ele levantou a cabeça. Chorava.
- Que se passa, Sr. Francisco?
- Ah! É a D. Nanda! Não se passa nada, não se passa nada – respondeu enquanto passava a manga da camisa pelos olhos, a esconder as lágrimas.
- Então não se passa nada e o senhor está aqui a esta hora, dentro da carrinha, a chorar?
- A chorar, eu? Não, não é nada, foi um mosquito que me entrou para um olho, e eu estava à espera que isto passasse.
- Ah, sim? Então está tudo bem?
- Tudo bem… até nem está D. Nanda, mas deixe-me arrumar melhor a carrinha, que eu acompanho-a até casa e já lhe conto o que se passa.
Assim fez. Arrumou a carrinha no lugar habitual, fechou-a, e pôs-se a andar ao lado de Nanda. Moravam lá para o meio da comprida rua, a duas ou três casas um do outro, o que deu tempo para ele lhe contar o problema em que estava metido.
- Sabe, D. Nanda, de há uns tempos a esta parte, de vez em quando tenho tido dificuldade em fazer força; já aconteceu algumas vezes ter de pedir ajuda para abrir e fechar os taipais da carrinha e, quando o faço sozinho, sinto fortes dores nas costas. Como isto se tem vindo a agravar resolvi ir ao médico, fiz umas radiografias e essas coisas que eles costumam mandar fazer e hoje o doutor leu-me a sentença. E olhe que para mim foi quase sentença de morte.
- Então Sr. Francisco, que se passa? Que lhe disse o médico? – perguntou Nanda, já preocupada.
- Disse-me que se eu não deixasse de fazer o que sempre fiz, andar com a carrinha de um lado para o outro, tinha muitas probabilidades de brevemente ficar paralisado, por causa de problemas na coluna. Ou mudava de vida ou o melhor era comprar já uma cadeira de rodas. Já viu a minha vida?
- Tenha calma Sr. Francisco, pode não ser tanto assim – disse Nanda. Os médicos às vezes enganam-se. O melhor que o senhor tem a fazer é ir consultar outro médico. Quem sabe se ele não tem uma opinião diferente, ou até talvez conheça algum tratamento para as suas costas…? Sabe que isto, hoje em dia, estão sempre a aparecer coisas novas. Não fique já nesse desespero, homem!
- Obrigado por me tentar animar, mas acho que o médico tem razão. Agora eu, sozinho e já com esta idade, sem poder trabalhar, como vou resolver a minha vida? Já viu D. Nanda? É que nem tenho ninguém para amanhã me empurrar a cadeira de rodas…
- Não seja assim tão pessimista… E o que está a pensar fazer?
- Era nisto tudo que eu pensava quando estava ali na carrinha…
- E o tal mosquito o atacou… já estou a perceber – disse Nanda a sorrir, para aliviar o ambiente.
- A D. Nanda não deixa escapar nada – e Francisco sorriu também e continuou a contar o que estava a pensar:
Estava a matutar nisto tudo e cheguei à conclusão que só tenho duas coisas por onde escolher: ou vendo a carrinha, ou arranjo um sócio.
- Está a ver? Afinal tudo tem remédio - e de repente passou uma ideia pela cabeça de Nanda, que perguntou:
- E o negócio dará para duas pessoas, senhor Francisco? Para si e para o sócio, que, suponho, será o trabalhador da sociedade?
Tinham chegado junto à casa dele; desviaram-se um pouco para a sombra de uma árvore, e ele respondeu:
- Olhe D. Nanda, nós conhecemo-nos há tantos anos, a senhora sempre foi tão simpática comigo, que eu quase a considero como de família. Por isso vou dizer-lhe aqui uma coisa, que fica cá entre nós. O negócio das farturas até não é nada mau. Sabe o que costuma dizer o Sr. Gomes que é o toque (1) que me trata dos papéis para as Finanças? Que nem lhe passava pela cabeça que este pequeno negócio pudesse gerar um caixafló (2) tão jeitoso.
- Ah sim? – Nanda sorriu, e o Sr. Francisco nem por sombras adivinhou qual a razão daquele sorriso. Nanda continuou:
- Olhe lá Sr. Francisco, o que achava se eu lhe propusesse ser sua sócia?
- O quê? A D. Nanda andar com a carrinha dum lado para o outro a vender farturas? Não acredito que esteja a falar a sério.
