quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

VÍTIMA DO TERRAMOTO DE HAITI

Viveu como santa, morreu como mártir

Fundadora da Pastoral da Criança, a médica Zilda Arns dedicou a existência a minorar o sofrimento dos despossuídos e a evitar o desperdício da vida. Até o último minuto.

A ÚLTIMA PREGAÇÃO
Escombros da Igreja Sacré Coeur de Tugeau, em cuja casa paroquial
Zilda Arns proferiu uma palestra antes de morrer

Montagem sobre fotos de Rodolfo Buhrer e Yhony Belizaire/AFP

Nascer mulher em Forquilhinha, Santa Catarina, nas primeiras décadas do século passado significava ser, no futuro, professora ou religiosa.
Zilda Arns, 13ª filha de uma família descendente de alemães, contrariou esse destino por amor. Aos 21 anos de idade, apaixonou-se pelo futuro marido, o então marceneiro Aloysio Neumann, que, chamado para um conserto na casa dos Arns, encantou-se com a jovem que viu na sala tocando piano.
Foi também em nome de outra forma de amor, aquele mais sublime que se devota ao próximo, que Zilda enfrentou a resistência paterna e insistiu em estudar medicina, num tempo em que ser doutor era coisa de homem.
O apoio do irmão, o hoje arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, foi fundamental para dobrar a família. "Ele havia estudado na Sorbonne e convenceu o pai de que estavam começando a formar mulheres médicas lá fora", conta Rogerio Arns Neumann, de 39 anos, um dos seis filhos que Zilda teve com Neumann, morto em um acidente no mar aos 46 anos de idade.
Desde que alterou o curso do próprio destino, Zilda Arns não parou mais de mudar o dos outros, a começar por aqueles que a miséria e a ignorância haviam fadado a ter curta duração.
Nos anos 80, por sugestão de dom Paulo, a pediatra e sanitarista aceitou formular um projeto para disseminar o uso do recém-criado soro caseiro, aproveitando a imensa influência da Igreja Católica entre os pobres, e com isso combater o flagelo da mortalidade infantil.
Assim nasceu a Pastoral da Criança, um projeto tão singelo na sua concepção quanto na execução. Consistia em identificar, nas paróquias e comunidades católicas, lideranças que treinariam voluntárias para ensinar mães pobres a adotar o soro. Essa e outras medidas igualmente simples ajudariam a evitar que seus filhos morressem de diarreia, desidratação, contaminação e outros males fáceis de vencer com quase nada de dinheiro e um pouco de informação.
O local escolhido para iniciar o trabalho foi a pequena Florestópolis, no Paraná. Lá, a mortalidade infantil era tão alta que, no único cemitério existente, o número de cruzes de tamanho pequeno, que sinalizavam os túmulos de crianças, superava em muito o de cruzes grandes. Depois do trabalho da Pastoral, a taxa de mortalidade baixou de 127 óbitos em cada 1 000 crianças nascidas vivas para 28. A partir daí, o programa foi sendo exponencialmente replicado até alcançar 72% do território nacional, além de vinte países na América Latina, África e Ásia.
Ao longo dos 25 anos em que esteve à frente da Pastoral da Criança, Zilda Arns visitou os cantos mais remotos do Brasil. Aterrissou em um sem-fim de aeroportos, fez travessias em barcos precários e sacolejou de ônibus por estradas que eram mais buraco do que chão.
Seus olhinhos azuis, sempre radiantes, se acostumaram a ver a pobreza extrema, e seu corpo forte se habituou à contenção e à precariedade.
Três meses atrás, ela esteve no Timor Leste, um dos países em que a Pastoral fincou suas bases e onde auxilia cerca de 6 000 crianças. Lá, como quase sempre, faltava quase tudo, incluindo água corrente na casa em que Zilda se hospedou com Rúbia Pappini, voluntária da Pastoral há vinte anos.
- "Para lavar os cabelos, mergulhávamos a cabeça debaixo da pia e reaproveitávamos a água que escorria para tomar banho de caneca", lembra Rúbia.

Na noite do último domingo, Zilda Arns interrompeu as férias de família para começar mais um pinga-pinga por aeroportos. De Curitiba, onde morava, fez escala em São Paulo e, da capital paulista, seguiu para Miami, nos Estados Unidos, onde pegou outro avião que a levou até o Haiti.
Chegou a Porto Príncipe ao meio-dia da segunda-feira.