- Olhe Sr. Manuel, estou desempregada como certamente já sabe, não gosto de estar sem fazer nada e os parentes não me caiem na lama por andar a vender farturas ou seja lá o que for. O meu problema é outro, ou melhor, até são dois em vez de um…
O primeiro é saber se eu serei capaz de fazer o que é preciso, isto é, andar de feira em feira, guiar a carrinha, armar a tenda, fazer a massa, fritar as farturas, enfim, tudo aquilo que é preciso fazer.
O segundo problema é saber se a parte que me tocaria como sócia trabalhadora seria compensadora…
Ficaram a falar sobre o assunto durante mais uns bons minutos e acabaram por concluir que o melhor seria a Nanda fazer a experiência aí umas duas semanas a ver se lhe agradava o trabalho e a contrapartida financeira.
Ela garantiu-lhe que se concluísse que não gostava ou que não tinha jeito, lho diria, mas que, fosse como fosse, o ajudaria sempre a resolver o problema.
Ao entrar em casa o Tejo veio logo ao seu encontro, com o ar mais feliz do mundo, abanando o rabo, e encostando o focinho húmido aos seus joelhos descobertos. Olhava-a com aqueles olhos líquidos vertendo amor, esperando assim convencê-la a levá-lo à rua. Estava sempre pronto para uma saidinha…
Nanda fez-lhe uma festa na cabeça, murmurando:
- Agora não, Tejo. Já foste à rua de manhã, e eu estou arrasada. Preciso descansar, senão ficas sem dona…
Dito isto dirigiu-se ao quarto. Talvez por saberem que iam ficar libertos daquela prisão que os torturava, os pés “reclamaram” urgência. Nanda atirou os sapatos para um canto e atirou-se ela para cima da cama, sem se importar com a roupa que tinha vestida, e que iria ficar toda amarrotada.
De manhã vestira-se com esmero, como, de resto, gostava de fazer. Dava-lhe prazer sentir os olhos postos nela quando passava na rua, e pensar que, embora não sendo já uma menina, com dois filhos adultos e prestes a ser avó, ainda atraía os olhares de quem com ela se cruzava.
Completamente descontraída em cima da cama, os pés finalmente sem dores, começou a pensar na conversa que tivera com o “Chico das Farturas” (uma marca com prestígio no mercado, garantira-lhe ele).
Como se tivesse necessidade de se convencer a si mesma, disse em voz alta:
 - Espero bem que o “toque” não esteja enganado sobre o “caixafló” que as farturas geram, que eu bem preciso – e soltou uma gargalhada como há bastante tempo não fazia.
- “Ai Nanda, Nanda, o teu cheiro a fritos até tresanda!” – riu alegremente. Acho que já nem preciso de ir à farmácia aviar a receita do antidepressivo.
E com uma alegria que há muito tempo não sentia, espreguiçou-se e, de repente, veio-lhe à ideia o caso do tal Carvalho Araújo.
- Mas que raio de nome o homem havia de arranjar: Carvalho Araújo!
“Carvalho Araújo”, tanto quanto sei, é nome de navio. Querem lá ver que ele é marinheiro? Tinha graça agora aparecer-me pela frente um capitão-de-mar-e-guerra… Ou…melhor ainda, um sócio da CNN (3). – e o seu rosto iluminou-se com um largo sorriso.
Como que a chamá-la à realidade, o telefone tocou.

1 – Toque = TOC – Técnico Oficial de Contas
2 – Caixafló = Cash flow – Fluxo de Caixa/Fundo de maneio
3 – Companhia Nacional de Navegação

Maria Caiano Azevedo

Dentro de poucos dias vou de férias. Parto no próximo sábado rumo à Europa, começando por Praga, República Checa, e depois… se verá, mas não dispenso Budapeste e Viena de Áustria!
Este mês de Agosto será dedicado à Europa; em Setembro será a vez de África. Partirei no dia 1/9 para Cabo Verde. Entre os dois continentes estarei cá no dia 29 de Agosto para fazer a terceira (e espero que última) injecção intra-vítreo.
Deixo programada a postagem do dia 1 de Setembro. Conto convosco. Retribuirei, agradecendo, todas as visitas entretanto recebidas. 
Bem hajam!