No dia seguinte, ela faria uma palestra sobre o trabalho da Pastoral para um grupo de religiosos haitianos, num edifício de três andares em frente à igreja Sacré Coeur de Tugeau.
Foi ao fim dessa palestra que se deu o terremoto. Quem descreve o ocorrido é o tenente Paulo Cézar Acebedo Strapazzon, que havia sido convocado para traduzir para o francês a fala da médica, esperada no 3º andar do prédio por 120 sacerdotes.
Zilda chegou com quarenta minutos de atraso por causa de um engarrafamento no trânsito. A tradução acabou sendo feita por um civil haitiano que viera com o tenente e falava o crioulo, dialeto local, de compreensão mais fácil para a plateia.
Faltavam quinze minutos para as 5 horas quando a médica terminou sua palestra. A plateia deixou a sala, mas alguns padres se aproximaram de Zilda para fazer-lhe perguntas. Nesse momento, o tenente perguntou à médica se ainda poderia ser úti. Ela respondeu que mais tarde precisaria de ajuda para traduzir alguns manuais.
Strapazzon desceu os lances de escada até o térreo, entrou em seu jipe, deu a partida, e então viu todos os prédios desabar ao seu redor. Os três andares do prédio transformaram-se em um amontoado de pedras e vigas de metal.
Zilda Arns morreu na hora, atingida na cabeça por uma viga do teto que desabou. Outros quinze religiosos que estavam na sala morreram também.
O corpo da médica chegou na sexta-feira a Curitiba, onde foi transportado em carro aberto – e aplaudido por pedestres que paravam à sua passagem.

DESPEDIDA DA MISSIONÁRIA

O velório de Zilda Arns em Curitiba (no centro, o arcebispo de Salvador, dom Geraldo Majella): seu trabalho mudou o destino de milhões de crianças.

Zilda Arns tinha 75 anos, um terço dos quais consagrados aos despossuídos e à tarefa de celebrar o caráter sagrado da vida – o que ela fez em cada uma das infinitas vezes em que ajudou a evitar seu desperdício.
Com gestos miúdos, persistência de formiga e fé colossal, construiu uma epopeia silenciosa que mudou a face do Brasil e o destino de milhões de pessoas. Sua vida teve a grandeza da de uma santa – e à sua obra pode-se dar o nome de milagre.


22 comentários:

Sandra disse...

Muito triste o que está acontecendo..
O mundo está de Luto..

Fico muito feliz com a sua companhia.
E por isso lhe dou um lindo selinho.
Curiosa fica feliz com a sua presença.
Deixei um carinho para vc.
Passe lá e confira.
Sandra

SAM disse...

Dizer o quê? Pura emoção e grata a Deus por seres humanos como Zilda Arns nos dar exemplo vivo da fraternidade, solidariedade e amor. Uma belíssima homenagem a esta mulher que certamente merece todas, pelo grandioso ser humano que foi e continuará sendo pela imortalidade das suas obras e exemplo de humanidade.


Enorme abraço, emocionado, Mariazita! Obrigada.

Vitor Chuva disse...

Olá Mariazita!
Diz-se da morte que esta não escolhe quem leva consigo. Mas aqui levou a pessoa errada, quem não merecia ir já, pelo muito que fez por quem precisava, e pelo muito muito que ainda gostaria e poderia fazer.
A vida dela é certamente o exemplo da pessoa boa, mais preocupada com os outros do que consigo própria, que encontrava prazer no fazer o bem, um ser humano extraordinário.
Não merecia o que lhe aconteceu!

Beijinhos.
Vitor.

Luis disse...

Querida Mariazita,
Recebi um e-mail de Amigo igual a este que postou e que muito me impressionou. Está na Tulha em continuação do colocado no Sempre Jóvens. Quem tem uma Vida como ela levou é uma santa e merece ser recebida por Deus! Morreu a fazer bem pelos desgraçados dos Haitianos! Sua Alma seja santificada!
Um beijinho amigo.

Cândida Ribeiro disse...

Uma vida dedicada a ajudar os outros e acaba por ser num momento desses que perde a vida.
Nada é mesmo por acaso!
Fica eternamente viva na memória dos que a conheceram e acompanharam a sua vida de amor pelos outros.
Numa altura é que o Mundo está testemunhando tão grande dor e sofrimento é altura para fazermos uma reflexão sobre aquilo que realmente somos.
O que levamos são mesmo actos como estes…o resto pouco vale.
Obrigado por partilhares esta história de vida com todos que por aqui passam.
Fiquei emocionada.

Um abraço apertadinho

Alvaro Oliveira disse...

Olá Mariazita

Apesar de hoje estar com dificuldade de ler e depois de uns dias quase totalmente ausente do PC
com excepção do tempo de postagens e pouco mais, estou de visita para
deixar um cumprimento de amizade.

Beijinhos

Alvaro

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querida Mariaziata,

Já tinha lido o post do amigo Luís no Sempre Jovens, mas aqui li a vida inteira desta MULHER fabulosa!

Fico o Mundo de luto por a ter perdido.
Obrigada pelos detalhes que providencia e pelo excelente post.

Beijinho
Sempre Jovens

São disse...

Paz à sua alma!

São estas pessoas qie ainda dignificam a Humanidade e nos alimentam a esperança.

Um abraço para ti, Companheira.

Unknown disse...

Querida amiga,
uma grande perda sem dúvida!
Linda a tua homenagem!

há no meu blogue um miminho para ti.

Beijinhos,
Ana Martins

Daniel Costa disse...

Mariazita

Relatos de actos e de protagonismos que me emocionam, como todos os relatos humanitários.
Beijos
Daniel

RENATA CORDEIRO disse...

Magnífica postagem* Magnífico gesto* De um grande Ser Humano a outro grande Ser Humano e a todos e todos*
Muito obrigada à grande mulher que fez e deixa rastro e a querida Mariazita que sempre faz e me toca imenso. Sinto o seu toque d´além-mar.
Simplesmente eu amo você, minha Loira Brilhante*
Beijos Mil**********************


SERES VIRTUAIS
Da Renata ao querido Mariazita

Pedaços que se encaixam
Sorrisos que se encontram
Vontades que se desejam,
Toques que já se sentem.
O silêncio que se rompe no teclar,
As vidas que se encontram a cada pensamento
O sonhar que se agita a cada segundo
Faz-nos crescer em sentimentos.
Os desejos que se cruzam,
Rompem as feridas deixadas pelo tempo.
Perdidos em delírio o vôo é lançado,
E o pouso se dará
Somente no horizonte mais brilhante
Onde chegaremos a qualquer hora,
Sem sequer sairmos do lugar.

RENATA CORDEIRO disse...

Porque nada é por acaso. Obrigada por me encontrar, Mariazita. Que Deus a abençoe sempre.
Felicidades.
Beijos muitos
Renata

"Não me procures ali
onde os vivos visitam
os chamados mortos.
Procura-me dentro das grandes águas
Nas praças
num fogo coração,
entre cavalos, cães,
nos arrozais, nos arroio,
ou junto aos pássaros
ou espelhada num outro alguém,
subindo um duro caminho.
Pedra, semente, sal passos da vida
Procura-me ali.
Viva.

+ Beijos Rê

Táxi Pluvioso disse...

Viveu como santa, morreu como mártir, é uma afirmação muito forte, espero pela indicação do Vaticano. bom fim de semana

Lilá(s) disse...

Depois da leitura deste post fico sem palavras...
BJS

São disse...

Bom fim de semana.
Ainda: e o Botinhas?

Angela Ladeiro disse...

Fiquei emocionada. Nem sei o que dizer... vidas assim fazem-me mais pequenina...

Unknown disse...

Lembrou-me Chico Xavier, mais um exemplo de humildade em vida.
O lugarzinho dela lá em cima ja estava reservado esperando seu retorno.
Meu carinho por ela e por tí amiguita querida.
Fiquemos com Deus!
Beijos ternos da Jady

xistosa, josé torres disse...

Perante isto, perante os inocentes que morrem, alguém me diga que há um Deus.
Um Deus de quê, para quê e para quem?

"Somos capazes de repartir desgraças e piedades. Num certo sentido, vivemos como Deus, que há muito tempo faz o mesmo"

Cumprimentos e um bom fim de semana.

Unknown disse...

Obrigado por me encaminhar para aqui.
Não conhecia nem nunca ouvi falar de Zilda Arns. Nesta última semana e pelo trágico acontecimento, fui seguindo o percurso da sua vida.
Penso que Deus nos dá o Pão mas também a Educação através de pessoas simples mas marcados pela Fé e pelo altruísmo.
São Corações desprendidos das suas coisas e voltados para ajudar uma causa nobre como esta das crianças.
Obrigado pela partilha.
Pergunto só:
- Porque é que Deus a chamou agora?
Ela devia e queria fazer mais por esta obra.
Esta parte não encontro resposta.

com senso disse...

Amiga Mariazita

Fiquei muito sensibilizado com este texto e com esta história tão bela quanto trágica!
Não conhecia nada sobre esta grande mulher. Uma Senhora neste mundo tão mesquinho e tão egoista.
Uma homenagem muito bela e merecida.
Um beijinho de reconhecimento!

poetaeusou . . . disse...

*
uma a uma,
multidões ajudou,
partiu
com uma nova multidão,
para lhes ensinar o caminho do
outro lado misterioso da vida ?
talvez . . .
,
conchinhas misteriosas, deixo,
,
*

Mª João C.Martins disse...

Mariazita

Mais uma pessoa singular! Alguém que com o seu exemplo de vida e de morte levará muitos de nós a repensar qual a missão, o caminho, o objectivo que nos está realmente reservado...
Não conhecia esta história... e minha amiga, quantas outras aconteceram, quantas mais ficaram soterradas juntamente com a memória dos que lá perderam a vida???


Muito obrigado pela partilha!
Um enorme abraço com muito carinho